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Tue, 30 Mar 2021 in Linhas Críticas
Na teoria, modernização; na prática, regressão: política educacional no governo Temer
Resumo
Sob a luz da teoria social crítica e mediante revisão de literatura, objetivamos discutir a política de Educação brasileira pós-golpe de Estado, ocorrido em 2016, evidenciando as iniciativas direcionadas para a educação básica sob os pilares da regressão, desestruturação e desmonte da política pública educacional, acarretando o seu esvaziamento ontológico, a flexibilização do currículo e a precarização das condições de trabalho retratados no Movimento Escola sem Partido, na Base Nacional Comum Curricular e na Reforma do Ensino Médio. Sinalizamos, por fim, a necessária articulação da classe trabalhadora em defesa da educação pública e de qualidade.
Main Text
Considerações iniciais
A política educacional do Brasil, em sua gênese, esteve permeada por desigualdades sociais, raciais e regionais, as quais fomentaram a dualidade da educação brasileira que se expressa na oferta de uma educação voltada para o trabalho e outra direcionada para a produção do conhecimento (Libâneo, 2012). Em decorrência, se constituiu uma educação dual em que o quesito renda ditava o acesso aos conhecimentos para a formação de mentes pensantes ou para o aperfeiçoamento de braços hábeis para o trabalho. Esta configuração passou a ser confrontada a partir dos anos de 1930 e, de forma mais contundente, nos anos de 1980 marcando a Constituição Brasileira de 1988 com a responsabilidade do Estado na oferta gratuita e de qualidade da educação para todas(os) (Brasil, 1988), sendo reafirmada pela Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (Brasil, 1996).
Doravante, nos anos 2000, os governos petistas (2003-2016) alçaram uma educação que possibilitou, minimamente, a aproximação com a teoria social crítica, o acesso e a permanência de jovens da classe trabalhadora nas escolas e universidades públicas, a intensificação da mobilização de setores populares da sociedade para reivindicar melhorias e ampliação do sistema educacional. Contudo, simultânea e contraditoriamente, expressando as implicações da financeirização do capital e da contrarreforma do Estado, mantiveram estreita articulação com as agências representantes do grande capital - Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI) - atendendo os reclamos dos movimentos sociais ao mesmo passo que adotavam decisões que beneficiavam a burguesia educacional.
Neste jogo político de conciliação de interesses, o governo de Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT) (2011-2016), foi alvo de um golpe parlamentar, jurídico e midiático que mudou o trato das políticas públicas, incorporou as demandas do mercado, se fez cego e surdo diante das mobilizações sociais e investiu no aparato ideológico de que o país necessitava retomar o crescimento por meio de sacrifícios no âmbito dos direitos sociais (Bezerra Neto & Santos, 2017). De acordo com Alves (2017, p. 134),
Repassado à população como impeachment “sob a alegação do cometimento da prática de irregularidades contábeis denominadas ‘pedaladas fiscais’ (…)” (Bezerra Neto & Santos, 2017, p. 166) realizadas pela então presidenta Dilma Rousseff (2011-2016), o referido golpe se concretizou por meio de uma ação conjunta de parlamentares, juízes e da mídia, que buscavam defender seus interesses pessoais e partidários.
Destarte, objetivando problematizar a política de educação nesta conjuntura, realizamos uma revisão de literatura que aborda o desmantelamento do direito à educação e o desmonte da política educacional mediante os pressupostos capitalistas e neoliberais que norteiam as decisões políticas pós-golpe parlamentar, jurídico e midiático de 2016 no âmbito da educação básica. Neste âmbito, utilizamos os estudos de Ramos e Frigotto (2017), Silva e Mei (2018) e Melo e Sousa (2017), bem como de estudiosas(os) marxistas como Behring e Boschetti (2011) e Mandel (1982), dentre outros.
Face ao exposto, sob a ótica da teoria social crítica, respaldada na vertente marxista, partimos da fundamentação ontológica da educação vinculada ao entendimento de que ela pode ser um aparato de mudança e justiça social que almeja a emancipação humana e o pleno exercício da cidadania, bem como reconhece os seres sociais como agentes ativos de uma realidade a qual podem intervir a fim de transformá-la. Não obstante, esta fundamentação sustenta o conceito de educação omnilateral que possui seu alicerce em um processo de formação de consciência voltada para a ruptura das bases estruturais fincadas no antagonismo de classes. À vista desse propósito, a educação omnilateral objetiva a superação da usurpação do conhecimento - social e historicamente construído - e da separação do indivíduo da produção material em prol do capital (Antunes & Pinto, 2017; Lombardi, 2011; Mészáros, 2008).
Assim sendo, problematizamos o Movimento Escola sem Partido como aliado do sistema para a manutenção da ordem vigente, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Brasil, 2018) e a Reforma do Ensino Médio (2017) enquanto mecanismos normativos que fortalecem o cariz tecnicista e utilitarista da educação brasileira ao alinhar visceralmente o processo de ensino-aprendizagem às requisições do mundo do trabalho.
Por conseguinte, a política de educação no governo de Michel Temer (2016-2018) foi empreendida sob os pilares da regressão, desestruturação e desmonte da política pública educacional ao resgatar o passado histórico da educação brasileira no qual as classes sociais detinham distintas possibilidades educacionais em que o estímulo intelectual, crítico e reflexivo era negado à classe trabalhadora, que tinha acesso a um ensino mínimo, tecnicista e direcionado à capacitação de sua força de trabalho.
Isto posto, estruturamos nossa discussão em uma breve contribuição sobre o Estado e as políticas sociais no capitalismo maduro, analisando o Brasil nos anos de 1990 sob a ótica da contrarreforma estatal; em seguida, pontuando alguns elementos do Golpe de 2016, estudamos as iniciativas que visam, segundo o discurso governamental, a modernizar a educação básica, quais sejam: amplitude do Movimento Escola sem Partido, consolidação da BNCC e a Reforma do Ensino Médio, retirando a integralidade do direito à educação e reduzindo a responsabilidade do Estado para com a educação. Por fim, inferimos que o referido contexto social, econômico, político e educacional resgatou a dualidade da educação brasileira que se expressa na oferta da educação de forma distinta e desigual para as classes sociais com nítido recorte de raça, assim como acarretou o esvaziamento ontológico - compreendido como redução da educação a instrumento a serviço do capital-, flexibilização do currículo e precarização das condições de trabalho docente.
Estado e políticas sociais no capitalismo maduro
Hodiernamente, vivenciamos a fase do capitalismo monopolista caracterizada, segundo Behring e Boschetti (2011, p. 82),
Em decorrência, o sistema econômico apregoa a constituição de impérios, desresponsabilização do Estado frente às demandas sociais fomentando um processo intensificado de privatização, desestatização e desregulamentação do mercado. Neste contexto, o Estado é apropriado pelo capitalismo e passa a desenvolver funções econômicas e extraeconômicas objetivando repreender as manifestações sociais, por meio do exército e da polícia, e integrar os sujeitos ao modo de produção via educação e cultura para assegurar a reprodução do capital (Mandel, 1982).
Com efeito, o Estado assume funções diferenciadas conforme a fase evolutiva da sociedade capitalista, sendo que sua função primordial, desde a sua gênese que antecede o capital, é manter a estrutura de classes. Diante desse propósito, Mandel (1982) analisa que a função primordial do Estado é administrar as crises para a manutenção e continuidade do sistema. Esta função se realiza da seguinte forma:
Face ao esforço para impedir a classe trabalhadora de reagir às condições de exploração e opressão, podemos destacar a contribuição da mídia para a legitimação dos ideais burgueses e o fortalecimento da lógica do consumo. Nesse ínterim, as desigualdades sociais são naturalizadas e apreendidas como fracasso individual que deve ser superado mediante o empreendedorismo respaldo pela meritocracia. Desta forma, os interesses da burguesia são disseminados como sendo para o bem da coletividade, ao passo que intensifica as relações de exploração e retira os direitos sociais arduamente conquistados.
Por conseguinte, relativo às políticas sociais, estas possuem sua contradição intensificada: de um lado, amenizam as expressões da questão social[1] por meio da oferta de programas e serviços sociais; por outro, servem para a manutenção das relações de (re)produção do capital atuando na promoção do consumo ao viabilizar condições mínimas para desafogar os salários com caráter de evitar ou adiar ao máximo possível o retorno das crises (Mandel, 1982).
Desse modo, as políticas sociais estão atreladas à expansão dos direitos sociais que ocorreu, segundo Behring e Boschetti (2011, p. 83), sob a base material das intensas mudanças “no mundo da produção, por meio do fordismo que também se generaliza no pós-guerra, com novos produtos e processos de produção, e também por meio da indústria bélica, no contexto da Guerra Fria”. É salutar destacar que, além deste cenário econômico, tivemos mudanças no âmbito legal a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) (Organização das Nações Unidas [ONU], 1948).
Essa declaração prima pela garantia de condições dignas de vida e pela promoção da paz entre as nações e é fruto, mas não somente, dos esforços da ONU em 1948. Sendo considerada um marco, a DUDH elenca diversos direitos no âmbito político, civil, econômico e social, e, atrelada às pressões populares, em nosso entendimento, contribuiu para que as políticas sociais ganhassem respaldo como direito e superassem o seu caráter assistencialista e punitivo.
Estes esforços, no âmbito dos direitos sociais, expressam o auge dos primeiros trinta anos da fase madura do capitalismo (1945-1975). Conhecidos como os “anos de ouro”, marcam o período em que o sistema registrou altas taxas de lucro, resultando em ganhos de produtividade para as empresas e políticas sociais para a classe trabalhadora (Behring & Boschetti, 2011).
Desse modo, visando, primordialmente, evitar outra crise catastrófica como a que ocorreu em 1929/32, é constituído um Estado de Bem-Estar Social - o conhecido Welfare State. Formulado por John Keynes, almejou manter a produtividade em alta tendo por base o consumo de mercadorias pela classe trabalhadora, sendo associado ao modelo fordista: produção e consumo em massa. Outrossim, só é possível consumir quando se tem renda para tal, e renda é estritamente vinculada à venda da força de trabalho, portanto, era necessário assegurar o pleno emprego e a igualdade social (Behring & Boschetti, 2011).
Desta feita, o keynesianismo propôs um Estado interventor de acordo com o período vivenciado pelo sistema, ou seja, distintas intervenções para fases de crise e para fases de prosperidade. Com efeito, “o bem-estar ainda deve ser buscado individualmente no mercado, mas se aceitam intervenções do Estado em áreas econômicas, para garantir a produção, e na área social, sobretudo para as pessoas consideradas incapazes para o trabalho: idosos, deficientes e crianças” (Behring & Boschetti, 2011, p. 86).
Contudo, no ínterim da ordem sócio metabólica do capital, a contradição é um elemento presente em todas as fases. As crises são estruturais e demonstram o esgotamento do sistema impondo a sua recriação em outros pilares. Estes pilares serão fincados, primeiramente, na redução dos investimentos nas políticas sociais; em concomitância, as mudanças no mundo do trabalho em que a revolução tecnológica e a redução dos postos de emprego são as suas maiores expressões. Conforme Behring e Boschetti (2011, p. 103),
E é na periferia do capital que este sistema se mostra mais feroz nas contradições e desigualdades que lhes são inerentes, requisitando aos países periféricos fidelidade na subserviência ao grande capital. Esta ferocidade será mais contundente após a referida crise da década de 1970, a qual delineou a necessidade de reformar o Estado sob o discurso de preocupação com os avanços na área social, camuflando, assim, a inversão de valores instituída pela redução da máquina estatal e o protagonismo da esfera privada. Para elucidar esta realidade, analisamos o Brasil a partir dos anos 1990.
Brasil: crise e reforma estatal
O Brasil, após o fim do Regime Militar (1964-1985), se encontrava em um mar com dois lemes: de um lado, a pressão nacional pela positivação dos direitos sociais, que mobilizou centenas de pessoas, e, do outro, a pressão internacional pela abertura do país ao capital estrangeiro. Para equilibrar o remo, no processo de redemocratização do país, que culminou na promulgação da Constituição Cidadã de 1988 (Brasil, 1988), o Estado brasileiro atende às requisições da classe trabalhadora e do capital ao possibilitar a responsabilização do Estado na oferta dos direitos sociais, bem como permitir brechas, na própria legislação, para a atuação da esfera privada.
Dito isso, na conjuntura resultante da catastrófica crise da década de 1970, o Estado brasileiro remou contra a maré do que foi instituído na Constituição de 1988. Em sendo assim, ainda no governo Sarney (1985-1990), os intelectuais orgânicos passam a delinear proposições para reformar o Estado, indo defronte ao necessário compromisso com as políticas sociais.
Desse modo, “fomentou-se historicamente a esperança no futuro como cimento de legitimidade da dominação presente” (Behring, 2003, p. 19), isto é, o desejo de um futuro melhor justificava, como ainda justifica, as decisões tomadas no presente. Segundo a autora, o Brasil se tornou um país desenvolvido para alguns poucos, em que os “de baixo” nunca superaram esta condição.
Nestes moldes, as desigualdades permaneceram inalteráveis, as mudanças ocasionadas regrediram no que tange à política de seguridade social. Assim, as reformas impulsionadas na década de 1990 instalaram uma adaptação do Estado brasileiro às exigências capitalistas, deixando de ser um mediador civilizador para ser promotor, prioritariamente, das “condições gerais de reprodução do capital” (Behring, 2003, p. 21).
Em outras palavras, “a existência de um mercado livre não elimina, evidentemente, a necessidade de um governo. [...] O que o mercado faz é [...] minimizar a extensão em que o governo tem que participar diretamente do jogo” (Friedman, 1977, p. 12), ou seja, o Estado continuará intervindo, não como protagonista, mas como coadjuvante do mercado.
No Brasil, a contrarreforma[2] do Estado vai se legitimar a partir das decisões de Bresser-Pereira, que foi ministro da fazenda no governo de José Sarney e ministro da Administração Federal e da Reforma do Estado no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998). É imposto que é necessário reduzir a intervenção do Estado na área social e possibilitar a mercantilização dos serviços sociais, bem como repassar a responsabilidade do Estado para a sociedade civil, ou seja, para o terceiro setor que vai se expandir em meados da década de 1990.
Desse modo, acredita-se que o mercado vai se autorregular a partir da liberdade concedida pela não intervenção do Estado com uma inversão de valores, o que torna o mercado o fim último das ações do Estado e torna a cidadania o meio para se chegar à realização plena do mercado, como afirma Pedro Demo (1995). Neste panorama, temos, como consequência, o esvaziamento da noção de direito, tornando-o uma mercadoria, substituindo a relação pessoa cidadã versus Estado pela relação cliente e vendedor, pois quem oferta os serviços deixa de ser uma instituição comprometida com os interesses públicos e passa a ser entidades/instituições com interesses particulares, mercadológicos ou fundados na solidariedade e no voluntarismo.
Segundo Leite (2012, p. 459), “trata-se, tout court, de desmontar a responsabilidade pública em relação às grandes problemáticas sociais” por meio da desestatização, desregulamentação e particularização. Isto posto, questionamos: como será possível garantir os direitos de cidadania após o enxugamento da máquina estatal em prol do mercado? Ou melhor, como podemos falar em direitos quando os serviços prestados pelo Estado são repassados para a responsabilidade do mercado ou para o espírito da solidariedade?
Ademais, a contrarreforma enfatiza a preocupação com a obtenção dos resultados sob a perspectiva gerencial. Reflitamos: quais serão os processos que devem ser adotados? Quais as consequências serão acarretadas quando se prima pelos resultados? Para exemplificar, tomemos o caso da Educação Superior em nosso país: o Brasil estabeleceu no primeiro Plano Nacional de Educação (PNE), em 2001, a meta de atingir o ingresso de 30% da juventude entre 18 a 24 anos até 2010 (Brasil, 2001). A busca por esse resultado fez com que se delineasse um processo de massificação do ensino via Educação a Distância (EaD), a nacionalização da forma de acesso por meio do Sistema de Seleção Unificada (SISU) - acarretando a adequação da universidade às normas do mercado -, na flexibilização do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), dentre outras medidas que visassem atingir a meta supracitada.
Este processo resultou leves arranhões nas desigualdades educacionais e em mudanças significativas para o acesso e a permanência de estudantes pobres nas universidades, entretanto não atingiu a meta e sucedeu uma formação de baixa qualidade nas universidades privadas e EaD, na evasão dessas(es) estudantes em virtude de uma política de assistência estudantil frágil, além da evasão por ter ingressado no curso que a nota do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) possibilitou.
Por conseguinte, na fase do capitalismo maduro aliada ao neoliberalismo, a educação é uma mina preciosa em que se encontra tanto a capacidade ideológica posta a favor dos ideais e valores calcados na alienação e na reprodução do ethos burguês, como o potencial de angariar altas taxas de lucros por meio da mercantilização de serviços educacionais e da monopolização de instituições de ensino, com especial destaque para as universidades.
No Brasil, essa mina é erodida pelo Movimento Escola sem Partido e pela empresa Kroton Educacional - o maior oligopólio educacional do mundo! Além disso, se apropriando das contribuições de Paulani (2008, p. 130), ressaltamos que,
Dessa maneira, não podemos dissociar as requisições do capital em crise desde 2008 da empreitada ocorrida em 2016 e que desencadeou o golpe parlamentar, jurídico e midiático contra a presidenta Dilma Rousseff (PT) (Bezerra Neto & Santos, 2017; Alves, 2017). Nesse novo cenário político e econômico do Brasil, vejamos quais os fundamentos que nortearam a educação básica na política educacional do governo de Michel Temer, do Partido Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) (2016-2018).
Política educacional pós o golpe de Estado de 2016
A história da política brasileira é marcada por inúmeros golpes institucionais, sendo o mais recente o do ano de 2016, o qual guiou-se por elementos novos em seu processo de implementação (Ramos & Frigotto, 2017), mas manteve o protagonismo de uma classe que domina desde os tempos da Colônia: “uma classe que é anti-nacional, anti-povo e anti-educação púbica universal, gratuita, laica e unitária para todos” (Ramos & Frigotto, 2017, p. 34).
Desse modo, permaneceu o apoio da mídia e do judiciário e a oposição às ideias comunistas. Por conseguinte, abriu mão das forças armadas e se institucionalizou mediante a defesa de “questões como combate a corrupção, como se viu nos panelaços e atos de rua” (Figueiredo, 2017, p. 162), retratando a ingenuidade de acreditar que seria possível combater os privilégios andando junto aos privilegiados (Fernandes, 1977, como citado em Ramos & Frigotto, 2017).
De acordo com Orso (2017, p. 58), sob efeito deste enviesamento político, ideológico e:
Assim sendo, sob a perspectiva das demandas da fase madura do capitalismo, o referido golpe de Estado representou uma “[...] saída burguesa brasileira para se adaptar ao novo momento do neoliberalismo no mundo, e se conectar com as exigências do ambiente internacional, de imensa liquidez de capitais buscando desesperadamente nichos de valorização [...]” (Behring, 2018, p. 62).
Neste ínterim, o desmantelamento dos direitos sociais e o desmonte das políticas públicas compuseram a bússola do governo de Michel Temer (PMDB). Ora, “a captura do Estado como comitê de gestão dos interesses comuns dos monopólios se intensificou neste terceiro momento do neoliberalismo entre nós” (Behring, 2018, p. 65). À vista disso, o golpista governou, de 2016 a 2018, sob os seguintes pilares: privatização, saque ao fundo público e ajuste fiscal. Consequentemente, a focalização, a seletividade e a precarização foram visceralmente relacionadas às políticas sociais, dentre elas a política de educação.
Isto posto, consideramos relevante enfatizar a concepção de educação adotada nessa discussão. Enquanto bem público e direito social, econômico e cultural, compreendemos a educação como uma prática social que possibilita a formação para o mundo do trabalho e a cidadania, mas, primordialmente, possibilita a construção de uma consciência voltada para a emancipação humana quando alicerçada na reflexão crítica das relações sociais, bem como ao acesso ao conhecimento socialmente construído por meio das instituições de ensino.
É pertinente, porém, afirmarmos que no âmbito da pós-modernidade e do neoliberalismo, com os seus valores e ideais em que o imediatismo, a fluidez, a competitividade (Ramos & Frigotto, 2017) são exemplos, a educação é esvaziada de sua capacidade ontológica e reduzida a mero mecanismo de reprodução das relações produtivas. Embebida por esses valores e no circuito geral das políticas sociais, a política educacional no Brasil - após o golpe de Estado de 2016 - realizou saltos galopantes para viabilizar a criação de nichos lucrativos em busca da valorização do capital.
Sem pretender entrar no mérito da pertinente discussão da política de educação nos governos petistas, destacamos que essa política sempre esteve vis a vis com o mercado nos mandatos de Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016), mesmo promovendo mudanças significativas no acesso e na permanência da classe trabalhadora na escola e na universidade: o novo elemento apregoado pelo golpista é a defesa escancarada do sucateamento das instituições públicas e a precarização e flexibilização das formas de ensino.
Essencialmente, no que tange à educação básica, esse processo foi consubstanciado pela Medida Provisória nº 746 de 2016 (Brasil, 2016a) (transformada na Lei nº 13.415/2017) (Brasil, 2017); pela BNCC e pela amplitude do Movimento Escola sem Partido (Silva & Mei, 2018; Orso, 2017; Melo & Sousa, 2017). Em suma, esse conjunto de medidas está ancorado no argumento de que é necessário modernizar o sistema educacional brasileiro, considerado falho, precário, com viés ideológico e desarticulado das demandas do mercado. Em outros termos,
Dito isso, alguns partidos políticos e setores da sociedade consideram que a modernização da política educacional do Brasil deve passar por um intenso combate à ideologia marxista comunista disseminada nos governos petistas. Tal fundamento fortalece o Movimento Escola Sem Partido, que apregoa o esvaziamento e a redução da educação a mero mecanismo de ordem social para a capacitação, habilitação e o aperfeiçoamento da força de trabalho.
Em suma, esse movimento defende uma educação utilitarista - em contraposição à educação omnilateral -, ataca as(os) professoras(es) que possuem uma visão crítico-dialética, sendo acusadas(os) de doutrinadoras(es) e naturaliza a estrutura e organização da ordem social vigente. E quais consequências podemos ponderar desse movimento que fomentou inúmeros projetos de lei ancorados na perspectiva da defesa da neutralidade no ambiente educacional?
Sob o falso espectro do comunismo, da ideologia de gênero e da heterofobia, as(os) defensoras(es) do referido movimento almejam amordaçar falas, punir a desmistificação da realidade concreta, cercear a liberdade de expressão do pensamento crítico, aniquilar o pluralismo de ideias, combater o movimento estudantil tido como partidarista, afinal, o Escola sem Partido tem apenas um partido: o da direita conservadora e seus sustentáculos fincados no preconceito, racismo, machismo e no patrimonialismo.
De acordo com Silva e Mei (2018), esse movimento perfila um conjunto de argumentos fundamentados no reconhecimento de que a(o) estudante, ao ser o elo mais frágil na sala de aula, pode ser induzida(o), cooptada(o), doutrinada(o) e assediada(o) idelogicamente pelo(a) seu(sua) professor(a). Ademais, defende o direito da(o) estudante ter acesso a um ensino que lhe possibilite apenas os conhecimentos necessários para empregar a sua força de trabalho.
É a retomada integral do tecnicismo e do utilitarismo na política de educação, afinal, qual a utilidade de refletir sobre as relações sociais de (re)produção, o papel do Estado, a organicidade do sistema vigente, o jogo político nacional e internacional? Refletir sobre os fatos, fenômenos, acontecidos sociais, econômicos e políticos? Para que estimular o pensamento crítico, reflexivo e questionador diante do preconceito de classe, das injustiças sociais, das desigualdades sociais/educacionais/culturais, das discriminações de etnia/raça/gênero? Para quê a classe trabalhadora ter acesso a conhecimentos que possibilitem desvelar a sua situação de exploração, opressão, submissão e alienação?
Por conseguinte, a modernização da educação brasileira é delineada, também, pela Reforma do Ensino Médio e pela BNCC[3]. Almejando articular o ensino básico às requisições do mundo do trabalho e da fase madura do capitalismo, o governo de Michel Temer (2016-2018) empenhou mudanças estratégicas no Ensino Médio a partir de uma contrarreforma e mediante a parametrização dos conteúdos estudados em sala, vinculada a uma base aplicada a todo o território nacional, revelando o resgate das raízes da política de educação no Brasil Colônia, em que o saber fazer era mais importante que o por que fazer (Rocha, 2010).
Intensificando as desigualdades educacionais que permeiam a classe trabalhadora que terá acesso a um processo de ensino-aprendizagem calcado em um currículo mínimo, uniformizado, conteudista e direcionado para resultados quantitativos, afinal “é necessário que sistemas, redes e escolas garantam um patamar comum de aprendizagens a todos os estudantes, tarefa para a qual a BNCC é instrumento fundamental” (Brasil, 2018, p. 10).
Tal propósito torna questão diminuta os fatores que interferem diretamente na causa dos resultados negativos da educação básica pública brasileira: quais as condições de trabalho das(os) professoras(es)? Quais as condições estruturais, materiais e de recursos humanos das escolas? Quais as condições sociais das(os) estudantes? Em um país em que a merenda escolar se torna mecanismo para o governo e pretexto para a(o) aluna(o) ir à escola (Paiva, 2005), é extremamente impossível desconsiderar as desigualdades sociais, regionais, raciais e culturais. Desse modo, como será possível esperar resultados melhores de uma política que está desarticulada das demais dimensões da vida cotidiana da(o) estudante, da família, da comunidade, da escola, da sociedade em geral? Conforme Silva e Mei (2018, p. 297),
Estamos retrocedendo para os anos de 1990, em que, para superar a distorção idade-série, a repetência e a evasão escolar, foram tomadas medidas administrativas como a aprovação automática, procedendo números estatísticos melhores e piorando a situação educacional (Paiva, 2005). Certamente, herança da administração do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) sob o mote da contrarreforma do Estado, como supracitado em linhas anteriores, em que os resultados sobressaem aos processos adotados sob a perspectiva gerencial (Behring, 2003). Desta feita, “reitera-se com isto, uma tendência: os resultados da avaliação suplantam a importância da própria formação” (Ramos & Frigotto, 2017, p. 39).
Por conseguinte, para completar, mas não finalizar o conjunto de medidas regressivas do governo Temer para a educação básica, a Reforma do Ensino Médio se apresenta como a solução para tornar o ensino mais eficaz e focado na preparação para o mercado de trabalho. Consequentemente, as estratégias adotadas pelo ministro da educação Mendonça Filho (Partido Democratas) - com o aval de um grupo de políticos-empresários “preocupados” com a qualidade da educação pública - resgatam as raízes do Ensino Médio brasileiro visando atender os requisitos das avaliações dos organismos internacionais (Ramos & Frigotto, 2017) e as novas necessidades do capitalismo maduro em crise.
Em sendo assim, foi encadeado um processo autoritário e antidemocrático refletido no sancionamento da Medida Provisória nº 746 de 2016 (Brasil, 2016a) sem que houvesse diálogo com um dos principais sujeitos presentes no processo de formação educacional e profissional: as(os) professoras(es). Orso (2017) assinala que estas(es) são consideradas(os) responsáveis pela educação precária que temos e, portanto, devem apenas receber e aplicar as decisões tomadas pelo suposto alto escalão escolhido pelo ministro da educação.
A contrarreforma do Ensino Médio, na verdade, é uma reforma curricular que pretende, quantitativamente, melhorar os resultados nas avaliações internacionais, bem como preparar uma força de trabalho “cujo saber ler e realizar operações matemáticas se tornará o suficiente para a manutenção do exército industrial de reserva” (Melo & Sousa, 2017, p. 33).
Assim, aumenta-se a jornada escolar, com a instituição da escola integral, passando de 800 h para 1.400 h anuais, sendo que das 37 horas, 5 horas semanais serão destinadas para os estudos da Língua Portuguesa e da Matemática (Ramos & Frigotto, 2017). É pertinente afirmar que não somos contra a ampliação da carga horária escolar, desde que essa ampliação seja acompanhada pela valorização do corpo docente, por investimentos em recursos humanos e materiais para as escolas, pelo compromisso com uma formação crítica e reflexiva e não apenas uma ampliação que escamoteia as precárias condições de funcionamento das instituições escolares públicas, bem como as particularidades das(os) estudantes dessas instituições.
Ademais, o Ensino Médio em escola integral se transforma em um escárnio para a sociedade brasileira que, em nome do ajuste fiscal e para a superação da crise, teve seu orçamento congelado para os investimentos na área social por meio da Emenda Constitucional nº 95 de 2016 (Brasil, 2016b): como ampliar e melhorar com recursos reduzidos?
Segue-se a flexibilização do currículo com a implementação de uma base comum obrigatória e outra composta pelos itinerários formativos que possibilita a(o) estudante escolher qual componente curricular quer estudar. Para tornar a escola mais atrativa, vende-se a ideia de autonomia estudantil, diante do seu processo de ensino-aprendizagem, camuflando a realidade de que a(o) estudante deverá optar dentre os itinerários ofertados pela escola.
Acrescenta-se a esses reducionismo, tecnicismo e utilitarismo da educação a retirada da obrigatoriedade de licenciatura específica para ministrar as aulas: “habilita-se a figura dos profissionais com ‘notório saber’ […]. Ou seja, institui-se o vale tudo’, agora qualquer um pode dar aula, contanto que possua ‘notório saber’” (Orso, 2017, p. 64) configurando não só um ataque ao direito à educação gratuita e de qualidade, mas também à formação profissional do corpo docente.
Um ataque que se estende para as formas de acesso à Educação Superior, uma vez que o Ensino Médio funcionará em forma de créditos e a formação das(os) professoras(es) deverá se adequar as disposições da BNCC. Um ataque que se intensifica com a Emenda Constitucional nº 95 de 2016 (Brasil, 2016b), que reduz os investimentos na área social, como mencionado, com a privatização dos poços de petróleo que obstaculiza a destinação de recursos do pré-sal para a educação (Orso, 2017) e o atendimento às metas previstas no PNE vigente (2014-2024) (Brasil, 2014).
Soma-se a esse panorama as transformações do mundo do trabalho calcadas na rotatividade, na polivalência, no cumprimento de metas que, na educação, se refletem nos contratos temporários, na sobrecarga de atividades, na pressão por resultados melhores com parcos recursos, na desvalorização do corpo docente, dentre outros.
Por fim, a política educacional “modernizada” no Governo Temer “trata-se de uma política centrada na cultura do fragmento e do imediato, na economia do mínimo e na responsabilidade transferida para uma instância abstrata e volátil que é o mercado” (Ramos & Frigotto, 2017, p. 42), escancarando o seu compromisso com as necessidades do capital e o seu repúdio aos direitos sociais, em especial ao direito à educação.
Reflexões finais
Sob o crivo do capitalismo maduro, do neoliberalismo e da pós-modernidade, a política educacional do Brasil necessita ser mudada, reconfigurada, reeditada, adaptada às demandas do mundo do trabalho e das relações sociais de (re)produção a fim de manter a soberania do deus mercado e o seu fruto precioso: o lucro.
Com efeito, a modernização da educação brasileira se fecha para a problemática das desigualdades educacionais fincadas desde os primórdios desta política em nosso país e reedita tais desigualdades por meio da mercantilização do direito à educação, do engessamento da prática docente, do esvaziamento da educação tornada pragmática e conteudista, reverberando na manutenção e no acirramento da dicotomia entre estudantes que podem pagar por um ensino de qualidade e estudantes que se submetem a um ensino precário; estudantes que possuem acesso ao conhecimento científico, cultural e artístico e estudantes que possuem acesso a um ensino minimalista, conteudista e voltado para o ingresso no mundo do trabalho.
Esta conjuntura, consubstanciada com a tomada ilegal do poder governamental por Michel Temer (PMDB) e seu aparato jurídico e midiático, representa a volta de um passado ainda não superado: uma educação voltada para o fazer, o aprimoramento da força de trabalho e uma educação que preza pela formação de mentes pensantes que ocuparão os bancos das universidades públicas. Esse é um dualismo que se arrasta desde o Brasil Colônia, que sofreu leves modificações nos governos petistas e que volta após o Golpe de 2016, insistindo na retomada do tecnicismo, utilitarismo e reducionismo da educação a mero meio de capacitação dos sujeitos pobres para o mundo do trabalho.
Assim, o combate ao comunismo, ao assédio ideológico, à ideologia de gênero, bem como a redução dos investimentos na educação, a padronização a nível nacional de conteúdos e a flexibilização do currículo do Ensino Médio significam a constituição de nichos lucrativos para a burguesia educacional investir: serão escolas para os mais diversificados bolsos, ofertando o maior número de itinerários formativos possíveis, contando com profissionais qualificadas(os) para além do notório saber.
Conforme os estudos de Behring (2018), apreendemos que tal cenário encerra a cooptação integral do Estado pelo capital, a privatização e o desmonte da política educacional, o acirramento das desigualdades educacionais que tem raça, classe e região, o culto à cultura do fragmento, do imediato e do flexível.
Dito isto, urge a mobilização e articulação da classe trabalhadora contra esses ataques ao direito à educação de qualidade que preze por conhecimentos filosóficos, culturais, artísticos, críticos e reflexivos. Não obstante, a participação em espaços públicos e o acompanhamento das ações políticas do poder legislativo, bem como cobrar dos parlamentares posicionamentos favoráveis à garantia dos direitos também se apresentam como estratégias para barrar o desmonte das políticas públicas e assegurar, minimamente, o cumprimento dos aparatos legais. Outrossim, importa salientar que a presença dos movimentos sociais é cada vez mais indispensável, considerando o quadro político que se estabelece no governo de Jair Bolsonaro (2018) - Sem Partido: um governo que fomenta a construção de consciência para atacar o que é público, que menospreza o conhecimento científico das universidades, que prima pela ignorância e pelo ódio ao diferente.
Resumo
Main Text
Considerações iniciais
Estado e políticas sociais no capitalismo maduro
Brasil: crise e reforma estatal
Política educacional pós o golpe de Estado de 2016
Reflexões finais