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Mon, 18 Jan 2021 in Linhas Críticas
“É preciso incluir os bebês!” Sentidos e apostas no diálogo com mulheres-mães
Resumo
O artigo apresenta reflexões iniciais de pesquisa que discute a categoria conceitual bebês na área da Educação. O recorte emerge da leitura de entrevistas semiestruturadas realizadas com um grupo de mulheres-mãese indaga: o que suas narrativas permitem compreender sobre olhares e concepções sobre ser bebê? Escutar mulheres-mães mobiliza a circularidade de sentidos e apostas que apontam a necessidade da sociedade, de modo mais estrutural, assumir a prerrogativa de que é preciso incluir os bebês (Ploennes, 2014). Gottlieb (2012), Scavone (2001; 2004), Rezende (2015), referendam a tessitura do trabalho.
Main Text
Dedicado a Esther Noro (in memoriam)
Palavras iniciais
Pode-se afirmar que a presença dos bebês torna possível tanto a reinvenção quanto a continuidade das sociedades. O conjunto de sentidos que envolve a chegada dos bebês no mundo são definidos por pactos estabelecidos no interior das culturas, reunindo ritos e práticas que os precedem, contornam suas histórias desde o seu nascimento, forjam compreensões que fundam gestos, escolhas, olhares endereçados a essas novas pessoas que chegam cotidianamente ao mundo.
Quais dimensões dos contextos que acolhem e circundam os bebês nos seus inícios são conhecidas e tomadas como parte da construção da própria tessitura social? Para Ploennes (2014, s.p., grifos próprios), a sociedade brasileira ainda não incluiu o bebê como prioridade no seu debate estrutural, de modo que “as suas necessidades e os seus direitos se resumem hoje ao espaço do privado, à casa e ao meio familiar”. Em que medida conhecer histórias que precedem a imersão dos bebês nos contextos sociais mais amplos, pode potencializar a construção de uma agenda político-social que envolva diferentes áreas (Saúde, Educação, Políticas Sociais, Comunicação, Antropologia, Sociologia, Psicanálise, entre outras) incluindo-os como legítimos possuidores de direitos na estrutura social?
Essas e outras questões impulsionam as reflexões deste artigo, que se desdobra de projeto de pesquisa[1] institucional situado na área da Educação Infantil, tendo como um dos seus objetivos entrecruzar olhares de diferentes atores sociais (famílias, professoras, professores, gestores públicos, dentre outras/os) no que diz respeito às suas concepções sobre os bebês. O recorte aqui proposto apresenta narrativas de um grupo de mulheres-mães que participaram do movimento inicial da investigação, como veremos adiante.
A Constituição Federal (Brasil, 1988, s.p., grifos próprios), no seu artigo 205, institui que a “educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Posteriormente, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996) define a Educação Infantil como a primeira etapa da educação básica, estabelecendo o atendimento educacional de crianças até 5 anos[2] de idade em creches e pré-escolas, ficando a cargo dos municípios a elaboração de critérios para essa inserção. Em linhas gerais, o atendimento público e gratuito tornou possível o ingresso para todas as crianças com meses de vida em instituições educacionais[3]. Tal processo envolve amplo e complexo histórico, que não propomos aprofundar neste artigo, que permite reconhecer os desafios colocados à Educação na emergência de constituir estratégias e princípios que orientem um trabalho que coteje o pleno desenvolvimento da pessoa (Brasil, 1988).
Mas, que pessoa é essa que pode viver sua inserção na Educação Infantil quando não anda nem fala, que, no contexto dessa etapa educacional, vive e experimenta transformações que resultam das relações interpessoais, intersubjetivas e do complexo e exigente exercício de inserção na cultura? Essa indagação parece pertinente, uma vez que tensiona considerar singularidades. Não há dúvidas de que uma criança de colo, que vive processos iniciais de construção da linguagem, da autonomia dos próprios movimentos corporais, entre outros aspectos, revela travessias do constituir-se ser humano da cultura (Pino, 2005) diferentes das crianças que falam, andam, correm, pulam e se comunicam verbalmente. O que se tem aprendido a observar do miúdo, dos detalhes sutis dessa travessia, no contexto da Educação Infantil? Além de observar, como se tem compreendido e sustentado as sutilezas desse percurso humano?
No que tange aos estudos com/sobre bebês no contexto da Educação Infantil, revisão de literatura de documentos e pesquisas da área da Educação Infantil (Barbosa & Richter, 2010; entre outros) revela a recorrência de uso dos termos bebês, crianças bem pequenas, sem que, muitas das vezes, esteja evidenciada a justificativa para tal definição. O que, então, definiria o termo na sua dimensão teórico-conceitual? Corte etário, eleição de modos singulares de manifestações e expressões (os balbucios, o engatinhar, a dependência de um outro que provenha a manutenção de necessidades básicas como higiene e cuidados corporais), seu lugar no debate social e político?
Singularidades dos modos de se manifestar e expressar daqueles que têm sido denominados pelo termo bebês vêm ganhando expressividade no cenário da investigação científica, sobretudo na Educação Infantil (Guimarães, 2008; Coutinho, 2010; Mattos, 2018; Arruda, 2019)[4]. Tal movimento permite reconhecer a constituição de pelo menos dois movimentos que se articulam: a perspectiva de se assumir os bebês como categoria teórico-conceitual de investigação; redimensionamento dos sentidos e propostas no contexto da formação e das práticas de professoras e professores que trabalham com essas pessoas.
Arruda (2019) assume investigar metodologicamente a categoria bebê a partir de três eixos: condição, situação e lugar. A partir de levantamento de pesquisa, a autora constata a precariedade da oferta de atendimento para aqueles cuja idade é inferior a um ano de vida, levando-a a justificar o uso do termo bebê como sujeito de investigação a partir do déficit do atendimento em creches na Baixada Fluminense. Desse modo, o corte etário não delimita o ser bebê, mas situa-se na ausência do cumprimento político, sem que com isso se pretenda instituir uma delimitação conceitual para o bebê, por compreender que a “condição do “bebê” enquanto sujeito está além de uma idade específica, e que os limites etários servem para designá-lo a uma pertença temporal bastante precisa que configura uma imagem complementar à sua existência, a partir do olhar do outro, construída dentro de modelos socialmente sancionados” (Arruda, 2019, p. 20).
Perspectivas que, longe de serem neutras, impõem desafios epistemológicos, éticos, metodológicos e levam a indagar: quais são as implicações, desafios, limites, possibilidades de se assumir o termo bebê como categoria teórico conceitual de estudo e investigação? De que modo reconhecer e legitimar especificidades, sobretudo transicionais dos modos de ser, de se expressar, sem provocar ruptura epistêmica com o conceito de criança? De que modo a sociedade tem se debruçado sobre a complexidade das travessias experimentadas pelas crianças, desde que são bebês? Se não há contornos que sustentem a legitimidade de um termo, o que revela sua polissemia no cenário das pesquisas?
Para Nascimento et al. (2020, p. 440):
Coadunando com a necessária vigilância epistêmica que o debate exige, faz-se necessário destacar que, na referida pesquisa que origina o presente artigo, a perspectiva adotada para debater sobre ser bebê reflete a intenção de mapear e compreender modos de ser e existir implicados nos processos iniciais da vida, de modo que este recorte se delimita mais em tatear indícios sobre concepções do que definir um com corte etário para a categoria bebê. O intuito de compreender modos de ser bebê se propõe como aposta que tencione o reconhecimento social da delicadeza implicada no constituir-se pessoa da/na cultura, nas travessias ordinárias que fundam lugares de pertencimento das pessoas na sociedade. Bebês, portanto, são aqui reconhecidos e tomados como pessoas de relação, cujas expressões, manifestações, singularidades são reconhecidas como intensos processos interpessoais, intersubjetivos de inserção e imersão na cultura que os acolhe. Como pessoas que ocupam esse lugar no mundo, refletem e refratam sentidos e apostas da sociedade na qual estão inseridos e, desse modo, revelam muito do que a sociedade manifesta de si mesma.
Como se entrecruzam olhares de duas significativas instituições responsáveis pelo acolhimento, provisão, sustento, amparo nos primeiros anos de vida: famílias e instituições de Educação Infantil? É na articulação dessas apostas que escutar mulheres-mães revela sua face mais potente. Tal nuance favorece entrecruzar o debate sobre os bebês na interface com os estudos feministas, suas agendas de lutas, tensões, conquistas que reposicionam mulheres-mães e, no seu escopo, os próprios bebês. No campo da Educação Infantil, o que podemos aprender sobre os bebês escutando as histórias das mulheres? No que tange a um cenário mais amplo das ciências humanas e sociais, os estudos remetem às condições do ser mulher, nas transformações dos sentidos da maternidade, da paternidade, das reconfigurações em torno das perspectivas de família e de gênero (Scavone, 2004; Finco et al., 2018). O recorte proposto neste artigo emerge de entrevistas semiestruturadas realizadas com mulheres-mães, com o intuito de alargar o debate em torno de concepções sobre ser bebê, para além da fronteira educacional, incluindo outra esfera do discurso social.
Na tensão entre denúncia e intensa agenda de luta das/dos trabalhadoras/res, o bebê emerge como alguém que altera a paisagem social, cidadão de direitos, filha/o da mulher e mãe trabalhadora que reivindica do Estado e da sociedade amplo debate de fala e de escuta para os inúmeros desafios implicados no papel de receber uma nova pessoa que chega ao mundo, num cenário de transformações políticas e sociais que alteram as dinâmicas em torno da divisão sexual do trabalho. Nesse sentido, a consolidação da creche[5] como direito das crianças, desde que são bebês, a um espaço potencial de sociabilidade, convivência com e entre pares e outros adultos, contribuiu no reordenamento do debate, uma vez que “o movimento feminista trouxe para a luta a crítica ao papel tradicional da mulher na família e a defesa da responsabilidade de toda a sociedade em relação à educação das novas gerações’ (Finco et al., 2015, p. 9) e, também, por ratificar que “a desvalorização do bebê decorre de ideologias de gênero e de idade que valorizam o padrão adulto e masculino associado à produção e à administração da riqueza e não à produção e à administração da vida” (Rosemberg, 2015, p. 212).
Escutar mulheres-mães diz respeito a fomentar certa circularidade das narrativas (Rezende, 2015) que envolvem os bebês antes dos ritos de iniciação e inserção na vida cultural mais estendida, nas instituições[6], tornando visíveis e públicos os desafios que atravessam a decisão (ou não) de se ter um bebê, pois, “ao narrarem suas gestações, as mulheres falam de si para outros através de histórias que articulam suas biografias pessoais a mudanças nas relações sociais” (Rezende, 2015, pp. 215-216), políticas, culturais. Por que escutar essas histórias? Porque narrar e escutar histórias permite aos sujeitos encontrar o fio de suas tradições, conhecer seu passado, suas origens, reconhecendo-se como parte integrante da comunidade a qual pertence, da qual participa, uma vez que a “[…] minha própria história é construída e partilhada por elementos que estão presentes na memória de outra pessoa […]. Cada história individual está inevitavelmente enredada em várias histórias, formando a dimensão coletiva de cada existência pessoal” (Jobim e Souza & Pereira, 1998, p. 40).
Escutar histórias sobre a chegada dos bebês permite mapear sensibilidades, escolhas, receios, laços humanos que adentram e penetram o universo da cultura, das instituições, da vida pública nas quais os bebês e aqueles responsáveis pelos seus cuidados pertencem. Partilhar histórias sobre os começos reafirma o necessário compromisso com a solidariedade humana, no reconhecimento dos desafios que envolvem responsabilidade social, política, pública no acolhimento e legitimidade dos bebês como integrantes da humanidade, confirmando sua continuidade.
Histórias de escolhas e começos
Em A mulher dos pés descalços, Scholastique Mukasonga (2017) desvela às/aos leitoras/res diferentes cosmovisões sobre maternidade, educação e cuidado das crianças, desde que são bebês, na cultura tutsi[7]. Sustentada por memórias construídas junto à mãe e outros membros de sua família, escreve sobre o lugar reservado às mulheres que se tornam mães, o papel da comunidade na participação da nova função que emerge a partir de uma nova chegada ao mundo. Nasce um bebê e os sentidos partilhados entre os sujeitos da comunidade também são alterados.
Em outra cultura, a dos Beng[8], antes de nascer, os bebês habitam outro mundo, junto aos seus ancestrais; uma temporalidade plena de experiências e sabedoria. Por esse motivo, são recebidos e cuidados com máximo respeito quando chegam a este mundo, referendando a relação dos adultos em relação a este grupo:
A cultura Beng revela padrão social que inclui a participação de bebês e crianças na construção coletiva da vida, permitindo compreender que, naquele contexto, pessoas de pouca idade são levadas a sério (Ingold, 2019). Norte americana, na construção de sua etnografia a pesquisadora traça paralelos entre a sociedade Beng e seu país nativo. Entre outros aspectos, os modos de gestar e parir das mulheres Beng, bem como o papel da comunidade são destaques constantes, que influenciaram sua própria experiência no tornar-se mãe:
A imersão numa cultura radicalmente oposta à sua sensibiliza a pesquisadora a assumir o estranhamento frente a lógicas ocidentais e europeias que influenciam, até hoje, práticas e concepções. De que modo semelhanças e singularidades se apresentam no interior de nossas próprias estruturas?
Tendo essa indagação como disparador e horizonte, sem pretender esgotá-la, passamos agora ao contexto da pesquisa. Optou-se por apresentar um desenho geral do contexto e um breve perfil das mulheres-mães entrevistadas, por meio do qual expõem seus caminhos no processo de tonar-se mãe para, em seguida, refletir sobre suas apostas nas concepções sobre ser bebê.
Diferentes autoras (Scavone, 2004; Moura & Araújo 2004; Priori, 2018; 2020), destacam sobre o processo histórico da transformação dos sentidos em torno da maternidade, sobretudo, nos últimos quarenta anos, salientando sobre:
As narrativas das mulheres-mães partilhadas neste texto evidenciam essas questões, e permitem compreender que discutir concepções sobre ser bebê envolve camadas complexas do processo histórico que entrecruzam micro e macro. Em seus relatos, as mulheres-mães falam sobre escolhas, gravidez, parto, nascimento, maternidade e paternidade, casamento, vida, trabalho, solidão, expectativas, desejos, o papel do acesso à informação, decisões sobre institucionalização dos bebês, condições de vida, impacto da chegada do (s) bebê (s) nas suas vidas, suas impressões sobre a pessoa que o bebê é. Para esse grupo, marcado por diversidade econômica, geográfica, de formação, o olhar para o bebê como pessoa destaca-se como força de seus relatos.
Entre março de 2019 e maio de 2020[9], foram entrevistadas oito mulheres, com idades entre 28 e 41 anos, grávidas e mães de bebês até doze meses, de classe média de metrópole brasileira. O contato com as entrevistadas se deu a partir da rede de conhecimentos e relações do grupo de pesquisa. Os encontros ocorreram em diferentes bairros e espaços (residência das pesquisadoras e das entrevistadas; espaços públicos como livrarias, shopping, universidade, entre outros). A proposta da pesquisa foi sempre bem acolhida por todas, que mostravam interesse e abertura na partilha de suas experiências. No final de cada encontro, foram consultadas sobre o desejo de manterem seus nomes em sigilo. Com exceção de uma participante (incluindo seu companheiro), todas optaram por manter seus nomes próprios, bem como de seus filhos e filhas, conforme indicado entre parênteses.
A metodologia adotada foi entrevista semiestruturada (questões fechadas e um conjunto de perguntas abertas). À época da entrevista, duas mulheres viviam a primeira gestação; quatro mães da/o primeira/o filha/o; uma, mãe de duas (uma bebê de doze meses e uma adolescente de dezesseis); uma, mãe de três (uma menina de treze e, dois meninos, de dez anos e doze meses). Todas vivem uniões (casadas/união estável) heterossexuais e a decisão pela gravidez envolveu os respectivos companheiros. Todas exerciam atividade profissional antes da gravidez e, com exceção de uma, retornaram/retornariam após o período de licença maternidade. A renda média/casal é entre três e mais de dez salários mínimos. Todas possuem nível superior (áreas da Educação e/ou Psicologia, Música, Jornalismo), assim distribuídos: doutorado concluído (3); mestrado concluído (1); mestrado em andamento (3); especialização (1). Necessário destacar que, embora com formações iniciais em áreas distintas, todas as entrevistadas trabalham e/ou participam de atividades na área da Educação[10].
Optou-se por apresentar as mulheres e seus relatos e, em seguida, retomar destaques de suas narrativas. Esse encaminhamento metodológico coaduna com a perspectiva de colocar em primeiro plano histórias dos começos. O que cada história pode revelar em torno de concepções sobre ser bebê?
Desejo, experiência, vida, vontade, insegurança, saúde, medo, encontros, separações, planejamento, construção, susto, alegria, realização. Cada mulher, um relato, um ponto de vista. Na sutileza singular das experiências, sentidos históricos se cruzam. Entre todos, um fio parece unir a trama da narrativa: um bebê chegou na vida dessas mulheres. Muitas são as faces que emergem das entrevistas, constituindo movimento que revela processo histórico das transformações que impulsiona novos engendramentos familiares, bem como o exercício da maternidade:
Semelhanças e diferenças as aproximam, revelando percursos históricos, mas também subjetivo, que reposiciona mulheres-mães na sociedade, processos formativos (como conjunto de experiências que articulam conhecimentos e aprendizados ao longo da vida), conjunto de valores partilhados com membros de seus núcleos, sustentando decisões dimensionadas por escolhas reflexivas (Scavone, 2004). Entre o desejo – inegociável, construído, planejado, inesperado – e a decisão, são muitos os percursos que levaram as entrevistadas ao encontro com os bebês.
Sentidos e apostas sobre ser bebê
Conforme vimos, as narrativas compartilhadas pelas mulheres situam o percurso implicado ao tornarem-se mães, envolvendo processos formativos (estudo, redes, informações), conjunto de valores, dimensão reflexiva. Neste último tópico, busca-se levantar apontamentos a partir das narrativas que apontam concepções sobre ser bebê.
Qual é o olhar que a sociedade lança para os bebês? Os processos formativos de vida articulam contextos político-sociais que legitimam o reconhecimento legal das crianças (Brasil, 1988, 1990), o que não significa afirmar que há clareza e coerência nas práticas sociais que levem em conta suas singularidades, tampouco que bebês e crianças usufruam plenamente dos seus direitos. Nesse sentido, processos formativos de vida e dimensão reflexiva nem sempre estão acordados entre os membros de uma mesma sociedade.
O processo de assimilação de concepções e ações no interior da sociedade se faz de modo lento, gradual, na tensão entre tradição e perspectivas que emergem do debate estabelecido pelos sujeitos, pela e na (s) cultura (s). Como delineado nos tópicos anteriores, discutir maternidade na atualidade reflete tanto o passado, quanto lança luzes no presente e no futuro. Nesse sentido, é possível traçar um paralelo entre sentidos do tornar-se mulher-mãe e o modo como reflete nas representações e concepções do ser bebê.Na convergência entre muitas áreas e campos, em apostas teórico-conceituais, metodologias de pesquisas, entre muitos outros aspectos, torna-se possível assumir que o bebê é uma pessoa, um outro que está ali, na relação.
Reconhecer discursivamente a legitimidade desse lugar não exclui o desafio de operar para sua materialidade, revelando o desafio que tensiona a vida cotidiana em direção à consolidação dessa aposta: o que significa de verdade assumir o bebê como uma pessoa de relação? Que indícios se fazem presentes na fronteira entre conceber e agir na legitimidade desse lugar do bebê como pessoa? Quantas e quais ações são, em pequena ou larga medida, desrespeitosas? Quantas luzes são acessas diretamente nos olhos dos bebês, tornando-os invisíveis como um outro para quem o respeito é direito? As escolhas reflexivas de uma mulher, mãe, grávida sobre quais estratégias podem garantir o respeito ao seu filho, revelam a fragilidade desse lugar na esfera social. Maternidade e concepção sobre ser bebê se veem, portanto, diante do desafio de lutar por legitimação pública. E isso dá medo.
Na prática, assumir o bebê como pessoa implica responsabilidade diante da materialidade das ações subjacentes a tal concepção. São verbos que parecem responder o que na prática significa assumir o bebê como pessoa: receber, cuidar, banhar, alimentar, aprender vestígios e sinais, garantir tempo para os aprendizados dos processos, olhar, descobrir, estar aberto.
Amar como decorrência de afetos atravessados pela materialidade do verbo agir, desponta como horizonte dos sentidos e apostas em torno das concepções sobre ser bebê. Num contexto de hipervalorização da racionalidade, muitas vezes em detrimento dos afetos, do sentir, falar sobre amor que humaniza pode ser compreendido como pouco rigor científico. Mas, ao contrário, são apostas ancoradas em experiências de dar e cuidar da vida (Scavone, 2004) atravessadas pelos/nos corpos das mulheres. Como a sociedade acolhe tais perspectivas? O que oferece como horizonte de cumplicidade para as tarefas implicadas nos verbos? O que mulheres, mães, trabalhadoras, responsáveis pela chegada, provisão, educação dos bebês, almejam do mundo?
Ingold (2019, pp. 13-14), assume a perspectiva de uma antropologia que leve os outros a sério. Isso significa comprometer-se com o movimento de olhar o outro para além do que ele faz e diz e, “mais do que isso, devemos encarar o desafio que eles colocam às nossas concepções sobre como as coisas são, o tipo de mundo em que vivemos e como nos relacionamos com ele”.
O tipo de mundo que as mulheres-mães deste recorte de pesquisa almejam parece ser aquele que leve a elas próprias, suas narrativas e seus bebês a sério. O que isso significaria em plano prático? Não caberia à sociedade, no seu plano macro, comprometer-se com o desafio de olhar, escutar e, mais do que isso, reconhecer que a cidadania dos bebês se vincula a uma perspectiva de atuação no mundo que se faz na ação do presente? Ações que envolvem o reconhecimento das necessidades básicas de um bebê recém-chegado, que passará longos anos sob proteção e cuidado, se não dos seus responsáveis primeiros, do próprio Estado[15]? Se as necessidades diárias tais como alimentação, banho, zelo pela manutenção da saúde, educação – compartilhada com o Estado –, lazer, todas as outras que possam ser citadas, estão a cargo dos responsáveis primeiros, como a sociedade apoia qualitativamente tais ações? Rosemberg (2015) salienta que “vivemos uma época que proclama a igualdade de direitos entre homens e mulheres, mas não gera condições para o trabalho de mães de bebês ou crianças”.
Reconhecer a cidadania e os direitos dos bebês convoca a implicação com um sentimento de construção de sociedade que: (i) os reconhece como pessoas, cidadãs legítimas de direitos. (ii) se compromete com ações pequenas do cotidiano que tornem seu entorno mais propício e de qualidade de vida (como os espaços públicos em que mães, demais adultos e bebês usufruam como esfera de sociabilidade coletiva da vida); (iii) respeite sentidos subjetivos e objetivos dos seus responsáveis de referência para que possam sustentar escolhas respeitosas aos bebês.
Provisórios acabamentos
O presente texto apresentou apontamentos de pesquisa, situada na área Educação Infantil, que têm por objetivo mapear olhares, sentidos, concepções sobre ser bebê na sociedade. Trata-se de trabalho cujo processo se vê radicalmente atravessado pelo cenário que se impôs com a Pandemia do novo coronavírus. Neste momento, o Brasil soma o indecente número de mais de 180 mil mortes, dentre eles, contabiliza-se inúmeras gestantes e puérperas que perderam suas vidas para a doença. Seus bebês, assim desejamos, estão acolhidos em outros colos e entornos de afeto. Estarão?
O recorte proposto neste trabalho emerge de parte das análises de entrevistas semiestruturadas realizadas com mulheres-mães. As análises permitem considerar que assumir o bebê como pessoa resulta das lógicas e pactos assumidos no interior da sociedade, que envolve o reconhecimento da mulher, da possibilidade de acesso a informações que possibilitem que tomem decisões reflexivas (Scavone, 2001) no que tange a decisão de tornar-se mãe.
Gottlieb (2012, p. 67) afirma que “o trabalho de campo é, algumas vezes, estimulante, outras vezes, desconcertante e sempre uma combinação peculiar de cabeça e coração”. Nos identificamos com essa perspectiva, uma vez que escutar as histórias dessas mulheres – e em alguma medida foi escutar tantas outras vozes – nos atravessou de muitos sentidos, sobretudo no reconhecimento subjetivamente construído, mas objetivamente percebido de que todos fomos bebês um dia. Escutar permitiu nos reconectar com um tempo longínquo, mas que habita o interior de cada pessoa. Voltando ao nosso campo, nos indagamos: que dimensões dessas narrativas adentram os espaços coletivos de educação quando lá os bebês iniciam seus processos de inserção? O que sabemos sobre os seus inícios? De que modo escutar as narrativas de mulheres, mães, famílias pode contribuir no redimensionamento de um dado projeto de educação, de sociedade?
O conjunto do material apresentado contribui no alargamento de algumas perspectivas, delineando que o reconhecimento do bebê como pessoa envolve camadas complexas no interior do debate social, resultando de processo histórico que envolve, entre outros aspectos, transformações do papel da mulher na sociedade e nas culturas. Recortes de classe, raça, econômicos atravessam a construção das representações e imagens sobre ser bebê. As narrativas salientam o bebê como uma pessoa de relação, digna de direitos, o que não necessariamente se faz presente nas práticas cotidianas, embora seja reconhecido na legislação. Também indicam o desafio que atravessa a relação cotidiana, na qual se faz necessário redimensionar o tempo, aprender os indícios construídos nas relações, abertura para que possa construir o mundo todos os dias. Incluir os bebês implica, em larga medida, tomar conhecimento de seus começos, mas também do fio invisível da vida que conecta pessoas, tempos, espaços, culturas.
Que os tempos duros deste momento que atravessa a humanidade, ratifique a urgência de novos pactos sociais, sobretudo pelo comprometimento diário de confirmação do que preconiza a Carta Magna de 1988, (Brasil, 1988) sem que a sua confirmação seja seletiva.
Resumo
Main Text
Palavras iniciais
Histórias de escolhas e começos
Sentidos e apostas sobre ser bebê
Provisórios acabamentos