Typesetting
Thu, 20 Aug 2020 in Linhas Críticas
Arte e educação integral na concepção histórico-crítica: uma entrevista com Demerval Saviani
Resumo
Em 1976, Saviani afirmava que era lícito indagar se a ênfase na habilitação profissional é compatível com a formação integral do adolescente. Quase meio século depois, as questões relacionadas à formação integral voltam ao centro das discussões com as recentes reformas curriculares. Conhecido por defender a perspectiva histórico-crítica, Dermeval Saviani ressignifica a concepção de formação integral fundamentando-se em aspectos filosóficos coerentes com as necessidades concretas de seu tempo. Nesta entrevista, com o intuito de esclarecer um equívoco publicado, que o aponta como contrário à existência do componente “Arte” no currículo escolar, o autor apresenta seu posicionamento sobre a relevância da Arte no currículo para a formação humana integral, entre outras considerações importantes sobre as atuais reformas curriculares.
Main Text
Introdução
Em 1976, Saviani publicou uma pesquisa que analisava criticamente a organização escolar brasileira através das leis nº. 5.540/68 (lei de reforma universitária) e 5.692/71 (lei de reforma do 1º e 2º graus), que, naquele momento, tinha a ambição de haver reformado a lei 4.024/ 61 (lei de diretrizes e bases da educação nacional), afirmando que era lícito indagar se a ênfase na habilitação profissional é compatível com a formação integral do adolescente (Saviani, 1976). Quase meio século depois, as questões relacionadas à formação integral voltam ao centro das discussões com as recentes reformas curriculares que acontecem no Brasil e em vários outros países da América Latina, como, por ex., Chile e Argentina.
Conhecido por defender a perspectiva histórico-crítica, o Prof. Dermeval Saviani ressignifica a concepção de formação humana fundamentando-se em aspectos filosóficos coerentes com as necessidades concretas de seu tempo. Oferece-nos assim, pressupostos para um entendimento mais amplo das necessidades que satisfazem o currículo fazendo com que a escola não perca de vista o caráter transitório e contraditório da realidade.
Professor Emérito da UNICAMP, Pesquisador Emérito do CNPq e Coordenador Geral do Grupo de Estudos e Pesquisas "História, Sociedade e Educação no Brasil", atualmente, mesmo aposentado, continua atuando como Professor Titular Colaborador Pleno do Programa de Pós-Graduação em Educação da universidade citada. O autor, em sua vasta produção bibliográfica, reconhecida internacionalmente, domina com profundidade a história, a filosofia e a política educacional apresentando-se fiel à concepção materialista histórica e dialética, tomando o real como síntese de múltiplas determinações e preocupando-se com a prática educativa desenvolvida pelos educadores brasileiros procurando elevá-la do nível do senso comum à consciência filosófica.
Entendendo, ao ler os escritos do Prof. Saviani, que a educação é uma atividade que supõe a heterogeneidade no ponto de partida (e a homogeneidade no ponto de chegada), as entrevistadoras sentiram-se curiosas sobre seu ponto de vista em relação à presença da Arte no currículo. Tal curiosidade foi excitada quando, ao lermos um texto para aprofundamento teórico encontramos uma referência na qual o Prof. Saviani é citado como contrário à existência do componente “arte” no currículo escolar, dentro do contexto de elaboração da Lei de Diretrizes e Bases em 1996. Incrédulas com tal posicionamento, pois desenvolvem pesquisas sobre a relação entre o currículo de Arte e a formação humana integral utilizando a concepção histórico-crítica como referência, decidiram por entrar em contato via endereço eletrônico com o prof. Saviani para esclarecer o que parecia de imediato, um equívoco.
Prof. Saviani prontamente respondeu o e-mail das pesquisadoras e mais do que isso, concordou, gentilmente, em participar desta entrevista que passa a ter como objetivo colaborar com a comunidade acadêmica, não só para o esclarecimento da curiosidade, mas também para acrescentar seu posicionamento sobre a relevância da Arte no currículo para a formação humana integral. Certas da contribuição do Professor Saviani para as discussões sobre o tema, apresentam-se as questões que nortearam a entrevista, com as respectivas respostas por ele fornecidas via e-mail.
Entrevistadoras (E): Professor Saviani, na leitura de um texto que integra o livro “Ensino da Arte: Memória e História” (2010, p. 19) de autoria da professora Ana Mae Barbosa, grande referência para entender a história do ensino da Arte no Brasil, o professor é citado como sendo contrário à manutenção da Arte no currículo durante as lutas políticas no processo de elaboração da Lei de Diretrizes e Bases de 1996. A redação é a seguinte: “Saviani continuou sua campanha contra a Arte no currículo, liderando os que afirmavam que o currículo deveria ser recuperado por meio dos conteúdos e que a Arte, por não ter conteúdo, deveria ficar fora do currículo.” Em seguida a professora menciona que ao final do evento o senhor compartilhou a viagem de avião com Alfredo Bosi e comenta “Talvez a conversa de Bosi com Saviani nos ares tenha sido mais eficiente que o debate, porque depois Saviani, embora nunca haja se manifestado a favor das artes pelo menos deixou de atacá-la publicamente” (p. 20). Sobre as afirmações feitas pela professora Ana Mae, qual é o seu posicionamento?
Dermeval Saviani (DS): Na verdade, trata-se de algo que já me foi perguntado antes. Francamente, não sei de onde Ana Mae tirou essa conclusão. Essa posição jamais foi a minha. Ao contrário. Orgulho-me de ter, no início de minha carreira, em 1967, por uma circunstância fortuita da necessidade do Colégio da periferia de São Paulo no qual fui contratado para lecionar filosofia, ter sido instado a assumir a cadeira de história da arte que constava do currículo do primeiro ano clássico vespertino e noturno com apenas uma aula semanal. Além da raridade de licenciados nessa área era impossível à escola conseguir que um professor, com formação específica, se deslocasse até a periferia da cidade para lecionar apenas uma aula por semana. Assumi, então, a disciplina e desenvolvi um trabalho extremamente gratificante com os alunos de tal modo que lamento até hoje que, no ano seguinte, a disciplina tenha sido retirada do currículo impedindo a continuidade da experiência. Realmente não consigo alcançar que tipo de motivação levou Ana Mae Barbosa, cuja luta no campo da educação artística sempre admirei, a enunciar a referida frase. Talvez ela me tenha confundido com outra pessoa. Com efeito, como você anotou no e-mail, ela fez referência a uma viagem de avião que eu teria feito com Alfredo Bosi na qual ele teria conversado comigo sobre esse assunto. Ora, nunca viajei com Alfredo Bosi. Daí minha suposição de que ela me tenha confundido com outra pessoa.
E: O professor citou, no e-mail que trocamos, sua participação no XI Encontro Anual da Sociedade Brasileira de Educação Musical - ABEM, realizado no dia 4 de setembro de 2000 em Belém do Pará, reforçando seu posicionamento a respeito da importância da Arte no currículo. Para o senhor como podemos estabelecer a relação entre Arte e formação humana integral em uma concepção histórico-crítica?
DS: Como convidado da Mesa Redonda "Currículo e Sociedade"[1], os dois últimos tópicos do texto base da exposição que fiz relacionaram o ensino da música com a educação integral e a organização curricular. Se o sentido da educação se liga ao processo de produção da existência pelos próprios homens enquanto seres que necessitam aprender a se produzir a si mesmos, vê-se que educação não é outra coisa senão a promoção do homem. Mas o que significa, em termos educacionais, promover o homem? Significa tornar o homem cada vez mais capaz de conhecer os elementos de sua situação para intervir nela transformando-a no sentido de uma ampliação da liberdade, da comunicação e colaboração entre os homens. Ora, nessa colaboração entre os homens atuando sobre a situação e se comunicando entre si, descobre-se que o domínio do prático-utilitário não satisfaz. Como dizia Ortega y Gasset, “o homem é aquele animal para o qual o supérfluo é necessário”. Portanto, a educação integral do homem, a qual deve cobrir todo o período da educação básica que vai do nascimento, com as creches, passa pela educação infantil, o ensino fundamental e se completa com a conclusão do ensino médio por volta dos dezessete anos, é uma educação de caráter desinteressado que, além do conhecimento da natureza e da cultura envolve as formas estéticas, a apreciação das coisas e das pessoas pelo que elas são em si mesmas, sem outro objetivo senão o de relacionar-se com elas. Abre-se aqui todo um campo para a educação artística que, portanto, deve integrar o currículo das escolas. E, nesse âmbito, sobreleva, em meu entender, a educação musical. Com efeito, a música é um tipo de arte com imenso potencial educativo já que, a par de manifestação estética por excelência, explicitamente ela se vincula a conhecimentos científicos ligados à física e à matemática além de exigir habilidade motora e destreza manual que a colocam, sem dúvida, como um dos recursos mais eficazes na direção de uma educação voltada para o objetivo de se atingir o desenvolvimento integral do ser humano. À vista do exposto, fica claro que, segundo o meu entendimento, a educação musical deverá ter um lugar próprio no currículo escolar. Além disso, porém, penso ser necessário considerar uma outra alternativa organizacional que envolve a escola como um todo e que, no texto preliminar que redigi para encaminhar a discussão do projeto da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, traduzi através do enunciado do artigo 18 do anteprojeto, nos seguintes termos: "Os poderes públicos providenciarão para que as escolas progressivamente sejam convertidas em centros educacionais dotados de toda a infraestrutura física, técnica e de serviços necessária ao desenvolvimento de todas as etapas da educação básica". Com esse dispositivo eu estava querendo contemplar todo um conjunto de atividades que permitiriam incorporar, aos currículos das escolas, experiências artísticas reais como aquelas que são desenvolvidas regularmente em centros culturais, mas, infelizmente, à margem das escolas. Por esse mecanismo os alunos poderiam ter contato, em seu processo formativo, com o desenvolvimento real das artes, no nosso caso, da música, tendo acesso a programações musicais regulares superando, com isso, o caráter de certo modo artificial, infelizmente ainda muito frequente na disciplina educação musical tal como ministrada em grande parte das escolas públicas do nosso país.
E: Outra alternativa organizacional defendida pelo senhor é a desfragmentação do currículo. Podemos nos amparar na teoria histórico-crítica para afirmar que a forma como o currículo se apresenta hoje, não contribui para a formação humana integral?
DS: Efetivamente o currículo das escolas, no Brasil, vinha se caracterizando, de modo geral, por uma grande dispersão e certa improvisação traduzida na tendência a ir incluindo, segundo demandas ocasionais, novas disciplinas ou atividades sem um plano orgânico que justificasse a inclusão. E agora, com o advento da denominada "Base Nacional Comum Curricular" (BNCC), essa situação se agravou ainda mais, pois sua principal base de sustentação é a chamada "pedagogia das competências" que visa a uma formação que permita ajustar os indivíduos ao mercado de trabalho elencando as competências requeridas e satisfazendo o objetivo da seleção de conteúdos que serão objeto dos testes gerais de avaliação segundo parâmetros padronizados. Assim, o currículo se distancia ainda mais da formação humana integral.
E: Professor, sabemos que o senhor acompanhou as discussões e controvérsias relacionadas a BNCC. Mas, para além, do processo antidemocrático na qual ela foi concebida, qual sua opinião sobre uma base curricular nacional? Faz sentido pensarmos numa base comum se mantivermos a defesa do acesso ao conhecimento tal qual ele é defendido pelo Sr. na pedagogia histórico-crítica?
DS: Abordei a questão da BNCC em outros momentos destacando que a noção de uma base comum nacional emergiu como uma ideia-força do movimento pela reformulação dos cursos de formação de educadores, tendo sido, embora não com a mesma intencionalidade, incorporada pela nova LDB promulgada em 20 de dezembro de 1996 ao definir, no Art. 26, que “os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum”; e, no Art. 64, que a formação dos profissionais da educação “será feita em cursos de graduação em pedagogia ou em nível de pós-graduação, a critério da instituição de ensino, garantida, nesta formação, a base comum nacional” sem, entretanto, explicitar o significado dessa expressão. Contudo, a sequência do artigo 26, ao afirmar que a base nacional comum deve “ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada”, respalda a interpretação, recusada pelo Movimento dos Educadores, de que a “base nacional comum” coincide com a parte comum do currículo, conforme a legislação anterior. Com efeito, a Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971, definiu, no Art. 4º, que “os currículos do ensino de 1º e 2º graus terão um núcleo comum, obrigatório em âmbito nacional, e uma parte diversificada para atender, conforme as necessidades e possibilidades concretas, às peculiaridades locais, aos planos dos estabelecimentos e às diferenças individuais dos alunos”. E a LDB equacionou também a questão da base nacional comum curricular ao determinar a elaboração e aprovação, pelo Conselho Nacional de Educação, das Diretrizes Curriculares Nacionais relativas aos vários níveis e modalidades de ensino ao atribuir à União, no Inciso IV do Art. 9º, o encargo de estabelecer “competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum”. Surge, então, a pergunta inevitável: se a Base Nacional Comum Curricular já se encontra definida por meio das Diretrizes Curriculares Nacionais, que são mantidas, qual o sentido desse empenho em torno da elaboração e aprovação de uma nova norma relativa à “Base Nacional Comum Curricular”? Considerando a centralidade que assumiu a questão da avaliação aferida por meio de testes globais padronizados, tudo indica que a função dessa nova norma é ajustar o funcionamento da educação brasileira aos parâmetros das avaliações gerais padronizadas. Essa circunstância coloca em evidência as limitações dessa tentativa, pois o modelo de avaliação assumido pelo MEC desde o governo FHC no final da década de 1990 não está centrado em pesquisa sobre a situação educacional brasileira, mas se inspira em instrumentos internacionais focados na mensuração de resultados. É esse modelo que se implantou nos Estados Unidos de cujo processo participou Diane Ravitch como dirigente do instituto responsável pelos testes federais. Firmou-se, assim, como uma das principais defensoras da reforma do ensino nos Estados Unidos, reforma essa que, baseada em metas, introduziu testes padronizados, responsabilização do professor e práticas corporativas de medição e mérito. No entanto, após 20 anos defendendo esse modelo que inspirou as medidas adotadas no Brasil, Diane Ravitch concluiu que, “em vez de melhorar a educação, o sistema em vigor nos Estados Unidos está formando apenas alunos treinados para fazer uma avaliação”. E explicitou sua crítica de forma definitiva num livro publicado em 2010 e traduzido no Brasil, em 2011, pela Editora Sulina, com o título Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação (Ravitch, 2010; 2011). No Brasil, esse modelo de avaliação orientado para a formação de rankings e baseado em provas padronizadas, aplicadas uniformemente aos alunos de todo o País por meio da Provinha Brasil, Prova Brasil, Enem, Enade, está, na prática, convertendo todo o “sistema de ensino” numa espécie de grande “cursinho pré-vestibular”, pois todos os níveis e modalidades de ensino vêm se reduzindo a um treinamento para fazer as provas nacionais de avaliação, invertendo a máxima latina “non scholae, sed vitae discimus” (aprendemos não para a escola, mas para a vida) e convertendo-se na máxima contrária: “non vitae, sed examinibus discimus” (aprendemos não para a vida, mas para passar nos exames). Caminham, portanto, na contramão de todas as teorizações pedagógicas para as quais a avaliação não deve se basear em exames finais e muito menos em testes padronizados. Devem, sim, procurar avaliar o processo, considerando as peculiaridades das escolas, dos alunos e dos professores. Mas foi com base no referido modelo, que fracassou nos Estados Unidos, que o grupo que assumiu o governo brasileiro em consequência do golpe de 2016 veio propor a BNCC no âmbito de uma tendência a subordinar inteiramente a educação aos mecanismos de mercado. Como se vê, não é para se comemorar o advento desse tipo de BNCC que vem na contramão das aspirações educacionais da população e das lutas em que vêm se empenhando os movimentos dos educadores desde a Constituição de 1988.
E: Para o senhor, o que seria ideal para que a formação de professores contemplasse estas questões?
DS: Abordei a questão da formação de professores em vários momentos (Saviani, 2009a; 2009b; 2011). Resumidamente destaco os seguintes pontos em contraposição às principais limitações da política de formação de professores vigente em nosso país:
a) Contra a fragmentação e dispersão das iniciativas, proponho uma concepção orgânica da formação de professores centrada no padrão universitário e nas faculdades de educação como lócus privilegiado da formação de professores.
b) Como contraponto à descontinuidade das políticas educacionais, defendo uma política educacional de longo prazo que priorize a formação de professores cultos em cursos de longa duração.
c) Em oposição ao burocratismo da organização e funcionamento dos cursos, propugno pela transformação das faculdades de educação em espaços de ensino e pesquisa que possam receber os jovens candidatos ao magistério colocando-os num ambiente de intenso e exigente estímulo intelectual.
d) Para superar a separação entre as instituições formativas e o funcionamento das escolas, proponho uma forte articulação entre os cursos de formação e o funcionamento das escolas, considerando dois aspectos: tomar o modo de funcionamento das escolas como ponto de partida da organização do processo formativo e redimensionar os estágios como instrumento que situe a administração dos sistemas de ensino, as escolas de educação básica e as faculdades de educação atuando conjuntamente em regime de colaboração na formação dos novos professores.
e) Diante das várias formas de manifestação do paradoxo pedagógico, entendo que sua solução demanda uma formulação teórica que supere as oposições excludentes e consiga articular teoria e prática, conteúdo e forma, assim como professor e aluno, numa unidade compreensiva desses dois polos que, contrapondo-se entre si, dinamizam e põem em movimento o trabalho pedagógico. E essa nova formulação teórica foi a tarefa a que se propôs a pedagogia histórico-crítica. Acredita-se que a orientação metodológica posta em movimento pela pedagogia histórico-crítica recupera a unidade da atividade educativa no interior da prática social articulando seus aspectos teóricos e práticos que se sistematizam na pedagogia concebida ao mesmo tempo como teoria e prática da educação. Supera-se, assim, o dilema próprio das duas grandes tendências pedagógicas contemporâneas: a concepção tradicional e a concepção renovadora (Saviani, 2012)
f) Enfim, em contraste com jornada de trabalho precária e baixos salários é preciso levar em conta que a formação não terá êxito sem medidas correlatas relativas à carreira e às condições de trabalho que valorizem o professor, envolvendo dois aspectos: jornada de trabalho de tempo integral em uma única escola com tempo para aulas, preparação de aulas, orientação de estudos dos alunos, participação na gestão da escola e reuniões de colegiados e atendimento à comunidade; e salários dignos que, valorizando socialmente a profissão docente, atrairão candidatos dispostos a investir tempo e recursos numa formação de longa duração.
E: Acompanhamos internacionalmente uma onda de reformas curriculares que ao mesmo tempo que preveem a formação integral e focam no desenvolvimento de competências cognitivas e socioemocionais, apresentam como novidade a flexibilização da etapa do ensino médio com a possibilidade de o jovem desenvolver um itinerário técnico-profissional no âmbito da educação básica. Como o senhor entende, apropriando-se da concepção histórico-crítica da educação, este aspecto da internacionalização do currículo para esta etapa do ensino?
DS: De fato, como assinalei na resposta à questão sobre a BNCC, as reformas do ensino que vêm sendo propostas no Brasil seguem a orientação internacional das reformas neoconservadoras exigidas pela hegemonia mundial da visão sócio-econômico-política do neoliberalismo. Nesse contexto a reforma do ensino médio colocada em vigor em setembro de 2016, portanto no início do governo Temer que resultou do golpe jurídico-midiático-parlamentar, proclama a flexibilização traduzida na indicação de cinco itinerários formativos submetidos à livre escolha dos alunos. Diante disso, pergunto: trata-se de flexibilidade ou predeterminação camuflada dos itinerários? Efetivamente, em lugar da apregoada flexibilidade promove-se uma predeterminação camuflada dos itinerários, o que significa que, na prática, a grande maioria dos alunos será encaminhada para o quinto itinerário, “formação técnica e profissional”. Indago, ainda: Liberdade de escolha dos adolescentes ou descarte da responsabilidade dos adultos? Argumentando com o princípio da flexibilidade que permitiria aos alunos a livre opção pelo itinerário que correspondesse aos respectivos projetos de vida, comete-se uma falácia, pois como esperar que adolescentes na faixa de quinze anos já estejam em condições de definir seu projeto de vida e exercer sua liberdade de escolha elegendo um itinerário consentâneo com seu projeto de vida? Ora, nós sabemos que mesmo os jovens já na faixa dos dezoito a vinte anos têm dificuldade de escolher a carreira a seguir e, por isso, é frequente que iniciem um curso superior e, ao final do primeiro ano, abandonam o curso para prestar novo vestibular para outro curso. Em lugar da liberdade de escolha dos alunos, o que a reforma promove é a demissão da responsabilidade dos adultos, de modo geral e, especificamente, dos professores quanto à orientação que lhes cabe propiciar a estudantes ainda na idade da adolescência. Na perspectiva da pedagogia histórico-crítica impõe-se, então, reverter essa reforma organizando o Ensino Médio na forma da "Escola Unitária", que já é exigida pelo estágio atual atingido pelas forças produtivas. A proposta da escola unitária é construída sobre a base do conceito do trabalho como princípio educativo que compreende três significados: Num primeiro sentido, o trabalho é princípio educativo na medida em que determina, pelo grau de desenvolvimento social atingido historicamente, o modo de ser da educação em seu conjunto. Nesse sentido, aos modos de produção correspondem modos distintos de educar com uma correspondente forma dominante de educação. Em um segundo sentido, o trabalho é princípio educativo na medida em que coloca exigências específicas que o processo educativo deve preencher, em vista da participação direta dos membros da sociedade no trabalho socialmente produtivo. Finalmente, o trabalho é princípio educativo num terceiro sentido, à medida que determina a educação como modalidade específica e diferenciada de trabalho: o trabalho pedagógico. Em suma, o trabalho foi, é e continuará sendo o princípio educativo do sistema de ensino em seu conjunto. Determinou o seu surgimento sobre a base da escola primária, o seu desenvolvimento e diversificação e tende a determinar sua unificação na luta pelo socialismo no contexto em que estamos vivendo, caracterizado pela crise estrutural do capitalismo.
Resumo
Main Text
Introdução