Tue, 25 Aug 2020 in Linhas Críticas
Escolas-parque de Brasília: diálogos com a produção acadêmica
Resumo
As escolas-parque configuram referência que ocupou lugar de destaque no plano de construções escolares de Brasília. Em parceria com as escolas-classe, oportunizam atividades complementares de caráter recreativo e artístico. Este trabalho analisa produções acadêmicas, buscando identificar tendências das pesquisas sobre as escolas-parque. Identificamos 26 trabalhos, desde a sua fundação, em 1960, até 2017, sendo que a Universidade de Brasília se destaca entre as instituições que apoiaram as mesmas. De acordo com o mapeamento realizado, as produções envolveram temáticas diversas, como artes e suas linguagens, sistema educacional do Distrito Federal, educação do corpo, arquitetura escolar, educação e tecnologia, bem como de caráter multidisciplinar.
Main Text
Introdução[1]
Conhecida como a capital da esperança, Brasília foi planejada e erguida sob ideais modernistas e até mesmo socialistas, pois seu modelo idealizado objetivava desenvolver uma cidade onde se pretendia extinguir o conceito de classes sociais. Com uma arquitetura simples, de caráter construtivista, baseada em relações de tempo e espaço em movimento, com uma geometria abstrata, Brasília se apresentou a partir de um plano urbanístico inovador.
Considerando o seu plano urbanístico baseado na concepção de cidade-jardim, o Plano Piloto foi organizado em superquadras com blocos residenciais de livre tráfego de pedestres e o ideal de vizinhança, constituindo uma teia social contornada pela natureza urbana. Essa conjuntura revolucionária demandou, de forma articulada, a realização de um projeto educacional emancipador, no qual o sistema ofertasse uma educação gratuita e de qualidade a todos. Assim, a Comissão Administrativa do Sistema Educacional de Brasília (CASEB), sob a deliberação do educador Anísio Teixeira, concebeu o Plano de Construções Escolares de Brasília, que presumia o atendimento escolar em diferentes níveis de ensino: elementar, médio e superior, funcionando de maneira conectada.
De acordo com Martins (2005), Anísio Teixeira esperava que o funcionamento do ensino ocorresse da seguinte forma:
Considerada como instituição modelo no projeto educacional elaborado por Anísio Teixeira para o desenvolvimento de uma educação integral, pontua-se que as escolas-parque representaram uma síntese dos ideais por ele defendidos. Uma pedagogia marcada por valores democráticos e com o objetivo de formar indivíduos autônomos e críticos, por meio de experiências e reflexões orientadas para um novo modelo de sociedade conciliável com o caráter construtivista e progressista, além do pleno desenvolvimento político, econômico, social e cultural engendrado durante a construção da Capital.
As raízes desse modelo educacional atravessam o continente tendo como pano de fundo os princípios norteadores do Playground Movement, das platoon schools de Detroit e das Laboratory Schools de Chicago. No Sistema Platoon, por exemplo, a escola funcionava em “[…] dois ‘pelotões’ que se revezavam, tendo cada qual, no respectivo turno oposto, atividades em salas especiais: auditório, ginásio, música, artes plásticas, literatura, biblioteca, ciência, geografia, artes manuais e recreio” (Rocha, 2002, p. 103).
A ideia de integração do indivíduo em um espaço dedicado à aprendizagem, às experimentações artísticas, corporais e funcionais diversas, aplicadas nas escolas-parque, se mostrou como vestígios de uma identidade coletiva adquirida no universo educacional de Brasília. Para Anísio Teixeira, “[…] a escola precisava educar em vez de instruir, formar homens livres em vez de homens dóceis, preparar para um futuro incerto em vez de transmitir um passado claro, ensinar a viver com mais inteligência, mais tolerância e mais felicidade” (Bastos, 2009, p.1). Dessa maneira, o interesse do estudante é que deveria orientar o seu aprendizado por meio de um diálogo entre professores e alunos, em que estes fossem instruídos criticamente.
Por conseguinte, o projeto arquitetônico previsto para as escolas-parque dialogava com uma formação abrangente, dispondo de espaços para salas de aula, oficinas, laboratórios, espaços-ambientes para atividades artísticas, auditório, biblioteca, piscinas, refeitório, quadras de esportes, além de elementos que remetiam diretamente à educação mediada pela natureza como viveiro de aves, horta e jardins.
O plano de construções escolares previa a construção de 28 escolas-parque, especificamente para o Plano Piloto. Todavia, devido às transformações políticas, econômicas e históricas, bem como a inúmeras dificuldades, apenas 5 foram construídas. A primeira, inaugurada ainda em 1960, foi a Escola-parque 307/308 Sul, a única que efetivamente contemplou os aspectos idealizados por Anísio Teixeira, destacadamente no que se refere aos parâmetros arquitetônicos. O prédio elevado por pilotis, a utilização de cobogós, assim como iluminação e ventilação naturais podem ser observados na figura 1.
Nos anos seguintes, as demais entraram em funcionamento. Em abril de 1977, as Escolas-parque 313/314 Sul e 303/304 Norte. Em 1980, a Escola-parque 210/211 Norte e, em 1992, a Escola- parque 210/211 Sul.
Recentemente, no ano de 2014, foram inauguradas mais duas escolas que fazem uso da nomenclatura escola-parque. Uma delas se localiza na região administrativa de Ceilândia, a Escola-parque Anísio Teixeira, e a outra em Brazlândia, a Escola-parque da Natureza. Embora não carreguem a essência pedagógica e não possuam o modelo arquitetônico constante no plano de construções escolares de Brasília, são propostas que se inspiraram na concepção de educação integral almejada por Anísio Teixeira.
Tendo a pretensão de entender, refletir e dialogar a respeito desse projeto educacional com mais clareza e aprofundamento, este texto tem como objetivo identificar e analisar as tendências das pesquisas sobre as escolas-parque de Brasília, por meio de um estudo sistemático da bibliografia produzida, considerando livros, teses, dissertações e trabalhos de conclusão de curso publicados desde a fundação da primeira escola-parque em Brasília em 1960 até o ano de 2017.
Considerando as observações de Rapley e Rees (2018), nossas pretensões vão além da mera junção e descrição dos trabalhos, buscando desenvolver uma sistematização da análise de fontes literárias que promovesse a elaboração de sínteses interpretativas e criativas. Inicialmente, realizamos um mapeamento da produção levando em conta elementos descritivos e quantitativos. Em seguida, produzimos uma categorização temática que gerou, por sua vez, uma abordagem qualitativa, articulando-se à análise das fontes de modo transversal.
Mapeamento da produção
Em um primeiro momento, a busca dos trabalhos acadêmicos foi realizada por meio do repositório de teses e dissertações da Universidade de Brasília (UnB) e no acervo da Biblioteca Digital da Produção Intelectual Discente da Universidade de Brasília (BDM). Posteriormente, realizou-se pesquisa na base de dados denominada Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações, bem como no Banco de Teses e Dissertações da CAPES. Diante de poucos achados, enveredamos por uma coleta de tipo manual, ou seja, as buscas continuaram a partir da leitura completa dos trabalhos localizados nos bancos de dados mencionados, o que possibilitou a seleção de outras produções indicadas em suas referências. Isto posto, destacamos que algumas obras foram acrescentadas por meio do acesso ao acervo físico da Biblioteca Central da Universidade de Brasília – (BCE).
Durante todo o processo, foi considerado como descritor para a pesquisa o termo “escola-parque” combinado com a palavra “Brasília”. Foram testadas as diversas formas de grafia do termo escola-parque, que são encontradas nos documentos oficiais da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal, nas placas de inauguração das escolas, bem como na literatura pesquisada: com hífen e sem hífen (escola-parque, escola parque), com a primeira letra de cada palavra grafada em maiúscula (Escola Parque, Escola-Parque), ou ainda com somente a primeira letra do termo escrita com letra maiúscula (Escola-parque, Escola parque).
Por meio desses procedimentos, localizou-se um total de 26 produções científicas sobre as escolas-parque de Brasília. Preliminarmente, essas obras foram examinadas considerando o ano de sua publicação, as instituições às quais se vincularam e os tipos de trabalho. Por fim, foi realizado um agrupamento tendo em conta as temáticas abordadas.
Em relação ao intervalo de tempo, registram-se pesquisas entre os anos de 1979 a 2017, conforme ilustrado pelo gráfico 1. A primeira publicação, em 1979, ocorreu 19 anos após a inauguração da primeira escola-parque de Brasília, em 1960, a da Entrequadra Sul 307/308. Desde então, nota-se uma curva ascendente ao longo do tempo, embora não contínua, uma vez que se constatam alguns intervalos sem registro de produções, conforme destaque no gráfico a seguir. Percebe-se, portanto, que as escolas-parque de Brasília foram se consolidando como fenômeno de pesquisa de maneira gradativa ao longos dos anos.
Quanto às instituições que apoiaram as investigações, identificamos trabalhos vinculados a diversas instituições, como a Fundação Educacional do DF e a Universidade de Brasília (UnB), além de estudos associados à Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), à Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP), à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), assim como às editoras de livros Thesaurus, UnB e à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (FAAUSP). No que se refere aos tipos de trabalho, o resultado obtido informa um conjunto de 4 livros, 3 teses de doutorado, 15 dissertações de mestrado, 2 trabalhos de conclusão de curso de especialização e 2 trabalhos de conclusão de curso de graduação. Esse panorama foi mais bem detalhado abaixo, nas tabelas 1 e 2.
De acordo com a tabela 1, constata-se que a maioria dos trabalhos de pesquisa está vinculada à Universidade de Brasília, sendo oito deles ao Instituto de Artes, entre tese, dissertações e TCC, e cinco à Faculdade de Educação, em formato de dissertações. Essa informação reflete um elemento próprio do modelo escola-parque, que visa oportunizar, por meio da educação integral, experiências socioculturais, servindo não só ao estudante, mas também à comunidade, a partir do ensino das artes e da educação física.
A organização em temáticas da literatura sobre escola-parque foi realizada a partir da leitura dos resumos e objetivos de pesquisa de cada trabalho. Optou-se pela sistematização de categorias elencando um tema central. Todavia, ressalta-se que na maioria dos textos seria possível delimitar categorias secundárias, tendo em vista a coexistência das diversas características especiais que circunscrevem as escolas-parque.
As principais temáticas de investigação referem-se às artes e suas linguagens, ao sistema educacional do Distrito Federal, à educação do corpo, à arquitetura escolar, bem como à educação e tecnologia, além de pesquisas que receberam a qualificação temática de multidisciplinares, uma vez que fizeram parte do acervo de um livro, tal como se observa na tabela 2.
A síntese das temáticas e sua relação com as instituições que apoiaram as produções, conforme demonstrado na tabela 2, adquire autenticidade, uma vez que a temática mais investigada foi a denominada “artes e suas linguagens”, em consonância com o Instituto de Artes da UnB, que se destacou entre o conjunto de instituições. Conforme anteriormente assinalado, as referidas temáticas são abordadas e problematizadas na seção seguinte. Por meio de uma análise qualitativa e transversal das fontes bibliográficas, esperamos contribuir para a elaboração de novos modelos conceituais ou teorias, que poderão embasar outros trabalhos de caráter empírico.
As escolas-parque de Brasília na produção acadêmica: diálogo com as temáticas
Algumas fontes datam dos anos iniciais de funcionamento das escolas-parque de Brasília e revelam a dinâmica das práticas educativas adotadas, além de aspectos de sua identidade e memória. O primeiro livro, lançado em 1979, inaugura as produções científicas. Organizado por Lucia Alencastro et al., a pedido do Governo do Distrito Federal, retrata uma pesquisa de natureza quali-quanti e representa um estudo comparativo das características de um grupo de crianças selecionadas como possíveis superdotadas, e um outro grupo de crianças consideradas na faixa mediana normal para a idade, entre 6 e 9 anos.
O estudo foi desenvolvido nas Escolas-parque 313/314 Sul e 303/304 Norte e teve o suporte de avaliações com protocolos internacionais que classificam, por características intelectuais, as crianças como superdotadas. Os resultados apontaram que os estudantes superdotados ou talentosos estavam com índices próximos às estatísticas mundiais, registradas na literatura. Revelou ainda que os instrumentos de avaliação criados permitem identificar e selecionar alunos com tais características. Sobre o outro grupo de crianças, o livro não apresentou informações. Contudo, foge ao nosso objetivo validar ou não os conteúdos dos trabalhos, porém, podemos perceber, diante desse primeiro relato científico, o quão relevante é para a formação humana uma escola com representatividade em todos os componentes, ou seja, corporal, social e intelectual.
Adiante temos a dissertação de mestrado e o livro de autoria de Duarte (1982, 1983), que também são considerados trabalhos pioneiros. A autora reúne e analisa as experiências e movimentos relacionados com arte e suas linguagens em Brasília. Descreve as circunstâncias que cercaram historicamente essas experiências, evidenciando que a escola-parque, nas primeiras décadas de funcionamento, se apresentou com propostas coerentes aos ideais de uma “educação criadora”, contemplando atividades artísticas, corporais e complementares às atividades rotineiras das escolas-classe. Por outro lado, aponta que a proposta original desse modelo escolar enfrentou dificuldades de diversas ordens, tais como problemas de caráter político-administrativo e de ordem socioeconômica, mas o principal aspecto citado por Duarte (1982, 1983) recai sobre o alto custo desse modelo de educação integral.
Pereira e Carvalho (2011), em pesquisa publicada no livro “Nas asas de Brasília: memória de uma utopia educativa (1956/1964)”, indicam algumas causas que provocaram a interrupção e ajustes no sistema educacional inicialmente proposto para a Capital, como a perseguição ideológica a professores, a ruptura de uma democracia a favor do conservadorismo militar, bem como a proliferação de escolas particulares. Ainda é possível destacar que o modelo se tornou inviável devido ao desordenado crescimento demográfico da cidade, tendo em vista que o Plano Piloto não possuía escolas suficientes. Sendo assim, outras tantas escolas foram construídas em regiões afastadas ou no entorno de Brasília. Desse modo, houve uma ruptura no modelo projetado visto que essa educação demandava recursos financeiros elevados, impossibilitando sua difusão para todas as escolas que estavam sendo construídas.
Esses estudos permitem entender as descontinuidades que marcaram as experiências de cunho educacional no Distrito Federal, especialmente nas escolas-parque, cujas intencionalidades aparecem, ainda hoje, de certa maneira difusas, todavia enraizadas aos princípios originários de uma educação para além da enciclopédica e literária. A desconfiguração do modelo pensado por Anísio Teixeira foi observada logo nos primeiros anos de funcionamento das escolas-parque, conforme Pereira e Rocha (2006), pois, ainda em 1962, ocorreu a redução do período de permanência dos alunos na instituição - de quatro para duas horas diárias. Houve também a redução da jornada de trabalho dos professores - de oito para seis horas. A situação se agravou com a expansão de matrículas registradas nos anos seguintes, o que resultou em uma demanda maior do que as escolas-parque suportariam.
Ainda no que tange ao entendimento do sistema educacional e suas características, a obra de Pereira et al. (2011), citada acima, é referência significativa por apresentar pesquisas interdisciplinares que contribuíram para a compreensão das matrizes do movimento educacional modernista no País, bem como trazendo dados específicos das escolas-parque de Brasília. Observa-se o intenso trabalho de pesquisa histórica acerca de temas caros aos diálogos recorrentes sobre uma educação pública de qualidade. De acordo com Sousa Júnior (2011), esse livro não pode ser mencionado apenas como um compilado de trabalhos dissociados, mas é, antes de tudo, uma história tramada e compartilhada, e seu rico material pode ser considerado um guia para fomentar reflexões acerca da educação no Brasil. Com base nesse preceito, outras pesquisas foram desenvolvidas a respeito das escolas-parque e suas peculiaridades.
Souza (2014) caracterizou, em seu estudo, aspectos do projeto sobre as origens da Educação Pública do Distrito Federal. O autor empenhou-se em traçar o cenário político da década de 1960, durante a implantação das escolas-classe e escolas-parque, que representam a execução do plano educacional do Distrito Federal. Paralelamente, investigou os anos 1980, durante a implantação dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEP) e a efetivação do primeiro Plano Especial de Educação do Rio de Janeiro (I-PEE), durante o primeiro governo de Leonel Brizola, tendo como vice-governador e secretário de cultura Darcy Ribeiro. Entende-se que esse trabalho contribui para a preservação da memória e da escrita dos primórdios da educação do Distrito Federal, definida por Anísio Teixeira a partir de um modelo fundamentado na modernização educacional e cultural do País. Adicionalmente, visa evidenciar a renovação e o fortalecimento de ideais voltados para uma educação pública de qualidade em nosso País.
A pesquisa de Vasconcelos (2011) também percorre pontos sobre as memórias da educação do Distrito Federal a partir de depoimentos dos professores e alunos pioneiros. Por meio dessas informações, a autora identificou que, nas escolas-parque, as práticas pedagógicas e a criatividade eram fomentadas pela experimentação e diversificação dos conteúdos. Seguindo metodologia de produção de informações semelhante, ou seja, por meio de estudo com professores e estudantes, o trabalho de Lima (2009) também é caracterizado dentro da temática sistema educacional. Nesse estudo a pesquisadora analisou aspectos relacionados à ideia originária de Anísio Teixeira e às diferenças encontradas no projeto adotado pela Escola-parque 210/211 Sul, considerando elementos do processo educativo envolvendo o espaço da biblioteca. Ambas as investigações apreenderam que peculiaridades manifestadas nesse modelo de instituição escolar colaboraram como motor gerador do conhecimento e para a formação integral do indivíduo.
Vasconcelos (2011) ainda assinala que esse ideário de Anísio Teixeira ofereceu à população condições básicas para o desenvolvimento de uma identidade própria, que teve a escola como polo centralizador de convivência, já que havia nas escolas, professores oriundos de todo o País. Como exemplo, Arruda (2008) destaca algumas manifestações identitárias que estavam florescendo na cultura popular brasiliense, como “Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro”, que misturam ritmos musicais e danças que contêm figuras que simbolizam o cerrado na construção de suas narrativas. Outro elemento próprio de Brasília é a aglomeração de pessoas que acontece nas superquadras, entrequadras e esquinas, onde as pessoas se encontram para comer um churrasquinho ou cachorro-quente e beber no fim de tarde. A cidade também é conhecida como a capital do rock. Sobretudo, seu cotidiano é marcado pela presença de gírias e expressões típicas, como boto fé, véi, caô, ôxe, paia, baú, camelo, tesourinhas, pardal, entre outras, e sotaques diversos, que ilustram a complexidade da cultura brasileira e se firmaram na cultura brasiliense.
A pesquisa mais recente sobre escolas-parque, de autoria de Xavier (2017), retoma a discussão acerca da identidade e memória dessas instituições, assim como as práticas pedagógicas desenvolvidas no ensino das artes no Brasil. Esse estudo confirma que as escolas-parque, em seu início, carregavam conceitos filosóficos e estruturas arquitetônicas sob o mesmo fundamento que orientou o projeto do Centro Educacional Carneiro Ribeiro, localizado em Salvador - BA, mas seguindo um propósito urbanístico inovador da nova Capital. Isto é, em Brasília as escolas-parque foram planejadas, originalmente, para atender, de maneira complementar, a outras quatro escolas-classes, que compunham a unidade de vizinhança do Plano Piloto. Atualmente, contudo, essas instituições atendem crianças provenientes de escolas localizadas em diversas regiões administrativas que circundam o Plano Piloto de acordo com a capacidade de atendimento de cada escola-parque.
Em sua pesquisa, o autor menciona que apenas a primeira escola-parque, da Entrequadra Sul 307/308, tem sua composição arquitetônica “[…] sob forte influência do pioneirismo de Brasília” (Xavier, 2017, p. 166). Destaca, por exemplo, que originalmente não havia cercas que separassem a escola das superquadras, porém hoje o que se constata é a presença marcante de cercas gradeadas, o que reflete outro contexto urbano. Verificou, também, que cada escola-parque de Brasília possui sua estrutura arquitetônica particular, o que indica a influência do período de suas construções.
Nesse ínterim, as escolas-parque foram marcadas por sua singular arquitetura. Seu idealizador afirmava que “nenhum outro elemento é tão fundamental, no complexo da situação educacional, depois do professor como o prédio e suas instalações” (Teixeira, 1951, p. 177). Os trabalhos reunidos sobre essa temática evidenciam o interesse de Anísio Teixeira pelas linhas modernas e inconfundíveis da Capital do País. Ele fomentou diálogo com arquitetos ao seu redor e promoveu o interesse desse campo para o desenho do espaço escolar em razão de seu programa educativo. Percebeu, na arquitetura aliada a um sistema de ensino inovador, uma forma de impulsionar e agregar a convivência social.
Nuances dessa concepção arquitetônica podem ser observadas nos trabalhos de Pereira (2007), Duarte (2009) e Leme (2013). Os trabalhos indicam que as convicções de Anísio Teixeira sobre a organização escolar influenciaram tanto o espaço de uso especificamente didático desses edifícios quanto as suas interações com o meio físico onde se inseriam. Considerando os anos 1960, a monumentalidade das construções dos grupos escolares era a representação de um ideal de modernidade e de República. E, segundo Souza (1998, p.124), "a arquitetura escolar haveria, pois, de simbolizar as finalidades sociais, morais e cívicas da escola pública”.
Os estudos indicados evidenciam que o pensamento de Anísio Teixeira influenciou diversos arquitetos para a elaboração e construção de prédios escolares, tornando a arquitetura escolar uma área de grande relevância para esse campo. É possível citar outros edifícios escolares que seguiram os paradigmas arquitetônicos e educacionais demarcados. Nunes (2009) destaca os casos do Centro Integrado de Educação Pública (CIEP), coordenado por Darcy Ribeiro na década de 1980, e projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer; o Centro Integral de Apoio a Criança (CIAC), idealizado por Fernando Collor na década de 1990, no Distrito Federal, projetado pelo arquiteto João Figueira Lima; bem como o Centro Educacional Unificado (CEU), idealizado pela prefeita Marta Suplicy nos anos 2000 em São Paulo, com projeto do Departamento de Arquitetos do Município.
Como visto, as escolas-parque traduziram desejos de uma educação diferenciada, de qualidade e que envolvesse todos os aspectos que compõem o desenvolvimento humano. Antecipando-se aos tempos atuais, desde o início percebemos nessas instituições um movimento de diálogo com inúmeras tecnologias: instrumentos musicais, recursos audiovisuais, entre outras ferramentas tecnológicas para a construção e aperfeiçoamento de aprendizagens.
Wiggers (2009) investigou o uso de tecnologias comunicacionais no contexto do sistema educacional brasileiro. A investigação ocorreu mediante avaliação de documentos, textos da literatura, transcrições de entrevistas e fotografias relacionadas às práticas pedagógicas desenvolvidas em escolas-parque da Capital. Evidências apontam que essas instituições escolares sempre estiveram à frente do seu tempo. Múltiplas ações denotam a preocupação de um currículo abrangente, incorporando à didática “experiências […] incluindo as atividades de captar, revelar, ampliar, expor e apreciar os produtos fotográficos. Certamente, tais atividades contribuíram para a desmistificação do processo tecnológico e para a apropriação do mesmo pelas crianças como uma dimensão da cultura” (Wiggers, 2009, p. 44).
Outras investigações também confirmaram essa característica da escola-parque como sinônimo de inovação pedagógica e democratização escolar. Ferreira (2012) e Xavier (2013) mostraram como a implantação do projeto Mais Educação[2] e a utilização do programa ProInfo[3] permitem a interlocução de temas transversais, considerando cada componente curricular e, ao mesmo tempo, resguardando suas especificidades. Dessa forma, possibilitam ao aluno compreender os assuntos e conteúdos a partir das diferentes linguagens comunicativas, sejam elas intelectuais, artísticas, motoras ou tecnológicas. A partir desses trabalhos, compreende-se que a interdisciplinaridade, que ocorre entre as tecnologias educacionais, mídias e até mesmo as redes sociais e os demais componentes existentes no currículo pedagógico das escolas-parque visam contrapor a ideia de segmentação dos conhecimentos.
Intitulado “Corpos desenhados: olhares de crianças de Brasília através da escola e da mídia”, o trabalho original e inédito protagonizou a discussão sobre educação do corpo e mídia, bem como apresentou as crianças, sujeitos da pesquisa, como coprodutoras das informações de sua pesquisa. O trabalho envolveu a observação de crianças matriculadas da 1ª à 3ª série da Escola-parque 210/211 Norte, em Brasília, mediante produção de desenhos, jogos dramáticos, brincadeiras e atividades de música e dança. Em conclusão, a autora revela que a cultura corporal expressada pelas crianças sofre influência da escola e da mídia, mas não é determinante em suas relações, uma vez que se manifestou sobretudo por meio de brincadeiras tradicionais, desenhos, jogos dramáticos, música e danças (Wiggers, 2003).
Nesse contexto, corroboramos a inferência de que a “[…] Escola-Parque deve ser considerada um patrimônio para todos os brasileiros, um lugar de ‘ser criança’, com oportunidade de imaginar, brincar, sonhar e produzir cultura” (Wiggers, 2003, p. 260), tendo em vista as prerrogativas já assinaladas em seu currículo arrojado e diversificado às manifestações de uma cultura corporal. Percebe-se que o tratamento dado ao corpo sugere uma concepção para além de um organismo vivo funcional, uma educação na qual todo o movimento caminha em direção a contemplar os múltiplos aspectos e significados, sejam eles de caráter filosófico, social, cultural, biológico, econômico, político ou histórico.
As rotinas observadas em contexto escolar, especificamente as práticas corporais como as brincadeiras, os jogos, as danças e os esportes, mais ainda, a articulação das diversas linguagens expressivas capazes de serem representadas pela cultura infantil, revelam modos sutis de inserção dos indivíduos e grupos, condutas sociais e geracionais, compondo o que chamamos aqui de cultura corporal infantil. Atrelada a esses preceitos da cultura infantil, a educação do corpo representa mais um aspecto estudado nas pesquisas localizadas. A noção de educação do corpo possui caráter multifacetado, que permite rememorar ideia de movimento, “[…] de passagem, de transformação, na constituição de pedagogias e de políticas voltadas ao corpo, em suas permanências, rupturas e continuidades” (Soares, 2014, p. 221).
No livro já citado, “Nas Asas de Brasília: Memória de uma utopia educativa (1956/1964)”, a cultura corporal infantil também foi tematizada no capítulo escrito por aquela mesma autora e colaboradoras. Percebe-se a presença de um diálogo com fontes históricas, priorizando a análise de fotografias com o objetivo de fortalecer o debate em torno das práticas educativas empreendidas na escola-parque e a educação do corpo. O texto apresentado identificou que o projeto educacional “[…] propunha a atividade corporal como instrumento explícito da escolarização” (Wiggers et al., 2011, p. 260). Essa interlocução entre escolas-parque, educação do corpo e cultura corporal infantil prossegue na esfera acadêmica desenrolando-se em estudos nos campos da educação física, educação e artes.
Ainda transitando pelos aspectos das múltiplas aprendizagens que foram identificadas nas escolas-parque, apresenta-se uma pesquisa que analisou a produção cultural de crianças, especificamente em vídeo digital, considerando seu papel em um projeto de mídia-educação articulado à educação do corpo. No trabalho de Ribeiro (2012), percebe-se a intensa relação das crianças com o meio midiático. O cinema apresentou-se como manifestação da linguagem da infância. A presença das brincadeiras como “centro da cena fílmica”, o tempo e espaço do recreio fizeram parte do cenário lúdico, “apresentando mais elementos da experiência infantil do que de uma produção orientada de discurso a respeito do recreio” (Ribeiro, 2012, p. 74). A experiência da criação materializou o discurso da criança como ator social, como produtora e transformadora de conceitos e significados mediados pelo contexto social.
Segundo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Secretaria de Educação Básica, 2018), a dança faz parte das linguagens e das práticas corporais que constituem as unidades temáticas das artes e educação física, respectivamente, abordadas no ensino fundamental de 9 anos. Além disso, é um movimento social e cultural que, de acordo com Medina et al. (2008), fornece elementos ou representações da cultura dos povos, sendo considerada uma manifestação dos hábitos e costumes de uma determinada sociedade. Corroborando o diálogo acerca da educação do corpo, pode-se afirmar que a dança exerce papel importante na relação sujeito e movimento, proporcionando múltiplas aprendizagens às crianças. Nas escolas-parque verificou-se que a dança esteve presente na proposta pedagógica e fez parte do cotidiano das crianças, o que foi confirmado pelos trabalhos de Rizzi (2011) e Rocha (2016).
A música e o teatro também são expressões artísticas pelas quais evidenciamos manifestações que compõem a cultura corporal infantil e fizeram parte dos conteúdos e atividades desenvolvidas nas escolas-parque ao longo dos anos. As produções textuais de Costa (1996), Lemos (1998), Oliveira Filho (2001), Braga (2013), Bezerra (2014), Marques (2016), Araújo (2016) e Figueirôa (2017) exploram narrativas infantis e experiências docentes em relação ao estudo da música e teatro nessas instituições escolares.
Percebe-se, em parte dessas pesquisas, um cenário de tensão entre o planejado e o vivido e, especialmente nos trabalhos que envolvem o ensino de música, observou-se a presença de uma prática pedagógica fragmentada da realidade social e do trabalho em parceria com as escolas-classe, bem como um distanciamento do trabalho coletivo na própria escola. Tais desconexões não dialogam com a proposta de sujeitos críticos e participativos, cidadãos preocupados com a produção de conhecimento. Todavia, as aulas de música e teatro, ofertadas nas escolas-parque, também se mostraram com possibilidades capazes de promover aprendizagens que vão sendo construídas por meio das experiências de vida.
Compreende-se, de maneira geral, que o ensino das artes, em suas diversas linguagens, carrega uma multiplicidade de possibilidades estética e expressiva que respeitam a individualidade biológica de cada criança, bem como favorece um diálogo imaginativo e interpretativo. À vista disso, tal como disposto no Artigo 356[4] do Regimento Escolar das Instituições Educacionais da Rede Pública de Ensino do Distrito Federal, do ano de 2015, as escolas-parque representam espaços privilegiados para o desenvolvimento de atividades culturais como dança, música, teatro, cinema, confecção de desenhos, rodas de conversas, práticas corporais (jogos, brincadeiras, esportes, etc.), que integram as práticas educativas das crianças, cujas tipologias de atendimento são diferenciadas das escolas regulares da rede pública de ensino.
Segundo Schüt e Cervi (2019), a escola, no último século, foi organizada com a finalidade de atender a um modelo educacional centrado no letramento, onde os corpos em movimento foram disciplinados a reproduzirem os comandos institucionais. Na contramão dessa perspectiva, as escolas-parque aparecem promovendo uma formação guiada por elementos característicos de uma “[…] educação física e de educação social, atividades em que se empenha individualmente ou em grupo, aprendendo, portanto, a trabalhar e a conviver” (Teixeira, 1961, p. 197), de maneira mais autônoma e crítica.
Entende-se, portanto, que a escola-parque não é apenas uma nomenclatura ou tipologia, mas um conceito complexo e profundo, uma filosofia de educação. Certamente, seu idealizador, Anísio Teixeira, acompanharia com entusiasmo as modificações necessárias para a formação das novas gerações e defenderia o ensino, a discussão e as novas práticas, como sempre fez seu espírito inquieto.
Considerações finais
A investigação realizada teve como objetivo identificar e analisar as tendências das pesquisas sobre as escolas-parque de Brasília, por meio de um estudo sistemático da bibliografia produzida, considerando os livros, as teses, as dissertações e os trabalhos de conclusão de curso publicados desde a fundação da primeira escola-parque em Brasília, em 1960, até o ano de 2017. A partir dos bancos de informações visitados, foram localizadas 26 produções científicas, sendo 1979 o marco inicial das publicações. Sobretudo, percebe-se que as escolas-parque de Brasília foram se consolidando como fenômeno de pesquisa de maneira gradativa ao longos dos anos. Além disso, a Universidade de Brasília se destaca entre as instituições que apoiaram as referidas produções.
Em relação às temáticas abordadas nas pesquisas, as categorias centrais foram denominadas como artes e suas linguagens, sistema educacional do Distrito Federal, educação do corpo, arquitetura escolar, educação e tecnologia, bem como de caráter multidisciplinar. Entretanto, observa-se, na maioria dos estudos, clara interdisciplinaridade, em razão de particularidades indissociáveis das escolas-parque, como o ideal de uma formação ampla e integral da criança em um espaço dedicado à aprendizagem, às experimentações artísticas e corporais diversas, bem como os seus projetos de edificação fundamentados em pressupostos de modernidade, funcionalidade e sociabilidade. Sobretudo, esse fato dialogou com os pressupostos almejados para a nova Capital e possível replicação para o sistema educacional brasileiro.
As pesquisas no campo das artes e linguagens, seguidas das relacionadas ao sistema educacional do Distrito Federal, se destacam em maior número, respectivamente. No que diz respeito à primeira temática, as investigações apresentaram discussões sobre as práticas pedagógicas docentes e sobre as narrativas infantis no contexto das artes cênicas, das artes visuais e da música. Já as problematizações acerca do sistema educacional exibiram aspectos da sua criação, trajetória, consolidação, identidade e memória.
Por fim, conclui-se que estudos que evidenciem esse complexo educacional são caros à formação da história e da memória da educação de Brasília, contudo percebe-se uma ruptura no repositório de imagens, de relatos e de histórias em torno das escolas-parque. Acentua-se que este trabalho indica aos pesquisadores urgência em apropriar-se desse patrimônio imaterial de Brasília por meio de pesquisas de caráter empírico, assim incentiva-se o reconhecimento no meio acadêmico dessa conjuntura educacional especial, mas real no cotidiano de muitas crianças.
Resumo
Main Text
Introdução[1]
Mapeamento da produção
As escolas-parque de Brasília na produção acadêmica: diálogo com as temáticas
Considerações finais