Thu, 13 May 2021 in Linhas Críticas
Infâncias e agência política em ações coletivas e movimentos sociais latino-americanos
Resumo
O artigo aborda a agência política de crianças em ações coletivas e movimentos sociais na América Latina. Analisamos a participação infantil no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Brasil, e na Caravana de migrantes “Pueblo sin fronteras”, no México, buscando fornecer dados empíricos para complexificar a discussão sobre participação política nos campos dos estudos da infância e da ciência política. Ainda que tais coletivos apresentem objetivos e formas de organização distintas, as crianças constroem uma identidade de participantes de um coletivo através da participação nas mobilizações de luta por melhorias nas condições de vida.
Main Text
Introdução
O entendimento da criança como ator social constitui pressuposto consolidado nos estudos da infância, que conferiu visibilidade à dinâmica das relações entre crianças e adultos, mediada por vínculos de afeto e dependência mútuos em seus diferentes espaços de inserção. Mais recentemente, alguns autores (Spyrou, 2018; Punch, 2016) vêm criticando o caráter apriorístico dos conceitos de ator e agência, muitas vezes desprovidos de uma análise dos limites de seu exercício. Taft (2019) afirma que tais conceitos mostram-se insuficientes para a compreensão da participação da criança em ações coletivas, por sua perspectiva individualista, voltada para as microinterações cotidianas.
A análise da participação infantil em ações coletivas e movimentos sociais implica considerar sua dimensão política. Neste texto, iremos abordar a ação política infantil no interior de movimentos sociais e ações coletivas latino-americanos: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Brasil, e a Caravana de migrantes “Pueblo sin fronteras”, no México. Para tal, inicialmente iremos dialogar com os campos dos estudos da infância e da ciência política. Posteriormente descreveremos algumas situações observadas em pesquisas etnográficas com estes coletivos, destacando as condições, expressões e limites da ação política infantil.
Häkli e Kallio (2018) propõem compreender a ação política não em termos ontológicos, mas fenomenológicos. Isso significa não contemplar os atributos dos sujeitos que exercem a ação política, mas compreender como esta se realiza, através de uma análise contextualizada, situada temporal e espacialmente, fazendo alusão a “temas, experiências, eventos e ações que são ou podem se afirmar como políticas, numa dada situação” (Häkli & Kallio, 2018, p. 3). Isto não implica na diluição do conceito de ação política, como se este se fizesse presente em toda e qualquer ação humana, mas avaliar seu alcance em contextos concretos.
Na perspectiva fenomenológica das autoras, a política é entendida como ação que atravessa os diferentes ciclos da vida, compreendida como capacidade de ação que se desenvolve e se desdobra desde os primeiros anos, articulada à construção da identidade dos sujeitos “de acordo com marcadores como idade, gênero, raça, classe, dentre outros” (Häkli & Kallio, 2018, p. 4). No caso dos grupos investigados, ainda que sejam distintas as expressões de ação política de crianças e adolescentes, estas ocupam posição subalterna na organização dos movimentos, definida pela identidade de sujeitos infantis.
Ações políticas infantis
A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (CDC) atribui centralidade ao direito à participação infantil. Porém, como amplamente criticado, este apresenta um modelo universalizante de participação, ancorado numa vivência da infância caracteristicamente individualista e institucionalizada, centrada na família e na escola. A participação política é entendida na CDC como processo formativo a ser exercido na vida adulta e não como dimensão presente na vida da criança. O documento opera com uma concepção de ação política infantil ativada por meio de mecanismos de consulta e expressão definidos pelo adulto. Ainda que seja indicada a participação da criança em ações coletivas, a convenção centra-se na consulta a temas compreendidos como correlatos ao seu contexto imediato.
Para Milne (2015, p. 10), mesmo na produção mais recente, tem-se como referência “a participação das crianças do Hemisfério Norte, que embasou uma agenda para o restante do mundo sem um maior conhecimento das sólidas experiências das crianças em movimentos do chamado Sul Global”. O autor contrapõe (com certo reducionismo) movimentos sociais de crianças e jovens destes diferentes contextos. Afirma que no Hemisfério Norte estes são organizados por adultos, que definem as pautas, assumindo uma feição pouco politizada e focalizando temas como a questão ambiental e a defesa da paz. Já os movimentos sociais do “Sul Global” apresentariam pautas mais politizadas, relacionadas à experiência social dos sujeitos (como trabalho e violência policial).
Frequentemente nos estudos latino-americanos sobre a participação infantil em movimentos sociais, o termo utilizado é protagonismo, termo quase ausente na produção de autores do Hemisfério Norte. Segundo Liebel (2012), em textos de língua inglesa, o termo é escrito em português, demonstrando que o conceito é compreendido como expressão de uma experiência social circunscrita à América Latina.
Taft (2019) observa que o uso do termo protagonismo infantil antecede o documento da CDC, retratando sua emergência nos movimentos sociais populares latino-americanos. Após a promulgação da CDC, e sob efeito das profundas transformações experimentadas no continente, o conceito foi sendo modificado pela vinculação mais direta dos movimentos aos organismos internacionais de defesa da infância. Como afirma Cussianovich (2001, p. 10):
Para Taft (2019, p. 13), ainda que o conceito de protagonismo infantil tenha incorporado a concepção da criança como sujeito de direitos, contrapõe-se ao paradigma individualista liberal da CDC: “Protagonismo foi claramente transformado pela abordagem dos direitos da criança que emergiu entre os anos 1980 e 1990, mas a perspectiva de uma subjetividade e agência coletivista se mantém distinta do paradigma dos direitos da criança”.
Eliud Torres Velázquez considera que a noção ocidental de participação infantil é tensionada pelas práticas latino-americanas das comunidades, organizações políticas, ações coletivas e movimentos sociais:
A ação política infantil destaca-se nestas experiências, afetando o próprio conceito de política. Oswell (2013) questiona: como a criança cria e atua politicamente? Qual é o espaço da política infantil? Para o autor, o conceito de ação política funda-se numa tradição que remonta a Aristóteles, segundo a qual ela se exerce na res publica, por cidadãos considerados providos de uma racionalidade caracteristicamente adulta, masculina e desracializada. Nesta tradição, os sujeitos infantis não são atores políticos, na medida em que, no exercício de uma racionalidade singular, fazem uso de linguagens distintas (como a corporal), apresenta forte dimensão coletiva e não se centra na performance oral, própria do adulto.
Para Oswell, cabe indagar sobre os limites da nossa concepção adultocêntrica de ação política, apontando outras manifestações. Neste sentido, os canais de expressão política infantis, fundados em sensibilidades distintas das adultas, sinalizam o recurso a outras linguagens e mídias. Como destaca Taft (2015) em seu trabalho sobre crianças trabalhadoras peruanas: “Os adultos falam demais”.
Häkli e Kallio (2018), ao analisarem a ação política infantil, dialogam com a perspectiva de Hannah Arendt, segundo a qual a ação política constitui “uma atividade relacionada à resolução de problemas da vida cotidiana, num mundo compartilhado, caracterizado pela pluralidade e diferença. Assim, a dimensão política refere-se à coexistência e associação nos espaços compartilhados, sendo desenvolvida por agentes ativos” (Häkli e Kallio 2018, p. 3).
Buscando compreender as possibilidades das ações políticas infantis, Sarmento et al. (2007, p. 187) refletem sobre o conceito de cidadania, o qual implica “uma vontade livre, pensamento racional e sentido de solidariedade”. Na medida em que tais pressupostos são polêmicos em relação à infância (podemos estender também ao adulto), o status de cidadão, em termos formais, dificilmente pode ser atribuído a meninos e meninas (Voltarelli & Gomes, 2020). As ações políticas de grupos subalternizados, como os infantis, são avaliadas tendo como referência um conceito excludente adulto, masculino, branco, associado a uma experiência histórica ocidental, tornada universal. Desconsidera-se que “no son adultos chiquitos jugando a la política, son actores sociales que quieren participar en los conflictos comunitarios, pues las cuestiones políticas por supuesto también les atañen” (Torres Velázquez, 2015, p. 13).
Abordaremos, a partir de uma perspectiva fenomenológica (Häkli & Kallio, 2018), a participação/ protagonismo de crianças em movimentos sociais e ações coletivas na América Latina, tendo como foco o MST, no Brasil, e as caravanas de migrantes centro-americanos, no México. Ainda que situados em espaços distintos, com temporalidade e alcance diversos, nos permitem apreender em que condições e com quais características as ações políticas infantis se manifestam em cada contexto.
Infâncias, movimentos sociais e ações coletivas
O estudo das participações infantis em movimentos sociais e ações coletivas implica considerar a diversidade das coletividades em que meninos e meninas se inserem, no interior de uma ordem geracional (Spyrou, 2018) Alguns movimentos sociais têm a criança como protagonista, caso dos movimentos de crianças trabalhadoras (Liebel, 2012; Taft, 2015) e de crianças de rua. Outros, mais amplos, buscam construir no seu interior espaços de participação e formação política das crianças, como o MST. Outros ainda, mais restritos, configuram-se como ações coletivas voltadas para melhoria das condições de vida e conquista de direitos, caso das caravanas, sem um olhar para a intencionalidade da participação infantil.
Entendemos que as caravanas se constituem como ações coletivas, "na medida em que manifestam organização, solidariedade e a luta por bens simbólicos, o que inclui a afirmação e reconstrução das próprias imagens dos participantes" (Gouvea et al., 2021). Já o MST afirma-se como movimento social, na medida em que "revela uma luta capaz de colocar em xeque os limites de compatibilidade do sistema social em relação à posição subalterna que ocupam na sociedade" (Gouvea et al., 2021). Nesse sentido, como aponta Melucci (1996), os movimentos sociais ampliam sua ação para além das relações sociais em que se situam, desafiando relações de poder e posições de subalternidade, dimensão menos presente nas ações coletivas.
Nosso objetivo neste artigo não é analisar a singularidade de cada experiência, mas apresentar as formas de participação desenvolvidas no seu interior. Ainda que apresentam alcance, organização e objetivos distintos, ambos têm como ator social a família, em sua luta por melhores condições de vida. Neste sentido, os coletivos conferem centralidade ao grupo familiar, quer na organização dos acampamentos e assentamentos, no caso do MST, quer na formação e definição de estratégias de deslocamento das caravanas.
Estes grupos familiares rompem com o modelo hegemônico que relaciona a família à domesticidade. Em ambas as experiências, a vivência espacial é distinta, caracterizada pelo trânsito entre espaços público e privado, o que não implica na fragilização da unidade familiar. Como demonstram os trabalhos de Punch (2001) e Taft (2019) sobre a participação das crianças em famílias de camadas populares latino-americanas, afirma-se um modelo de família fortemente coletiva, em que os diferentes sujeitos contribuem para sua manutenção, tanto por meio do trabalho doméstico, quanto remunerado.
Nas experiências aqui analisadas, meninos e meninas, na condição de integrantes de um grupo familiar, afirmam-se como participantes, no interior de uma ordem geracional atravessada por hierarquias de idade e gênero, que informam as decisões na gestão do cotidiano. Porém, enquanto nas caravanas não existe uma intencionalidade na construção de formas de participação e formação política, no MST ela constitui um dos objetivos do movimento, através da constituição da identidade coletiva Sem Terrinha[1]. Neste texto apresentamos trechos de duas pesquisas etnográficas sobre a participação da criança, destacando a sua dimensão política. Na primeira, desenvolvida entre abril e julho de 2018, acompanhou-se um grupo de migrantes que se deslocavam de países da América Central em direção aos Estados Unidos passando pelo México. Na segunda, investigação foi realizada entre julho de 2018 e março de 2020, acompanhando eventos e encontros das crianças Sem Terrinha.
As infâncias na Caravana de migrantes “Pueblo sin Fronteras”
O papel das crianças no processo de migrar pelo continente americano sofreu diversas alterações devido à sua dinamicidade imposta nos trajetos de buscar atravessar as fronteiras nacionais, legais, sociais e geracionais. As Caravanas de migrantes vêm desafiando cada vez mais os contornos da estrutura geopolítica e social da mobilidade humana no continente americano. A cada Caravana, dinâmicas e estratégias são lançadas, levando os pesquisadores a procurar entendê-las de forma mais ampla a partir do trabalho coletivo e cooperativo de experiências etnográficas sobre suas diversas edições e momentos de luta (Glockner-Fagetti, 2019; Varela-Huerta, 2020).
Importante destacar que as Caravanas desafiam as estratégias legal-institucionais e histórico-alternativas de impedir a mobilidade humana entre territórios nacionais. Essas estratégias são, do lado do Estado, deter e deportar, e, do lado de migrantes e coyotes, se fazer valer da clandestinidade e da extorsão para delimitar os trajetos por onde mover-se pelo continente americano. É a partir da visibilidade midiática, da busca pela legalidade e da superexposição de suas vulnerabilidades que milhares de migrantes se juntam em caravanas para percorrer o território mexicano rumo à fronteira com os Estados Unidos.
Entre a insurreição e a rebelião, onde Amarela Varela-Huerta e Lisa McLean (2019) apontam estarem as Caravanas, existe o processo que afetiva e politicamente transforma a trajetória dos migrantes e, aqui em especial, das crianças que puderam, por meio dessa mobilização, fazer tal jornada em companhia de suas famílias.
Nas últimas décadas, familiares vêm sendo separados durante o percurso. Algumas vezes se trata de estratégia escolhida pelos próprios migrantes, que buscam tornar menos cara e arriscada a viagem feita por homens adultos, mulheres com crianças ou crianças sozinhas. Mas, não raro, tem sido uma estratégia do Estado para intimidar a circulação dos migrantes, fazendo uso do cruel mecanismo de separar famílias. No entanto, foi por meio das Caravanas que os grupos familiares migrantes puderam reduzir o custo e os riscos e viabilizar a realização do trajeto juntos, ainda que permaneçam os aspectos violentos da “zona gris”[2]. A travessia segue marcada por sentimentos de temor e angústia em torno da iminência de diversas violências perpetradas pelo Estado ou pelo crime organizado.
As situações a que estão expostas as crianças migrantes impõem os limites e a necessidade do seu protagonismo. Desde muito cedo, seus afetos, sua concepção de família e sua perspectiva de futuro carregam sinais da violência estrutural em todos os marcadores – de classe, gênero, raça, etnia, geração, nacionalidade etc. Diante disso, a “violência por aceleração” (Alvárez Velasco & Guillot Cuéllar, 2012) transforma a interação e participação dessas crianças nas esferas privada e pública.
Kevin e Dulce[3] eram algumas das muitas crianças que, junto à Caravana, chegavam à cidade de Hermosillo, em 2018, 20 dias após saírem de Tapachula, cidade ao sul do México. A partir da perspectiva delas é que vamos analisar como foram construindo seu próprio espaço-tempo de participação e protagonismo.
Os motivos que levaram famílias como as de Kevin e Dulce a participarem da Caravana guardam peculiaridades, mas têm em comum o cenário de violência estrutural a que estão submetidos nos seus países de origem. Dulce pôde resumir em seu desenho o cenário que deixava em Honduras, ao mesmo tempo que apresentava o que gostaria de vivenciar no futuro – já que, em contraposição ao presidente atual, seria ela a presidente de seu país.
Em Hermosillo, após passarem por descarrilamento de trem, tentativas de assalto, adversidades de tempo e escassez de comida, as negociações junto ao Instituto Nacional de Migração (INM) mexicano, para regularização dos vistos de trânsito já vencidos, interromperam o percurso de parte da Caravana por cerca de três meses.
Nesse período, a Caravana se viu acolhida e abrigada por instituições religiosas e, eventualmente, instituições estatais, acarretando a divisão ocasional dos migrantes em grupos distintos. Nesta complexa dinâmica, as crianças passaram a ter o importante papel de interlocutoras entre os grupos acolhidos nos diversos albergues. Seu protagonismo na relação com os demais atores dava-se, tanto por serem fonte da preocupação e cuidado de mães e pais, como também por conseguirem circular de forma muito peculiar entre os diferentes espaços e, assim, viabilizarem trocas de informações e doações entre os grupos.
Kevin e Dulce demonstravam dominar várias das dinâmicas estabelecidas entre pequenos grupos, espaços e instituições. Por exemplo, aos domingos eram realizados cultos em uma igreja que funcionava em um dos abrigos. Os membros da Caravana tinham que retirar seus pertences nesses dias e, ainda que as refeições fornecidas pela igreja fossem mantidas, o acesso ao banheiro e à água ficavam restritos ao longo do dia. Nesses momentos as crianças exerciam seu papel de informantes e intermediadoras, sendo as únicas a conseguir que abrissem uma das portas da igreja, e, assim, enchiam garrafas e galões de água, descobriam o cardápio do dia e em quanto tempo iriam servir as refeições.
As crianças da Caravana apresentam aspectos de um processo identitário construído por meio dessa ação coletiva distinto dos relatos apresentados pelas crianças que experienciam o trajeto de maneira clandestina, por meio de coyotes ou aglomeradas em contêineres de caminhões. Foi possível me encontrar com algumas destas nos abrigos do Estado antes de serem deportadas, e a identificação das próprias crianças como migrantes aparecia com diversos sentidos, mas em sua maioria vazios ou mesmo negativos para a construção de uma identidade política. Era bastante comum que o entendimento de “ser migrante” ou não apresentava autoidentificação (porque o trajeto havia sido apenas uma “viagem”) ou apresentava uma carga xenófoba e preconceituosa (Pavez-Soto, 2017) ou, ainda, para agentes do Estado, o esvaziamento se dava de forma a apontar apenas o status legal de (in)documentação, escondendo as certezas de morte física ou social a que essas pessoas estão submetidas (Terrio, 2015).
Entretanto, para as crianças da Caravana o conceito “migrante” foi tomando contornos de identidade não encontrados fora dessa ação de mobilização. A experiência nas Caravanas permitiu, por meio da convivência e do alargamento do tempo em se percorrer o trajeto, que se construísse um outro senso de identificação com o processo de migrar. Ainda que não se pretendesse explicitamente criar espaços-tempo de participação e de protagonismo das crianças, os “atores envolvidos na performatividade dessa forma de migração” (Varela-Huerta & Mclean, 2019, p. 167) trouxeram alterações bastante significativas na forma em que elas se identificaram e participaram dos processos de lutas.
Foi possível perceber na Caravana, como as crianças foram conformando suas próprias ideias sobre migrar e sobre construir um coletivo com esse propósito.
Ao mesmo tempo que suas falas revelam o quão simples deveria ser chegar a outro país, entendiam as dificuldades que estavam sendo impostas em torno de vistos e permissões para transitar com seus corpos. Enquanto os dias em Hermosillo se prolongavam, dadas as difíceis negociações com o INM, Kevin e Dulce iam se inteirando das dificuldades de garantir seus “papéis” para poder seguir viagem e iam conformando o que significava a mobilização da Caravana em torno do direito de migrar.
O não cumprimento da promessa de regularização dos vistos de trânsito e da expedição de vistos humanitários fez com que, por diversos momentos, a Caravana organizasse marchas e acampamentos em frente ao INM, que ora se recusava a receber o grupo, ora o recebia com promessas não cumpridas, ora as cumpria para algumas dezenas de pessoas, dando-lhes seus vistos humanitários ou permissões de trânsito[4].
Junto às marchas e protestos, os organizadores decidiram realizar uma greve de fome em frente ao INM. A primeira orientação tinha sido que todos os participantes da Caravana fariam a greve, mas membros do Conselho Nacional de Direitos Humanos mexicano negociaram com a organização de “Pueblo Sin Fronteras” para que se restringisse apenas àqueles que estivessem com condições mínimas de saúde, o que excluiria mulheres grávidas e crianças. A greve de fome iniciou-se com um grupo de dez pessoas. Nos dias que se seguiram, outros membros foram aderindo e reforçando o protesto. Dulce nos conta, semanas depois, alguns dos desdobramentos dessa ação:
A mobilização dos migrantes por meio da Caravana fez a conflituosa relação com o Estado e a necessidade de apoio de membros da sociedade civil serem expostas no centro do debate público, em meio à dinâmica de contradição existente entre o direito humano de migrar e as políticas punitivistas travestidas de políticas de segurança nacional. Essa dubiedade de ser o mesmo ente estatal a garantir direitos e a punir os migrantes estava presente para Dulce:
Ainda que caiba discutir a permanência dos efeitos das Caravanas como uma ação coletiva que poderia circunscrever-se apenas a um somatório de demandas individuais, é possível perceber nessa nova configuração da luta migrante um novo horizonte de mobilização política em torno da defesa do direito de migrar. Sob a perspectiva das crianças, essa ação coletiva demonstrou alterar a própria formação da identidade migrante e, por consequência, da sua luta por direitos.
Participações infantis nos Encontros Sem Terrinha
Em artigo recente analisamos as estratégias de construção do protagonismo das crianças no processo de organização e realização do 1. Encontro Nacional das Crianças Sem Terrinha (Gouvea et al., 2019). Apresentamos aqui dois momentos do trabalho de campo posteriores àquele evento, com o objetivo de analisar como as decisões políticas tomadas pelas crianças ao final do Encontro Nacional têm impactado em reorganizações internas do movimento social e no reconhecimento das crianças como atores políticos. A implicação do pesquisador como educador infantil no movimento social possibilitou acompanhar, através de pesquisa caráter etnográfico, esse processo de mudanças internas provocado pelas crianças.
A trajetória de construção do lugar das crianças como protagonistas da luta pela terra faz parte da história do MST (Caldart, 2012). Junto com suas famílias, elas ocupam a terra e participam das diversas dimensões da luta: nas ocupações, no cotidiano dos acampamentos e assentamentos, nas escolas dos assentamentos, na Ciranda Infantil ou nos Encontros Sem Terrinha.
A experiência infantil se dá a partir das decisões tomadas em uma unidade maior, a família, que decide entrar no MST, ocupar a terra e conquistar um pedaço de chão. Não está colocado a priori para as crianças terem autonomia nas decisões. É no interior dessas relações intergeracionais, hierárquicas e socialmente demarcadas que se constitui (e se tensiona) seu protagonismo.
As crianças, como sujeitos do movimento, diversas vezes demandaram atenção do MST para as suas reivindicações, assim como se interpuseram como atores políticos lutando pelos seus direitos básicos (Rossetto et al., 2015) em diversas mobilizações infantis (Ramos & Aquino, 2019). Assim, a escolha desses dois momentos do campo também se deu pela processualidade que evidencia a organização coletiva do movimento social em torno da infância e a construção do protagonismo infantil.
A análise tem início com a leitura da Carta de Compromisso das crianças[5] no Encontro Nacional, em 2018, na qual enfatizaram, dentre outros pontos, a luta pelos direitos das crianças, a identidade Sem Terrinha, a necessidade de sua escuta pelos adultos Sem Terra, a defesa de sua auto-organização e participação como coordenadoras em reuniões nos acampamentos e assentamentos. Um ano após o Encontro Nacional, o MST do estado de MG organizou uma oficina de preparação para os encontros regionais das crianças com o objetivo de garantir o protagonismo delas na coordenação dos encontros.
Durante os três dias de oficina, participaram dez crianças, entre 7 e 12 anos (6 meninas e 4 meninos), e treze educadoras, dos diversos acampamentos e assentamentos do MST no estado de MG. A mobilização de pessoas e recursos na realização da oficina demonstra o impacto da demanda infantil por maior protagonismo.
A programação da oficina tratou de três temas: direitos das crianças, alimentação saudável e planejamento/preparação dos encontros Sem Terrinha de cada regional. Nos dois primeiros, trabalhou-se a partir de atividades e brincadeiras conduzidas por educadoras/es, trazendo propostas de metodologias de trabalho com as crianças que pudessem ser utilizadas posteriormente nos encontros regionais. Além disso, abordando diversas linguagens, foram realizadas oficina de poesia, aula de percussão e “tiveram a experiência de construir uma rádio e produzir um spot de divulgação dos encontros Sem Terrinha, reforçando a comunicação como papel de todos os sujeitos da organização” (MST, 2019).
O tema dos direitos das crianças foi abordado a partir da dinâmica da ilha deserta, em que se estimulou a auto-organização das crianças para a sobrevivência em uma ilha imaginária após um naufrágio. Elas se organizaram em grupos de trabalho para resolverem problemas como moradia, alimentação, segurança, saúde, infraestrutura etc. Na assembleia da ilha conversaram e decidiram sobre os regimes de trabalho, localização das moradias, rotatividade das funções, coleta e tratamento de água, modo de produção coletiva de alimentos, se teriam uma liderança ou seriam decisões coletivas.
Tiveram que lidar com problemas que as provocaram a discutir e estabelecer regras de convivência, leis e direitos na ilha – como a questão da água, em que uma das meninas mais novas falou, decidida, respondendo à tentativa de privatização: “Não pode! A água é para todos, é pública”.
Na roda de conversa após a dinâmica, retomamos como aconteceu a organização coletiva delas na ilha.
No decorrer da conversa, as crianças relataram que já haviam vivenciado muitas das questões tematizadas na brincadeira. Recordaram as dificuldades da vida nos acampamentos e afirmaram que, nessas situações, “você tem que aprender a dividir, tem que compartilhar as coisas”, como relatou uma das meninas. Na reunião de planejamento, propuseram refazer a mesma dinâmica nos encontros em suas regiões e, ao final da oficina, as crianças decidiram que atuariam ativamente em reuniões com adultos e crianças, nas áreas onde vivem, a fim de mobilizar as pessoas para os encontros regionais.
De maneira geral, os encontros Sem Terrinha têm como objetivo a luta por demandas definidas coletivamente, que se tornam pauta de negociação com o Estado, muitas vezes apenas efetivadas após mobilizações infantis (Gouvea et al., 2019). Os encontros locais ou regionais se apresentam como reunião das crianças na construção de identidade, festividade, vivência e formação política. Esse é o caso do encontro aqui relatado, caracterizado como um encontro interno e sem visibilidade para o conjunto da sociedade, demarcando um espaço organizativo e festivo da dinâmica do movimento social. No entanto, este trouxe uma especificidade: levantar demandas das crianças para organização e atuação em suas respectivas comunidades.
A construção teve início em agosto, após a oficina estadual, e foi realizado em novembro do mesmo ano. A temporalidade de organização com as crianças é um elemento importante, pois depende das lideranças do movimento e da sua participação permanente nos espaços adultos de decisão. Seguem-se lógicas e linguagens adultas, elemento que evidencia contradições e tensões na participação das crianças.
O encontro regional ocorreu em um assentamento batizado em homenagem a uma criança Sem Terrinha que morreu em um acidente de automóvel. Abriga 120 famílias, contando com equipamentos e espaços coletivos, como uma escola do campo, em que a direção e maioria dos educadores são assentadas/os do MST. Segundo esta diretora: “as escolas dentro dos assentamentos e acampamentos surgem a partir da organização das famílias, do Setor de Educação e da luta do povo. [...] A escola dentro das nossas áreas tem esse desafio constante de construir a liberdade” (MST, 2020).
A escola é uma das dimensões da relação do movimento social com o Estado na qual convivem diálogo, negociação, afastamento e pressão. É um espaço em que se vai além da luta pela terra, abarcando demandas pelo acesso a outros direitos básicos. A relação é marcada por uma tensão constante que se apresenta às vezes de formas mais burocráticas, às vezes de formas mais violentas, vivenciadas pelas crianças e suas famílias, como por exemplo as resistências às ameaças de despejo.
O encontro regional foi realizado no espaço cultural da escola. Dele participaram mais de 40 crianças de três áreas do MST da região, como também suas famílias, trabalhadoras da escola, lideranças adultas do movimento, apoiadoras/es, educadoras/es, brincantes etc. A infância no MST envolve todo o conjunto do movimento social para o cuidado, educação e formação das novas gerações de sujeitos políticos.
Faz parte do cotidiano dessas crianças a participação nas reuniões, nas assembleias, nas marchas, nas mobilizações. Ainda que compartilhem com os adultos esses momentos, não existe uma centralidade da participação infantil. Mas, ao se proporem a organizar um encontro delas conseguem, a partir dessas experiências anteriores, fazer um planejamento e são capazes de tomar decisões coletivas.
As crianças planejaram um encontro em cuja condução se propuseram a ser protagonistas. Apesar da coordenação diária fosse compartilhada com adultos, eram elas as responsáveis pela direção das atividades do encontro. Mesmo com dificuldades, e ajudadas pelas educadoras, elas cumpriram a tarefa – característica distinta de encontros anteriores, em que havia a centralidade da coordenação adulta.
A realização da mesma dinâmica da ilha trouxe diferentes questões para a auto-organização das crianças na brincadeira. Com a participação de um número maior de meninas e meninos, o exercício da decisão coletiva foi bastante marcante para elas. Elemento que foi retomado na conversa após a brincadeira em que disseram se sentir incomodadas pelo pouco espaço que tinham para decisões sobre suas próprias vidas no interior de suas famílias e nos espaços decisórios da comunidade.
A conversa as mobilizou para se reunirem em pequenos grupos nos quais levantaram algumas demandas: mais oficinas culturais e momentos de reunião (já que são crianças de comunidades diferentes) e a construção de espaços de lazer. Ao final do encontro, as educadoras instigaram-nas a sistematizar essas propostas para que apresentassem na reunião da direção regional do movimento. Para isso, as crianças escolheram um grupo de representantes que contemplasse igualdade de gênero, aspecto requerido por elas mesmas.
Ao trazer esses dois momentos do campo, partes de um mesmo processo, podemos refletir sobre as possíveis formas de protagonismo infantil que as crianças têm construído em suas experiências no interior de um movimento social. Se, por um lado, elas integram o movimento como parte da família que ocupa a terra, por outro, a construção da identidade Sem Terrinha, como atores políticos da luta pela terra, se dá pela permanência (conquista da terra) e vivência delas na dinâmica do movimento social que tem como objetivo a construção de um projeto político alternativo. A experiência social que elas compartilham como atores coletivos modifica e constitui uma outra infância, que atua politicamente, tem consciência política e a luta social atravessa todas as dimensões da sua vida.
Considerações Finais
As participações infantis nas experiências apresentadas mostram-se distintas, em função das características de cada uma. Destaca-se o caráter efêmero da caravana, em que as ações são circunscritas ao objetivo imediato da travessia. Ao contrário, o MST caracteriza-se por ser um movimento social que tem alcance político de transformação que ultrapassa as demandas pela posse da terra. Verifica-se que tal distinção resulta em formas de participação e ações políticas infantis caracteristicamente diversas. A centralidade do projeto de transformação social do MST informa a necessidade de formação das novas gerações. Tal questão mostra-se ausente nas caravanas, em que o sucesso do movimento migratório do núcleo familiar define seu alcance, conferindo ao coletivo um caráter transitório e precário.
No entanto, ambos contam com destacada participação de meninos e meninas que, através do desenvolvimento de ações de intervenção no mundo social, constroem uma reflexividade característica. Tal reflexividade configura-se como experiência de ação política que modifica a compreensão sobre o mundo social, desenvolvendo uma consciência política.
A inserção de meninos e meninas nos coletivos analisados forja a construção de uma consciência mais ampla sobre as condições de desigualdade e exclusão da sociedade em que vivem, sendo as possibilidades de superação definidas pela participação num coletivo, para além das demandas individuais. No interior deste coletivo, suas ações são valorizadas na medida em que contribuem para sua manutenção, ainda que alijadas de poder decisório. Tais experiências e práticas de participação corroboram a crítica ao paradigma individualista liberal apresentado pela CDC, assim como não se enquadra em tipologias de participação (Hart, 1993) comumente utilizadas nesses tipos de análise.
No caso do MST, a organização de uma instância geracional específica, dentro do Movimento, provoca não apenas a visibilização das demandas do grupo, mas também visibiliza as tensões no interior de uma ordem geracional em que os adultos detêm maior poder. Neste sentido, a reivindicação de maior autonomia e protagonismo na condução dos encontros demonstra como a reflexividade possibilita-lhes analisar não apenas as relações de poder e dominação na sociedade mais ampla, mas também as presentes no interior do movimento, definidas por hierarquias de geração e gênero.
Esta reflexividade é experimentada por meninos e meninas no recurso a outras linguagens, como a corporal e a lúdica, diferentemente da reflexividade adulta, centrada no recurso ao discurso oral e escrito. Neste sentido, o caráter pragmático e performático da ação política infantil interroga e tensiona o próprio conceito de política, em seu adultocentrismo.
Nas Caravanas, a experiência de participação infantil parece alterar a construção da identidade migrante e da consciência da sua luta por direitos. Ainda que não apresentem a intencionalidade de construção do espaço-tempo de participação política das crianças, a convivência com diferentes famílias e histórias, as dificuldades e situações vivenciadas por elas e o alargamento do tempo em percorrer o trajeto vão conformando seus significados sobre a mobilização coletiva e suas ideias sobre o direito de migrar.
A experiência de migrar em coletividade se apresenta como processo de constituição consciente dos sujeitos a partir da luta. É fazer-se migrante a partir das situações antagônicas que vivenciam, das contradições que enfrentam, num processo que afetiva e politicamente transforma a trajetória dessas crianças.
A dimensão política das ações e do protagonismo infantil se apresenta, assim, como as experiências que vivenciam, as ações que realizam e, ao mesmo tempo, os sentidos a elas atribuídos. Como atores sociais que compartilham com suas famílias lutas e mobilizações, exercem ações políticas como integrantes de uma coletividade organizada. A análise da sua participação em ambas experiências possibilita-nos tensionar a concepção normativa universalizante ainda presente em documentos de agências internacionais e no campo dos estudos da infância.
Resumo
Main Text
Introdução
Ações políticas infantis
Infâncias, movimentos sociais e ações coletivas
As infâncias na Caravana de migrantes “Pueblo sin Fronteras”
Participações infantis nos Encontros Sem Terrinha
Considerações Finais