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Thu, 15 Nov 2018 in Linhas Críticas
Narrativas de experiências docentes em classe hospitalar: ensinar aprendendo
Resumo
Quais concepções de ensino emergem nas narrativas de docentes que atuam em classe hospitalar? Que conteúdos escolares são ensinados nesse ambiente? O que contam professores sobre suas experiências com crianças e adolescentes com doenças crônicas? Tais questionamentos vêm guiando nossas reflexões na busca de depreender nuances das práticas pedagógicas em ambiente hospitalar pediátrico. As narrativas autobiográficas de professoras nos dão pistas concretas sobre ensinar e aprender na classe hospitalar, mostrando a necessidade de um posicionamento político e ético na atenção à criança hospitalizada, o cuidado compartilhado entre profissionais que desejam um atendimento de qualidade aos educandos em tratamento de saúde, abrindo expectativas para compreender as “redes de atenção à saúde” como espaços instituintes do acompanhamento enquanto lugar de dialogicidade e cooperação na escola.
Main Text
Introdução
No Brasil, a classe hospitalar é um direito de crianças e adolescentes impossibilitados de irem à escola por questões de saúde. Trata-se, portanto, de um serviço que tem por objetivo “prover, mediante atendimento especializado, a educação escolar a alunos impossibilitados de frequentar as aulas em razão de tratamento de saúde que implique internação hospitalar, atendimento ambulatorial ou permanência prolongada em domicílio” (Brasil, 2001, p. 51).
O Ministério da Educação admite que a classe hospitalar é uma forma de oferecer educação escolar às crianças hospitalizadas. Por essa razão, sugere uma adaptação do currículo da escola regular do que considera indispensável na aprendizagem dos conteúdos escolares pelo paciente/aluno. Define o público-alvo como educandos em “condição clínica ou exigências de cuidado em relação à saúde que interferem na permanência escolar ou nas condições de construção do conhecimento, ou ainda, que impedem a frequência escolar” (Brasil, 2002, p. 15).
Para atuar no serviço de classe hospitalar, o(a) professor(a) deverá ter, preferencialmente, formação em Educação Especial, em Cursos de Pedagogia ou demais Licenciaturas (Brasil, 2002). Esse profissional precisa adquirir noções das patologias apresentadas pelos educandos e compreender os problemas emocionais decorrentes da hospitalização. Nesse sentido, deve considerar o quadro de saúde da criança para adaptar os materiais de ensino, planejar, diariamente, as atividades, registrar e avaliar os processos de ensino e aprendizagem desenvolvidos.
O objetivo deste texto é refletir sobre experiências docentes narradas por duas professoras de classe hospitalar, na tentativa de depreender os sentidos que atribuem às suas práticas pedagógicas. Organizamos o artigo em duas partes. Na primeira, “Caminhos da pesquisa: da entrevista narrativa às rodas de conversa”, apresentamos as participantes, definimos os procedimentos realizados na recolha e análise das fontes autobiográficas. Na segunda, “Ensinar no hospital: o que narram as professoras”, apresentamos reflexões com base em três eixos temáticos: “Diálogos entre o instituído e as práticas docentes instituintes”; “Concepções de ensino na classe hospitalar”; “Conteúdos escolares: o que ensinar?”
Caminhos da pesquisa: da entrevista narrativa às rodas de conversa
Participaram do estudo duas professoras das redes municipal e estadual de educação, que atuam em hospitais pediátricos de Natal, Rio Grande do Norte. Sophia[1] e Andreia[2] são pedagogas e suas experiências em escolas regulares e em classes hospitalares ultrapassam cinco anos de atuação.
Na recolha dos dados, adaptamos para nossos interesses as orientações de Jovchelovitch e Bauer (2002), que consideram o caráter seletivo da memória e admitem que alguns eventos poderiam ser omitidos, ou transformados, conscientemente ou não. Por essa razão, sentimos necessidade de traçar um roteiro mínimo que pudesse nos ajudar na mediação da construção narrativa das duas professoras, caso se fizesse necessário. Inicialmente, havíamos pensado em realizar entrevistas narrativas e seguir os passos propostos pelos autores no que se refere às diferentes fases da entrevista: Preparação; Iniciação; Narração central; Fases de perguntas; Fala conclusiva (Jovchelovitch e Bauer, 2002). Porém, em conversa com as professoras, surgiu a ideia de utilizar também o protocolo de pesquisa do projeto interinstitucional[3]do qual participamos para estudar as experiências de adoecimento que emergiam de narrativas de crianças, atendidas em classes hospitalares (Rocha, 2012; Rocha & Passeggi, 2014).
Assim, optamos por entrecruzar princípios das entrevistas narrativas e das rodas de conversas como método para a recolha das narrativas. O protocolo, utilizado na pesquisa com crianças, criava uma situação lúdica de “faz de contas”, provocadora de estranhamento. Trata-se de um diálogo imaginário com um extraterrestre vindo de um planeta que não tinha hospitais. A roda de conversa se desenvolveu em três fases: no primeiro momento, fizemos o convite às professoras para participar da pesquisa; no segundo, recorremos ao protocolo mencionado para suscitar a narrativa; e no terceiro, para finalizar a conversa, anunciávamos o retorno do alienígena ao seu planeta. Embora sejam semelhantes a abertura e o fechamento das rodas de conversa, o diálogo com cada participante gerou perguntas diferentes, e dois roteiros foram sendo elaborados na medida em que as narrativas iam se desenrolando.
Ao narrar as suas experiências, as professoras faziam reflexões críticas sobre suas práticas de ensino e suas aprendizagens no hospital, provocadas pelo processo de reflexividade biográfica (Passeggi, 2011a), se permitindo escutar a si próprias e reinterpretar suas ações docentes.
Quanto às análises, seguimos igualmente, os direcionamentos de Jovchelovitch e Bauer (2002) acerca da compreensão hermenêutica das entrevistas narrativas. A proposta dos autores volta-se para um procedimento gradual de redução do texto, que chamaremos aqui de “condensação” ou de “adensamento” do texto. Entendemos que procedimento de ir reduzindo progressivamente o texto em duas ou três séries de paráfrases consiste num processo de interpretação do texto, que adensa o sentido, na própria escolha de palavras que devem ser eliminadas. Ou seja, “Primeiro, passagens inteiras, ou paráfrases, são parafraseadas em sentenças sintéticas. Estas sentenças são posteriormente parafraseadas em algumas palavras-chave. Ambas as reduções operam com generalização e condensação de sentido” (Jovchelovitch; Bauer, 2002, p. 107).
Na prática, distribuímos os passos em três colunas, chegando a seguinte distribuição. Na coluna à direita, inserimos a transcrição do texto na íntegra. Operamos a primeira condensação (redução) mediante paráfrases que inserimos na coluna do meio. Em seguida, adensamos o conteúdo das paráfrases em palavras-chave e palavra-tema. A partir desse movimento de adensamento do sentido do texto, construímos os eixos e categorias interpretantes que emergiam da interpretação das professoras. Para cada roda de conversa, criamos palavras-tema ampliadas e ordenadas em um sistema de categorização geral para as duas rodas de conversa.
Assumimos para a análise das narrativas o critério da categorização temática, agrupando suas narrativas em temas que condensavam a significação e sentidos. Seguimos as orientações dos autores, quanto às duas etapas estruturais: inventário,ao isolarmos os elementos; e a classificação,ao repartirmos os elementos, e assim procurar dar uma organização às mensagens.
Diálogos entre o instituído e as práticas docentes instituintes
Em suas narrativas, as professoras rememoram conhecimentos oriundos de suas formações iniciais e continuadas. Fazem referência a conceitos que embasam suas práticas pedagógicas em ambiente hospitalar. Elas vão, assim, dando sentido ao que fazem e produzindo saberes no ato de narrar suas experiências. Partilharam suas vivências, com base no que chamamos de “redes de conhecimentos e experiências”, que foram sendo tecidas, em suas práticas pedagógicas, na classe hospitalar, ao tempo em que vão atribuindo sentido ao que acontece e lhes acontece, como sugere Passeggi (2011b, p. 149):
A noção de “redes de atenção à saúde” vem sendo utilizada com a intenção de romper com as fragmentações dos serviços em saúde. Para Mendes (2010, s/n), “as redes de atenção à saúde são organizações poliárquicas de conjuntos de serviços à saúde, vinculadas entre si por uma missão única, por objetivos comuns e por uma ação cooperativa e interdependente [...]”. Essa noção ganhou espaço nos debates e ações em saúde, e compreendemos que ela pode ser intercambiada com as experiências vividas na classe hospitalar, entre professores e crianças hospitalizadas, e que temos denominado de “redes de conhecimentos e experiências”.
Larrosa (2002) propõe que pensemos a educação com base na noção de experiência. O autor define a experiência como “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, o que toca” (idem, p. 21). Nesse sentido, a experiência relaciona-se a eventos/acontecimentos que foram significativos para quem narra e que de alguma forma mobilizou, inquietou, transformou o/a narrador/a. Larrosa se refere ao sujeito da experiência, que ele define, não por sua ação no mundo, mas por sua “passividade”, entendida como receptividade, disponibilidade fundamental e abertura essencial para receber e viver a vida.
Assim, o sujeito da experiência é um sujeito “ex-posto”, ou seja, aberto às ocorrências de sua existência. A passividade, à qual se refere Larrosa, relaciona-se à ideia de “uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção”. (Idem, p. 19). Por essa razão, o sujeito da experiência se expõe, corre riscos, porque se deixa ser tocado, e porque intui que o acolher o que o afeta ele também se auto(trans)forma. Mas é pela narrativa das experiências e pela experiência narrativa que ele atribui significações aos acontecimentos, que viveu, está vivendo, ou imagina que viverá no decurso de sua vida.
A dialética entre instituído e instituinte conduz a uma realidade inacabada, um projeto em processo de construção. Conforme, adverte Pereira (2007, s/n):
As palavras de Pereira (2007), ao tratar o instituinte como uma relação de forças permanentes que alcança tanto as singularidades das resistências quanto a construção de novos sentidos dialogam com as falas das professoras. Existe compatibilidade entre escola-educação X hospital-saúde? Ou estamos diante de relações antagônicas? Podemos questionar o fato de a escola, historicamente, ter sido considerada lugar da educação? Da mesma forma que o hospital foi concebido como espaço reservado à saúde? E, portanto, que o atendimento ao ser que adoece deva ser realizado de forma isolada pelos profissionais de saúde, professores e familiares? Ou haveria uma troca entre espaços de aprendizagens: hospital-escola, e entre suas funções: educação- saúde?
Ao longo de suas narrativas, Andreia e Sophia contam as dificuldades de inserção como professoras no ambiente hospitalar. Num lugar destinado aos profissionais da saúde, elas adentram por descaminhos. A professora Andreia (2014) fala em camuflagem:
A camuflagem, à qual se refere Andreia, é a forma como ela dá sentido à figura do professor, que entra de “contrabando”, num espaço no qual ele não tem uma função prioritária. Ou seja, em que a educação surge como algo secundário. Para muitos, o seu papel no hospital é de coadjuvante, ou até mesmo estranho na atenção à saúde da criança. A narradora atribui essa secundarização ao fato de os profissionais de saúde apresentarem certa dificuldade em apreender a criança como um todo, não apenas como um corpo físico em que se alojou a doença que precisa ser extirpada mediante o tratamento terapêutico. Nos parece que, na perspectiva da professora, se a mirada dos profissionais da saúde ocorresse de acordo com a abordagem do cuidado integral à criança, a presença do professor no hospital não seria tão estranha. É evidente que existem exceções. Há instituições hospitalares, no Brasil, que trabalham com esse foco. Mas, de maneira geral, o professor ainda é visto como brinquedista e a própria classe hospitalar como espaço lúdico, sem a compreensão de uma mediação pedagógica. Quiçá essas representações da escola e do professor estejam na origem da ideia de ‘camuflagem’, ou disfarce do professor, que deve se tornar ‘invisível’ aos olhos dos que cruzam com ele nos corredores do hospital. Para mudar essa imagem de si, a professora afirma que, para adentrar no hospital, deve percorrer um longo caminho até que seu trabalho seja compreendido, valorizado, reconhecido. Fontes (2005) lembra que se faz necessário esclarecer, por um lado, que a educação não é função exclusiva da escola, nem a saúde função exclusiva do hospital.
A respeito da inserção do professor no hospital, Sophia (2014) diz:
A narrativa de Sophia soma-se àquela de Andreia, no sentido de que ambas se referem à imagem do professor, seja como “profissional invasivo”, para Sophia, seja pela necessidade de “camuflagem”, para Andreia. Ora, a saúde da criança é uma prioridade. Tanto para os profissionais de saúde, quanto para os familiares, mas, também, para o/a professor(a) e, essencialmente, para a criança enferma. Mas essa não é uma evidência compreensível, no hospital. Para os profissionais de saúde e à família, após um diagnóstico de doença crônica tudo que se deseja é o reestabelecimento físico da criança, e os pais se angustiam com a doença que acomete seus filhos. Nesse sentido, o hospital é o lugar de cuidados onde se encontra a possibilidade de cura. Por isso, ao dizer que o professor precisa ter a sensibilidade de conquistar seu espaço, a Sophia sugere que eleja como guia a sensibilidade, de modo a voltar sua atenção para a compreensão tanto do acolhimento à criança enferma, quanto à sua família no enfrentamento do adoecimento e da hospitalização.
Aos poucos, com diálogos e ações de cooperação, as professoras passam a melhor compreender suas vivências no hospital de forma menos dolorosa e traumática. Os professores vão delineando seu espaço de atuação, ajudando a família a compreender a função da escola no hospital como um direito de seus filhos à educação, e que as atividades escolares podem colaborar com o processo terapêutico. Torna-se necessário que a família saiba que o professor também cuida, à sua maneira, da saúde da criança, e que para ele isso é uma prioridade.
Ao mencionar essa contribuição no processo terapêutico não nos referimos à doença em si, pois precisaríamos de mais pesquisas para confirmar se as experiências educativas no hospital colaboram efetivamente, ou não, para uma boa resposta ao tratamento. O que queremos enfatizar é a contribuição para a compreensão do adoecimento e das emoções, dores, mudanças físicas, parte da criança que padece a experiência do adoecimento e hospitalização. É, nesse sentido, que a presença de professores e da classe hospitalar contribuem para a aceitação de tratamento invasivos, à diminuição de desconfortos provocados por medicações, permanência em UTI, de modo a minimizar para criança o esforço de reestruturação da autoestima, e da imagem de si. (Rocha, 2012).
Concepções de ensino na classe hospitalar
A professora Sophia, ao lembrar os atendimentos realizados às crianças na UTI, narra a seguinte história:
Na sua história, Sophia revela a concepção de ensino e aprendizagem que ampara a sua prática pedagógica, tendo como matriz principal a noção de trocas, compartilhamentos e que nós denominamos de acompanhamento, no sentido etimológico da palavra: estar ao lado de, partilhar com o outro, repartir o pão. Aqui, ela torna visível que a prioridade no seu fazer era estar com o outro, não desistir da criança, embora a situação se colocasse como limitadora de interações, pelas condições de saúde do aluno. Chama atenção, ainda, o fato de ela se perceber como aprendente, no processo de ensinar no hospital. Embora, naquele momento, não parecesse existir a mínima condição de aprendizagens por parte da criança. Mas para a professora, se fazia necessário dar continuidade ao “acompanhamento” que vinha desenvolvendo na enfermaria, antes das complicações que levaram a criança à UTI. Quando dizemos “embora parecesse não existir a mínima condição de aprendizagens por parte da criança”, fomos movidas pelo desfecho da narrativa de Sophia:
Paulo Freire (1996, p. 30), ao discorrer sobre a consciência do inacabamento humano, profere: “Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade”. A atitude de Sophia nos parece intrinsicamente relacionada às palavras de Paulo Freire no instante em que ela não aceita o “não” (não aceita o determinismo do coma), e constrói a sua história com a criança, pautada no cuidado do acompanhamento, no “estar junto com o outro”, pela recusa de discursos instituídos. Sua atitude corrobora o que sugere Schaller (2008, p. 69), em que a professora reinventa o hospital como “um lugar [...] aprendente porque permite deixar marcas do conjunto das relações, das ligações, das associações entre os atores”. Assim, todo lugar é aprendente, e, mesmo os lugares mais improváveis, como a UTI, “os lugares se constituem e aprendem ao mesmo tempo em que ensinam e constituem os atores que vivem nele” (ibidem).
Um lugar aprendente suscita outras maneiras de aprender e ressignificar formas de ensinar já instituídas. O hospital, por suas características singulares, apresenta-se ao professor como um cenário desafiador para sua criatividade pedagógica. Não basta transferir práticas escolares para a classe hospitalar, é preciso construir novos modelos pedagógicos. Nas falas das professoras, observamos como elas sentem a necessidade de ressignificar os modos de ensinar, nos falam em desafios, limitações e nas condições de aprendizagem das crianças, vejamos seus relatos:
No excerto acima, Andreia apresenta o cenário do seu trabalho: a brinquedoteca da Casa de Apoio à Criança com Câncer, demonstrando que os desafios são ainda maiores para “ensinar”, dentro da concepção tradicional de ensino, devido a estímulos lúdicos do ambiente. Reconhece que utilizá-lo para o acompanhamento das crianças não é uma tática muito eficaz, tanto que o número de crianças que fazem atividades na sala é bem reduzido. Andreia (2014) conta:
Vale destacar que a professora, ao mesmo tempo que utiliza o espaço da sala de aula, considera o desejo das crianças em fazer, ou não, uma atividade escolar, respeitando a sua curiosidade e o seu interesse, demonstrando-lhes sensibilidade, dando-lhes atenção como parte do seu fazer pedagógico. Outro aspecto relevante são as táticas que utiliza na aproximação com as crianças, considerando ser importante que cada uma vivencie experiências lúdicas, assim, ela aguarda que a criança explore a brinquedoteca, para apresentar-lhe as atividades escolares, como outra possibilidade de despertar seu interesse. Andreia ressalta as diferenças entre a criança que vai à escola, sabendo que vai estudar, e a criança que vai à brinquedoteca, imaginando que vai brincar. Daí a necessidade de ajustes na prática pedagógica, inferindo em novos modos de ensinar e aprender, com base no tempo da criança, no seu ritmo e não do tempo e ritmo institucionais.
Sophia, ao contar suas experiências na classe hospitalar, fala do lugar da ludicidade em sua prática e demonstra o respeito que dispensa à criança, colocando-a em primeiro plano:
A narrativa da professora indica sua preocupação em conhecer o aluno, sua história e o momento de hospitalização que ele enfrenta, antes de propor a realização de uma atividade escolar. Outro aspecto importante a ser ressaltado é acreditar na criança, no que ela diz, por meio de um tratamento ético e respeitoso. Para ensinar no hospital, Sophia entende ser necessário vivenciar intensamente as experiências da criança com a criança, sobretudo nos momentos de dores, pois considera que, para elas, são momentos formadores da pessoa humana. Tanto para a professora, que deseja colaborar para a segurança afetiva da criança, quanto para a criança, que aceita (pede) essa colaboração para viver melhor no hospital. Para Sophia, legitimar a voz da criança e dar credibilidade à sua dor perpassam o ato de ensinar e aprender. Pois para ela, as aprendizagens se fazem mediante trocas, compartilhamento, estar junto com o outro, no processo de acompanhamento.
Se refletirmos com as professoras, poderemos perceber que conhecer a história do aluno, respeitar seu tempo e suas possibilidades não são questões novas nas teorias educacionais. Autores como Vygotsky (1998), Piaget (1987), Arroyo (2008), entre outros, apontaram essa necessidade. No entanto, a escola tem dificuldades de inserir em suas práticas cotidianas esses aspectos. Talvez pela grande demanda de alunos, pela carga de trabalho dos professores etc. O novo, nas falas das professoras, reside no fato de colocarem tais problemas no centro de sua prática diária na classe hospitalar.
Conteúdos escolares: o que ensinar?
Qual seria o sentido da educação no ambiente hospitalar? As professoras preocupam-se com a educação das crianças no hospital, e revelam os impasses referentes aos conteúdos escolares. O que ensinar para que essa educação seja reconhecida como continuidade do processo de escolarização da criança? Ao serem questionadas sobre o que ensinar no hospital, as professoras dizem:
A fala de Sophia mostra sua preocupação com as transformações físicas e prováveis incidências sobre as transformações identitárias da criança doente, por vezes mudanças radicais no seu corpo, o que acarreta mudanças nas representações que ela tem de si mesma, suscetível de desnorteá-la, pois é colocada numa situação de exclusão social, de violência simbólica[4], de baixa autoestima, de descrença em si mesma e no cerceamento de sua dignidade como pessoa humana. Convém lembrar que a inquietação da professora está marcada pelos princípios da Educação Infantil (2010), preconizados na Proposta Pedagógica e Diversidade:
Sendo assim, o problema da identidade da criança se apresenta como um aspecto importante da preservação de sua dignidade enquanto pessoa humana. Observamos que nas recomendações das Práticas Pedagógicas da Educação Infantil, o eixo “Currículo” propõe que sejam garantidas às crianças: “[...] experiências de narrativas, de apreciação e interação com a linguagem oral e escrita, e convívio com diferentes suportes e gêneros textuais orais e escritos; como também, “situações de aprendizagem mediadas para a elaboração da autonomia das crianças nas ações do cuidado pessoal, auto-organização, saúde e bem-estar” (Brasil, 2010, pp. 25-26). Se ampliarmos tais recomendações, incluídas as narrativas das experiências do adoecimento contadas pelas crianças, ao lado das narrativas da literatura infantil e demais gêneros, é sem dúvidas salutar pensar que as narrativas de si podem ajudar a criança a revisitar suas experiências de mundo. Ricoeur (2010) defende a ideia de uma identidade narrativa, que se constitui no diálogo consigo mesmo e com o outro.
Ao falar sobre os conteúdos a serem ensinados às crianças na classe hospitalar, a professora Andreia faz as seguintes considerações:
A professora se refere à seleção dos conteúdos a serem trabalhados com as crianças de acordo com a condição de cada uma delas, procurando perceber o que é possível, ou não, realizar no momento do atendimento. Ela faz seu planejamento. No entanto, são as crianças que direcionam seu fazer pedagógico. As diferentes faixas etárias, no hospital, os diversos níveis de aprendizagem das crianças exigem do professor muita flexibilidade e atenção aos conteúdos a ensinar, quando ensinar, como ensinar.
Os professores da classe hospitalar precisam estar atentos para verificar as possibilidades e os limites de cada criança. Assim, quando a lógica educativa da escola se materializa no hospital, são necessárias reflexões sobre o currículo, como recorda Taam (2004). Para o professor, o desafio não é fazer adaptações do currículo escolar para a classe hospital, mas antes construir modelos educativos que respondam às peculiaridades do ambiente hospitalar onde vive a criança em sua concretude.
Considerações finais
As narrativas autobiográficas das professoras participantes da pesquisa orientaram nossas reflexões para interpretar o que elas interpretam como o sentido às suas práticas pedagógicas em classe hospitalar. Elas concordam que acompanhar as crianças em classe hospitalar conduz a uma auto(trans)formação permanente de si. Para essas professoras, trata-se de um processo realmente autopoiético, de reinvenção de si. Tanto para elas, na busca de uma identidade profissional, quanto para as crianças gravemente enfermas que sentem as transformações de seu corpo provocadas pelo adoecimento. Ao narrar, elas sinalizam que passam a melhor compreender o mundo do hospital, o outro e a elas mesmas. Suas narrativas evidenciam experiências que nos ajudam a compreender os lugares de ensinar e aprender e a problematizar práticas pedagógicas instituídas e instituintes.
As professoras nos dão pistas concretas sobre o ensinar e o aprender, demostrando a necessidade de posicionamentos político e ético na atenção à criança hospitalizada. Um cuidado a ser partilhado, no hospital, entre professores, profissionais de saúde, a família e a criança, a favor de um atendimento de qualidade nos tratamentos terapêuticos de atenção à saúde física, emocional, intelectual, experiencial que fazem parte da vida, na complexidade de sua plenitude. Por que então não compor ‘juntos’ novas “redes de conhecimentos” partilhados, construídos no embate diário contra ideias herdadas e a favor de novas formas de compreender o ensinar e o aprender de forma dialógica, na escola e na vida?
Resumo
Main Text
Introdução
Caminhos da pesquisa: da entrevista narrativa às rodas de conversa
Diálogos entre o instituído e as práticas docentes instituintes
Concepções de ensino na classe hospitalar
Conteúdos escolares: o que ensinar?
Considerações finais