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Wed, 27 Feb 2019 in Linhas Críticas
A Política Cultural dos Livros Didáticos de Matemática: um guia para transformar estudantes em cidadãos neoliberais
Resumo
Neste artigo apresentarei como o currículo de matemática direciona valores, comportamentos e moralidades que vão além dos conteúdos conceituais, das habilidades ou das competências, produzindo implicações políticas. Mais especificamente, mostrarei como os livros didáticos de matemática propõem o ensino de formas específicas de ser e de se comportar no mundo, alinhadas às políticas neoliberais. Concluo que a política cultural é uma ferramenta potente para analisar currículos de matemática e que essas análises têm implicações importantes para a formação de professores que ensinam matemática, pois oferecem outros modos de olhar para os processos de ensino e aprendizagem.
Main Text
Introdução[1]
Currículo é muitas vezes associado à lista de conteúdos conceituais ou temas para ensino, como equações na matemática, clima na geografia, revolução francesa na história ou concordância verbal na língua portuguesa. O que não se leva em consideração é que a própria escolha de separar os “conhecimentos” ou os “saberes” em disciplinas é uma escolha curricular. Talvez, por influência das ideias de currículo da primeira metade do século passado (Bobbit, 1918; Tyler, 1979), ainda seja frequente pensarmos em concepções curriculares tradicionais que associam a palavra “currículo” à organização, ao planejamento, à eficiência e aos objetivos de ensino.
Um tema central para o currículo é decidir quais os conhecimentos válidos, mais importantes ou que devem ser levados em conta para merecer um status de tema obrigatório na escola (T. T. da Silva, 2005). No entanto, não é simples a tarefa de decidir quais os conhecimentos devem ser incluídos e, consequentemente, quais serão excluídos, pois isso desencadeia mecanismos de inclusão e exclusão que afetam todos os participantes do processo educativo.
Além disso, a seleção dos temas válidos e legítimos para serem ensinados também implica a seleção de valores, comportamentos e moralidades, os quais vêm embutidos nesses conhecimentos. É exatamente sobre o que é ensinado, juntamente com os conhecimentos matemáticos, que eu pretendo abordar neste artigo.
Mais especificamente, apresentarei como o currículo de matemática endereça valores, comportamentos e moralidades que vão além dos conteúdos conceituais, das habilidades ou das competências, produzindo implicações políticas. A partir de exemplos de duas pesquisas, mostrarei como os livros didáticos de matemática propõem o ensino de formas específicas de ser e de se comportar no mundo, alinhadas às políticas neoliberais.
O neoliberalismo é uma política econômica que é fundamentada, como todo princípio econômico, não só em decisões políticas sobre como o mercado deve funcionar, mas também em características que regulam comportamentos e estabelecem metas para a sociedade, segundo determinados valores morais. Assim, viver em uma lógica neoliberal pode se traduzir por seguir determinadas regras que valorizam o espírito empreendedor, estimulam a competitividade, responsabilizam e, consequentemente, culpabilizam os indivíduos (Dardot & Laval, 2016).
Foucault usa o termo governamentalidade para descrever as “instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas” (Foucault, 2008b, p. 143) que são usados como mecanismos de poder para que o Estado exerça o “governo sobre todos os outros” (Foucault, 2008b, p. 144). Assim, a lógica neoliberal pode ser compreendida dentro das relações de poder e saber mobilizadas pelos Estados como táticas eficientes de governo.
Diferente das tecnologias disciplinares do trabalho dos séculos XVII e XVIII – as quais incidiam diretamente sobre os corpos individuais, fazendo com que o soberano tivesse o poder de fazer viver ou deixar morrer os seus súditos – o poder sobre a vida ou biopolítica surge na segunda metade do século XVIII, misturando-se ao poder disciplinar. Desde então, as formas de governo também se dirigem às multiplicidades da espécie humana, usando medições estatísticas como uma ferramenta poderosa de controle e tomada de decisão. Embora essas fases não sejam estanques, é possível afirmar que passa-se da lógica do “fazer morrer e deixar viver” para a do “fazer viver e deixar morrer” (Foucault, 1999b).
Mas, qual a relação de tudo isso com a educação e com a educação matemática?
Ora, como as relações de saber e poder, bem como os discursos tomados como verdades inquestionáveis, circulam na sociedade, a escola também é atravessada por essas questões. A escola opera um dispositivo pedagógico que funciona como uma técnica ou ferramenta para determinar o que é verdadeiro e o que é falso, endereçando valores, conhecimentos e comportamentos (Friedrich, 2010).
A matemática escolar é tradicionalmente considerada uma das disciplinas mais importantes. Ao mesmo tempo, parece ser politicamente inofensiva, pois até hoje considera-se o seu ensino excessivamente técnico, não oferecendo espaço para discussões sociais, econômicas, históricas ou filosóficas.
No entanto, a inocência da matemática é aparente. Isso já foi explicitado no campo da pesquisa curricular, desde a década de 1960, quando grupos de pesquisadores, em várias partes do mundo, começaram a colocar em xeque as ideias educacionais e a função da escola. A ideia de que a escola pode servir como um instrumento poderoso para manutenção das diferenças sociais mostra o quanto o currículo é desprovido de neutralidade (T. T. da Silva, 2005).
Na educação matemática, esse movimento em direção à ampliação de horizontes, deixando de investigar apenas aspectos relativos ao ensino e à aprendizagem pelo viés da psicologia, demorou mais tempo. Um marco foi a chamada virada social (Lerman, 2000). No Brasil, a repercussão das pesquisas de Ole Skovsmose e a Educação Matemática Crítica trouxe um novo olhar para o ensino da matemática.
No exterior, em 2013, Rochelle Gutiérrez descreveu o que chamou da virada sociopolítica na Educação Matemática (Gutiérrez, 2013). No mesmo ano, foi publicado o terceiro Handbook de Educação Matemática (Clements, Bishop, Keitel, Kilpatrick, & S.Leung, 2013), o qual teve uma das quatro partes dedicada exclusivamente às pesquisas que contemplavam dimensões sociais, políticas e culturais da educação matemática.
Embora muitos pesquisadores sintam-se tentados a fincar estacas ou balizas para demarcação da área, a multiplicidade de pesquisas no campo da educação matemática já não permite o estabelecimento de fronteiras fixas (Silva & Miarka, 2017), fazendo da área uma rede de práticas sociais (Valero, 2009).
Esses novos movimentos catalisaram a construção de novas pesquisas que trouxeram questões sócio-políticas e culturais para o cenário investigativo da educação matemática, proporcionando a possibilidade de vislumbrar os processos de ensino e aprendizagem de matemática por outros pontos de vista.
Assim, o ensino de matemática pode ser analisado também pelo viés político, pois há endereçamentos que vão muito além dos conteúdos conceituais:
Conceber a educação matemática como uma questão de política permite focar no governo de populações e indivíduos para atingir o comportamento desejável e esperado, ou seja, a aquisição de conhecimento matemático, competência e perícia, uma vez que estes são valorizados como qualificações indispensáveis dos cidadãos modernos, racionais e economicamente produtivos[2] (Valero & Knijnik, 2016, p. 5, minha tradução).
As características da política neoliberal são alinhadas às instruções matemáticas e transformam, num processo mágico de alquimia curricular (Popkewitz, 2004), crianças e jovens em desejáveis estudantes de matemática e desejáveis cidadãos neoliberais.
O que mostrarei, na próxima seção, é como essa alquimia opera. Farei isso utilizando exemplos de duas pesquisas de mestrado que orientei: uma que analisou o conteúdo “matemática financeira” (Coradetti, 2017), outra que investigou as orientações sobre o tema “interdisciplinaridade” (Berto, 2017).
A política cultural dos livros didáticos de matemática
Desde o início de 2015, coordeno o projeto “redes discursivas construídas em livros didáticos de matemática do ensino médio”, aprovado na Chamada Universal MCTI/ CNPQ Nº 14/2014. Entre outros objetivos desse projeto, pretendemos descrever discursos sobre quem seria o estudante desejável e quais valores éticos e morais são endereçados juntamente com os conteúdos matemáticos conceituais.
Além de endereçar currículos, as orientações, as atividades, as situações-problema, as contextualizações, as propostas de interdisciplinaridade e as orientações aos professores constituem uma história sobre o ensino de matemática do nosso tempo, sobre o que é permitido e sobre o que é proibido. Em outras palavras, vários aspectos culturais, sociais e políticos atravessam os conteúdos conceituais de matemática, contidos nesses livros, normatizando condutas e constituindo sujeitos do presente. Essa perspectiva de pesquisa coincide com o grande projeto de Foucault: “criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos” (Foucault, 1995, p. 231).
Vários produtos foram gerados a partir desse projeto. Realizamos pesquisas sobre os discursos relacionados à história da matemática em livros do ensino médio (Ocampos, 2016), sobre endereçamentos de gênero em livros dos anos iniciais (D. M. X. de B. Souza & Silva, 2017, 2018), sobre a constituição da infância em livros da educação do campo (Franco Neto & Valero, 2018), sobre a matemática financeira (Coradetti, 2017; Coradetti & Silva, 2017, 2018) e a interdisciplinaridade (Berto, 2017) em livros do ensino médio.
Também foram publicados artigos tratando especificamente desse projeto de pesquisa, sobre a trajetória do nosso grupo de pesquisa e sobre como compreendemos os currículos de matemática (M. A. Silva, 2013, 2014, 2016, 2017, 2018).
Neste artigo, trarei exemplos das dissertações de mestrado de Camila Coradetti (2017) e Ludiane Berto (2017), as quais já foram analisadas, em um enfoque político, em outro trabalho (M. Silva & Valero, 2018).
Os livros analisados compõem as seis coleções aprovadas no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2015. A pesquisa de Camila analisou os capítulos específicos de matemática financeira contidos nessas coleções. Já a investigação de Ludiane foi sobre as propostas de interdisciplinaridade nas duas coleções mais adotadas por professores de matemática do ensino médio no triênio 2015-2017.
A análise do discurso, numa perspectiva foucaultiana (Foucault, 1996, 1999a, 2008a), foi utilizada como ferramenta analítica. As pesquisadoras construíram enunciados que representavam as regularidades que descreviam os discursos que atravessam esses livros. Esses enunciados são como elementos que constituem os discursos, como “um átomo do discurso” (Foucault, 2008a, p. 90). O trabalho de construção dos enunciados em nossas pesquisas se assemelha ao trabalho de um jornalista ao elaborar a manchete de alguma notícia. O enunciado, assim com a manchete, deve ser claro, expressar de maneira sintética as regularidades e os aspectos mais importantes que foram encontrados nas análises.
A seguir, apresentarei alguns exemplos de análises mostrando como o livro didático de matemática é uma ferramenta potente para endereçar conjuntos de valores alinhados às ideias neoliberais.
O desejável estudante consumista
Algumas regularidades atravessam todos os livros de matemática do ensino médio aprovados no PNLD de 2015 no que diz respeito ao tema matemática financeira.
Por vezes os estudantes são convidados a tomarem decisões dentre algumas opções oferecidas. No entanto, quase sempre as opções são de consumo de algum produto ou serviço. Na figura 1, apresento uma das imagens analisadas da pesquisa.
A imagem apresenta uma pessoa manipulando um tablet e pensando: “já tenho R$200,00”. O preço é indicado numa etiqueta (R$1.299,00) e duas opções de compra são apresentadas: à vista ou a prazo. A matemática financeira mostra-se ligada ao conhecimento de estratégias para a desejável aquisição de bens, nem sempre possíveis de serem adquiridos pelos estudantes ou por suas famílias.
No caso do produto mostrado na figura 1, o preço está bem acima do valor do salário mínimo brasileiro de R$954,00, em 2018. No ano passado, o IBGE divulgou o resultado de uma pesquisa que revelou que 50% dos trabalhadores brasileiros recebem por mês, em média, 15% menos que o salário mínimo (Portal G1, 2017). Sob a pretensa justificativa de contextualizar a matemática, o incentivo ao consumo é cruel ao atrair a atenção dos estudantes com um objeto de desejo inacessível pela maior parte dos brasileiros.
A própria matemática é vendida como um produto. As páginas iniciais dos capítulos são ilustradas com imagens que buscam atrair a atenção dos estudantes, assim como os anúncios publicitários. A matemática seduz e apresenta realidades bem distintas das vivenciadas por milhões de brasileiros.
O livro funciona como uma ferramenta de educação moral que descreve uma narrativa sobre o que deve ser feito ou não, sobre o que é permitido ou o que é proibido. As instruções, contidas nesse guia de condutas, incluem orientações para o consumo imediato e para que se economize visando, é claro, o consumo futuro:
Comprar um carro, a casa própria ou realizar a viagem dos sonhos são conquistas que, geralmente, exigem bastante tempo de trabalho e investimento. Para alcançar tais objetivos e poupar dinheiro, é importante conhecer os diferentes tipos de investimentos e quais atendem suas necessidades. [...] O melhor investimento é aquele que se encaixa ao perfil e aos objetivos de quem está investindo; portanto, é essencial estar bem informado antes de optar por algum deles (J. Souza, 2013, v. 2, p. 58).
Para realizar os “sonhos” do capitalismo neoliberal é preciso estudar matemática. A matemática é ponte que liga a vida dos estudantes à realização dos projetos e sonhos. Esses sonhos também são vendidos com a promessa de vida financeira saudável e de uma feliz vida familiar (Coradetti & Silva, 2018), como a figura 2 apresenta.
As palavras “saudável” e “equilibrada” adjetivam a vida financeira, mas como adquirir esses adjetivos para a sua vida? Adquirindo conhecimentos matemáticos necessários para ser feliz! As quatro fotos apresentadas ao lado direito da atividade funcionam como produtos que podem ser “comprados”, desde que os conteúdos
Mas esse jogo de sedução não se resume somente a isso, também inclui a idealização do que é família e de qual é o salário desejável, conforme os itens 1 e 2 dos procedimentos propostos aos estudantes. Idealização minuciosamente controlada, pois sugere-se como modelo uma família que tenha dois adultos trabalhadores e duas crianças, uma de 3 anos e outra de 5 anos.
Por fim, a matemática é instrumento de diagnóstico da saúde financeira. Os estudantes atuam como médicos que realizam os exames, apresentam os diagnósticos (em forma de gráficos) e emitem a receita às famílias examinadas: mensagem de apoio ou orientação sobre como economizar (item 6).
A responsabilização das famílias pelo sucesso ou fracasso financeiro é uma característica do neoliberalismo que aparece com frequência nas enunciações contidas nos livros. Aprender matemática é condição para obter êxito no futuro, seja lá o que isso quer dizer.
Nessa pesquisa (Coradetti, 2017), foram construídos três enunciados: “a tomada de decisão, uma instrução necessária”; “o investimento e a poupança, uma prática para o acúmulo de capital” e “a formação do cidadão vinculada à formação do consumidor”.
O desejável estudante que cuida de si e dos outros
Na sua pesquisa sobre os discursos relacionados à interdisciplinaridade (Berto, 2017), Ludiane identificou que os livros didáticos continham seções e atividades específicas propondo projetos ou tarefas que, normalmente, integravam a matemática com alguma outra disciplina. Essas seções e atividades eram classificadas pelos autores como interdisciplinares. Não era nossa intenção investigar se essa ideia de interdisciplinaridade era ou não consistente do ponto de vista teórico, apenas optamos por analisar as atividades que eram classificadas pelos autores como interdisciplinares, sem entrar no mérito se essa classificação foi adequada ou não.
Assim como as atividades vinculadas à matemática financeira, as propostas interdisciplinares de ensino também endereçam formas de se comportar e de compreender o que é certo ou errado, como mostra a figura 3.
A proposta apresentada é de interligar matemática e geografia, mobilizando conceitos como funções, medidas de volume e capacidade, razões e proporções. No entanto, essas informações contidas dentro de cada gota que cai da torneira, simbolizando o desperdício de água, também propõem o ensino de outros conhecimentos, não de ordem conceitual: evite banhos demorados; não use mangueira para lavar carros, use um balde; use a descarga do vaso só quando for necessário; feche a torneira enquanto escova os dentes; reuse a água da máquina de lavar para limpar as calçadas e os quintais. Os sinais de “proibido” e “permitido”, presentes na atividade, alusão às placas de trânsito, reforçam os discursos de responsabilização individual pelo bemestar do mundo.
Essa responsabilização, característica marcante do neoliberalismo, é reforçada por frases que introduzem a proposta de ensino, como “estima-se que 900 milhões de pessoas no planeta não tenha acesso à água potável. Tendo isso em vista, é importante evitar o desperdício desse recurso fundamental em nosso cotidiano” (J. Souza, 2013, v. 1, p. 62). Uma proposta semelhante é apresentada na outra coleção analisada por Ludiane. A frase “elimine os vazamentos” (Dante, 2013, v. 3, p. 62) dá o tom da atividade que propõe o cálculo do valor pago pelo desperdício de água, gerado por um cano furado. As consequências de não seguir as orientações propostas são apresentadas aos estudantes, formando um jogo de responsabilização e culpabilização pelas decisões tomadas.
Em outra atividade, supostamente ligada à química, são apresentadas algumas orientações de como não ser enganado pelos postos de gasolina que frequentemente adulteram os combustíveis vendidos. O livro explica o que é o teste de teor de etanol, informando que é direito do consumidor solicitar tal teste e recomendando que a nota fiscal seja solicitada em cada abastecimento. Na figura 4, apresento duas perguntas propostas aos alunos, mostrando como a matemática se articula de maneira engenhosa a instruções de conduta.
O item (a) solicita dos estudantes uma reposta que supostamente não tem relação alguma com a matemática: a confissão sobre a importância de solicitar a nota fiscal. O texto, em vermelho, presente somente no livro do professor, sugere o que deve ser considerada uma resposta adequada: mostrar que a emissão da nota tem dupla importância, pois garante o recolhimento dos impostos por parte do Estado e serve como prova para o consumidor, caso ele seja enganado, comprando combustível adulterado, e precise reivindicar seus direitos.
Já o item (b) mobiliza o socialmente legitimado conhecimento matemático conceitual, esquadrinhando uma estratégia sutil e engenhosa para constituir o cidadão pagador de impostos que não pode ser enganado e precisa saber calcular porcentagens.
Na figura 5, trago alguns recortes de atividades que articulam os conteúdos conceituais às instruções ligadas ao comportamento desejável do cidadão. Um esquema, relacionando os tipos sanguíneos, e um diagrama de Venn, representando o Sistema ABO, são apresentados e articulados não só a outras disciplinas, mas também a ações esperadas: doar órgãos e sangue.
O diagrama de Venn e o cálculo de probabilidades são conteúdos articulados com um conjunto de valores que constitui o que se espera do bom cidadão que contribui para a sociedade. As instruções constroem subjetividades que individualizam as responsabilidades e, ao mesmo tempo, mobilizam os estudantes em ações coletivas: “Qual é a importância da doação de órgãos? Fique por dentro desse ato de amor e solidariedade. [...] faça cartazes e distribua pela escola e comunidade afim (sic) de conscientizar as pessoas sobre esse ato que pode salvar vidas” (Dante, 2013, v. 2, p. 291).
Nessa pesquisa, Ludiane construiu três enunciados: “interdisciplinaridade: contribuindo para a formação de cidadãos-consumidores conscientes e politicamente corretos”; “interdisciplinaridade: contribuindo para uma formação que contemple o cuidado de si e do outro” e “interdisciplinaridade: para acontecer só depende de você, professor!”.
Considerações finais
É muito importante enfatizar que não quero, por intermédio da apresentação desses exemplos, criticar as atividades ou emitir algum tipo de juízo de valor sobre o conteúdo dos livros didáticos. Também não é minha intenção produzir qualquer tipo de censura que passe pela reelaboração de atividades ou que as pesquisas que realizo e oriento sirvam como balizadoras para criação de novos critérios de avaliação de livros didáticos ou até para exclusão desses livros em processos avaliativos, como o PNLD.
Alinhado ao objetivo deste artigo, as pesquisas que realizo e que oriento pretendem descrever como o currículo de matemática endereça valores, comportamentos e moralidades que vão além dos conteúdos conceituais, das habilidades ou das competências, produzindo implicações políticas.
Assim, o desejável cidadão neoliberal calcula probabilidades, representa conjuntos usando o diagrama de Venn, calcula juros, porcentagens, constrói planilhas eletrônicas de orçamento doméstico; mas também consome produtos para aquecer a economia do país ou economizar hoje para consumir no futuro, não é enganado por comerciantes, planeja o seu futuro e da sua família, administrando sua vida como uma empresa. Essa administração da vida também consiste em aprender formas específicas de ser e de se comportar no mundo, e essas formas estão alinhadas às políticas neoliberais.
Por intermédio do cenário que apresentei, espero ter mostrado que a política cultural é uma ferramenta potente para analisar currículos de matemática e que essas análises têm implicações importantes para a formação de professores que ensinam matemática, pois oferecem outros modos de olhar para os processos de ensino e aprendizagem.
Resumo
Main Text
Introdução[1]
A política cultural dos livros didáticos de matemática
O desejável estudante consumista
O desejável estudante que cuida de si e dos outros
Considerações finais