Dossiê | Escuta e participação nas pesquisas com (sobre) crianças

Proxêmica das experiências infantis do brincar arriscado em equipamento específico de lazer

Proxémica de las experiencias de juego arriesgado de los niños en instalaciones físicas para recreación

Proxemics of children's experiences of risky play in specific leisure equipment

Giuliano Gomes de Assis Pimentel, André da Silva Mello



Destaques


Potência da combinação teórico-metodológica entre Proxêmica e Sociologia do Cotidiano para a pesquisa com crianças.


Estudo de campo longitudinal com dados densos sobre o brincar arriscado entre crianças.


Reconhecimento e valorização das práticas infantis como formas singulares de produção cultural.


Resumo


Proxêmica estuda a relação entre corpos e o espaço circundante. Nós a adotamos como modelo teórico-metodológico de pesquisa para observação participante em territórios de brincar arriscado. Para tanto, realizamos um estudo de campo em parques infantis. A partir do referencial mobilizado, identificamos que as crianças se auto-organizam e, de forma relacional, constroem padrões de aproximação corporal que refletem seus interesses na relação intergeracional ou entre pares. Frente a isto, encontramos na proxemia infantil uma possibilidade privilegiada de escuta e de desvelamento da participação das crianças, enfatizando como elas organizam a relação com o outro e com o território do brincar.

Resumen | Abstract


Palavras-chave

Criança. Brincadeira. Infraestrutura de Educação Física.


Recebido: 12.09.2023

Aceito: 09.11.2023

Publicado: 28.11.2023

DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202350794


Introdução


A adoção da escuta e da participação das crianças nas pesquisas se constitui como princípio ético, político e estético com as infâncias, na perspectiva de retirá-las da condição de subalternidade e de invisibilidade social, a qual historicamente foram submetidas. Por sua vez, a verdade deste axioma nos impele a entender procedimentalmente o tempo e o espaço da escuta na metodologia dos estudos. Neste sentido, em nosso fazer científico-dialógico deparamo-nos com a complexidade em observar as práticas das crianças no contexto lúdico e intergeracional dos playgrounds, um espaço educativo extramuros escolar. Frente a este desafio, recrutamos a proxêmica (Hall, 2005), à luz dos estudos do cotidiano (Certeau, 2014), para refinamento da entrada reativa (Corsaro, 2011), como modo de ingresso do adulto no território cultural infantil no momento e no lugar assentidos pelas crianças.

Neste texto apresentamos a intersecção supramencionada a partir da materialidade de um estudo empírico para compreender quais interações proxêmicas são recorrentes no contexto relacional entre crianças ou delas com adultos, em 18 parques infantis, planejados para induzir situações de risco controlado. Embora circunscrita a uma cidade específica, Maringá (PR), a pesquisa enseja a problematização das cidades e de seus espaços. Arquiteta-se nos brinquedos como as crianças agirão, sem consultá-las; mas, por outro lado, as infâncias agem sobre a estrutura, por meio de táticas, subvertendo a estratégia tecnocrática do adulto (Certeau, 2014).

A este respeito é potente o conceito de prática em Certeau (2014), em sua tripla dimensão (ética, estética e polêmica), para dar visibilidade às resistências e aos modos particulares de produção cultural das crianças. Os bens culturais ofertados não são consumidos passivamente, pois o cotidiano é disputado por práticas que os diferentes sujeitos lhe imprimem. Portanto, um equipamento público de lazer está sujeito ao que Certeau (2014) denominou de consumo produtivo. Sendo que tal estética da recepção é percebida nas sutis práticas de apropriação da cidade pelas crianças, encontrar tais produções entre as culturas infantis é uma forma de sublinhar o protagonismo compartilhado por elas em suas relações autorais com os brinquedos de grande porte.

Respeitar e levar em consideração as crianças como sujeitos na constituição de uma experiência pública compartilhada confere outra dignidade à cidade, pois as diferenças devem encontrar ressonância na vida em comunidade, nos termos de uma sociabilidade regida pela pluralidade humana. Logo, excluir as crianças dos vínculos sociais mais amplos é privar a infância de determinadas experiências e subordiná-la a regimes discursivos que nada contribuem para o seu reconhecimento público.

Avançando nesta premissa, faz-se necessário aprimorar o trabalho de campo sobre como e onde escutar as crianças, já que elas detêm um modo de enunciado de sua existência no mundo — capaz, inclusive, de trazer novas lógicas comunicativas (Mello et al., 2021a). É neste sentido que os modos de brincar arriscado das crianças, o jeito como subvertem os parquinhos e produzem movimentos e jogos à parte do planejamento urbano remetem à proxemia como algo associado às crianças como praticantes do cotidiano e produtoras de cultura.

A proxêmica é o estudo de como cada ser vivo se organiza territorialmente em relação aos outros (Hall, 2005). Como adultos, ainda mais agravadas pela pandemia de coronavírus disease (covid-19), nossas relações são de distanciamento social, dificultando o tato como forma de sociabilidade (Gomes et al., 2021). Mas como será que as crianças se organizam no espaço lúdico no qual encontram facilidades logísticas para produzirem práticas de vertigem, de superação e de desafios de riscos que elas mesmas administram? Quais relações proxêmicas predominam nestes usos? O que acontece com as crianças interagindo entre si e com os adultos?

Para estabelecer descobertas que nos aproximem das respostas para estas questões, o objetivo deste trabalho é analisar as interações proxêmicas entre crianças e entre crianças e adultos na exploração de um equipamento específico de lazer apropriado ao brincar arriscado. Com isto, evidenciamos, nesta forma singular de escuta e de participação das crianças, as suas agências e produções culturais.

Método


O trabalho teve uma abordagem etnográfica urbana (Magnani, 2000), na qual buscamos, via o registro da comunicação entre corpos, a identificação de recorrências proxêmicas. Embora diferentes casos isolados chamem a atenção, eles não representam comportamento típico. Desta forma, privilegiamos os casos expressivos que incidiram em diferentes observações, delineando um possível padrão. Foram analisadas as relações criança/criança e adulto/criança.

A pesquisa teve início com o levantamento exploratório a respeito do equipamento de lazer denominado Meu Campinho, de forma a encontrar diferentes sentidos atribuídos nas relações proxêmicas das crianças neste complexo de quadra com grama artificial, pergolado e locais fixos para jogos de tabuleiro. Posteriormente, o município de Maringá disseminou os brinquedos de corda em outros espaços públicos, notadamente nas praças gramadas, ambiente característico da cidade.

O estudo-piloto consistiu em visitas e em registro fotográfico das doze primeiras estruturas construídas, realizados ainda durante o período de isolamento social, em agosto de 2021, com os devidos cuidados de distanciamento e de profilaxia. Gradativamente, a empiria foi apontando para a importância dos brinquedos de corda para a expressão das crianças, incluindo a interação com as atividades de cuidado ou o brincar junto dos familiares.

As observações sistematizadas tiveram início em 9 de novembro de 2021 e se encerraram em 29 de maio de 2022, sendo retomadas no mês de setembro para refutar/validar categorias. Inicialmente foram sorteados horários para as incursões, até que houvesse saturação dos dados e concentração da coleta nos dias e horários de maior movimentação pública (finais de semana ou feriados e das 17 às 20 horas nos dias de semana). Foram observadas 612 pessoas e registradas 539 configurações em 47 dias (68 incursões), as quais foram distribuídas por categorias e colocadas em percentual de ocorrência. Houve assentimento das crianças e o consentimento dos adultos para a utilização das descrições e das imagens.

Como facilitadores da observação participante, considerando que o ambiente é um espaço destinado ao lazer infantil, os pesquisadores estruturaram dois tipos de incursão a partir do estudo-piloto, que são diferenciados a partir do tempo, a fim de garantir a incorporação de sua presença no ambiente: 1) incursão breve — as pessoas utilizam o local como ponto de descanso na realização de algum circuito, seja caminhando ou pedalando. Reproduzimos a prática de paradas de descanso nos complexos ou nas praças para observações de curta duração, com registro em áudio no celular das cenas observadas; 2) incursão longa — acima de 20 minutos até duas horas, quando os pesquisadores foram aos locais para aplicar a entrada reativa1 com crianças e adultos, além do registro por meio de filmagens, de fotografias e de anotações diretas no diário de campo (especialmente para representação em croqui da distribuição espacial das pessoas no brinquedo e seu entorno).

Neste sentido, a proxêmica é uma abordagem promissora, uma vez que prioriza a dimensão relacional e contextual das interações que os organismos vivos estabelecem com o espaço. O primeiro expoente da área foi o antropólogo Edward Hall, que se preocupou em observar como a percepção do espaço pelas pessoas muda com a cultura e representa uma forma de comunicação singular, não obstante a territorialidade ser um traço inato em diferentes animais. O autor define a proxêmica como o estudo do “[...] uso que o homem faz do espaço como uma elaboração especializada da cultura” (Hall, 2005, p. 2).

Reiteramos que, além de subsidiar a problematização, o referencial mobilizado balizou também nossa coleta, uma vez que deu rigor metodológico maior em primeiro apreender a lógica das práticas infantis naquele contexto, para posteriormente segui-las como regras tácitas de interação no processo de entrada reativa. Portanto, a questão do assentimento da criança incluiu de forma precedente a palavra em ato, com um processo gradual de proxemia, a saber: estranhamento à distância, troca de olhares com comunicação rápida (um oi tímido), aproximação curiosa para falas pontuais (guardar um objeto, responder a uma pergunta, ser comunicado de uma brincadeira que irá ser iniciada), até chegar ao momento de um novo oi, provocativo, seguido de convite para se aproximar, conversar, jogar junto nas regras delas ou dar assistência ao brincar arriscado.

Considerando o aporte teórico deste estudo, não foram realizadas entrevistas, pois o dado mais relevante se encontra na forma como as pessoas observadas, sobretudo as crianças, interagem entre si e com o espaço. Para Certeau (2014), é primordial captar o sentido da enunciação que se circunscreve ao ambiente sociointeracional de sua produção. Por isto, o registro em caderno de campo privilegiou as falas em ato, que não podem ser afastadas do seu contexto de produção. Por outro lado, esta opção metodológica inviabiliza inferências sobre as representações dos atores a respeito das ações e da intencionalidade deles.

Incursionamos em diferentes territórios urbanos de Maringá (PR) a fim de compreender especificamente as dinâmicas contextuais e relacionais presentes na experimentação dos brinquedos de cordas (pirâmide e travessias), os quais evocam a sensação lúdica da vertigem. Aqui nos valemos do diálogo com a Sociologia do Cotidiano para tomar como pressuposto a relação proxêmica tátil que as crianças têm com os objetos enquanto forma de conhecê-los.

Ao todo foram abordados 18 equipamentos, divididos em doze complexos Meu Campinho e seis praças. A estrutura do Meu Campinho é identificada por um campo gradeado de grama sintética e mesas com bancos, enquanto as praças são heterogêneas, em termos de tamanho, arborização e facilidades. Tanto em um equipamento quanto no outro havia a presença de pirâmide (Figura 1) e de pontes de corda (Figura 2) como de estruturas comuns a todos os complexos, sendo que em alguns ambientes de praças já se encontravam variações, a exemplo do cesto (duas praças), conforme a Figura 3. Independente de qual fosse o brinquedo instalado, havia piso emborrachado como proteção (Figura 4).

Figura 1

Pirâmide/torre com cordas

Fonte: elaborado pelos autores.


Figura 2

Diferentes tipos de ponte de corda

Fonte: elaborado pelos autores.

Figura 3

Cesto para descanso ou girar

Fonte: elaborado pelos autores.

Figura 4

Piso amortecedor de quedas

Fonte: elaborado pelos autores.

Um ponto que merece atenção, dado ao aspecto longitudinal do trabalho de campo (dez meses), é a identificação de mudanças no objeto. Estas alterações se mostraram tanto nas interações das pessoas com o equipamento de lazer como também na municipalidade, com diferentes brinquedos disponíveis e desenhos arquitetônicos, com o intuito de variar o padrão do piso, da pirâmide/torre e das pontes do equipamento. Assim, para fins deste trabalho, excluímos o detalhamento sobre estas estruturas experimentais e inseridas pontualmente em áreas nobres da cidade.

Outro ajuste no estudo ocorreu com o achado a posteriori de que havia diferenças proxêmicas no uso dos brinquedos em bairros centrais e bairros periféricos. As últimas observações foram concentradas em quatro ambientes selecionados intencionalmente pela representatividade (dois do centro e dois da periferia), considerando como critério de seleção dentro da categoria o local que tivesse maior fluxo de pessoas.

Por fim, a apresentação do achado foi estruturada em dois macrogrupos proxêmicos dominantes (adulto-criança e criança-criança), que não foram estabelecidos a priori, manifestando-se no processo. Questões analíticas que atravessam o cotidiano, como as relações étnico-raciais, econômicas e de gênero, foram identificadas e analisadas no interior destas duas categorias sociais produzidas a posteriori.

Dinâmicas entre crianças e adultos


A propósito do tipo de interação que o adulto estabelece com a criança no equipamento, categorizamos três momentos: entrada, atividade e saída. A entrada corresponde a como o adulto acompanha a criança até o local da brincadeira, diferenciando-se especialmente quanto ao conhecimento que possui da autonomia da criança em enfrentar os desafios de cada estação do brinquedo. Neste sentido, as diferenças etárias entre crianças são um dado fundamental, visto que crianças menores tendem a realizar deslocamentos ou brincar sentadas nos locais de piso emborrachado, portanto, a entrada no ambiente é feita de forma mais localizada, nas bordas; enquanto crianças maiores, em geral, desvencilham-se dos adultos e exploram inicialmente um ou mais brinquedos afastados da ação imediata dos adultos.

Uma vez iniciado o momento da atividade, a entrada, podemos observar que os adultos adotam diferentes modos de distância, nos quais um deles sempre será predominante. Com base na tipificação de Hall (2005), a distância pode ser: 1) íntima, quando envolve contato corporal com a pessoa de afeto, que fornece segurança; 2) pessoal, na qual há interação com proximidade, sem toque; 3) social, sugerindo uma interação mais formal, mas que permita ler a fisionomia do outro; 4) pública, acima de 3,5 metros, na qual se pode observar aspectos mais gerais, mas não os detalhes do corpo do interlocutor. Todavia, o autor adverte que, na cultura ibero-americana, ser da família implica uma outra relação entre pessoas no território.

Em relação à empiria, na comparação entre grupos étnicos, a distância íntima foi mais praticada no interior de famílias nipo-brasileiras (nissei, sansei, yonsei), com figuras paternas e maternas em igual relação de oferecer segurança e, concomitantemente, mantendo vigilante distância pública das crianças fora do núcleo familiar. Já na questão de sexo/gênero, em geral mulheres passam mais tempo na distância pessoal. A distância íntima é mais destinada às crianças na primeira infância, sobretudo quando sobem nos brinquedos ou solicitam ajuda parental.

Outro padrão adulto observado durante a atividade é que o homem se posiciona mais atrás ou ao lado da criança, adotando um olhar similar à meta do infantil. Efetivamente, o homem adulto busca dirigir ou sugerir a atividade: Pega lá; Sobe aqui; Filha, pisa na madeira da frente e segura com a mão na corda; Quero ver você chegar até ali. A atuação da mulher adulta também possui marcas na distância pessoal, mas em 78% das vezes ela está olhando para a expressão facial da criança, traçando diálogos mais afeitos à captação de sentimentos, como medos ou desejos. Até mesmo quando intervém para acionar ações da criança, a mulher adulta adota postura diferente: Olha o que aquele coleguinha consegue fazer. Quer tentar?

Quando as crianças são mais velhas, especialmente a partir dos oito anos, e sobretudo quando estão acompanhadas de seus pares (irmãos, amigos, vizinhos), a tendência dos adultos é adotar a distância pública, chegando a 70 metros em alguns casos. É comum que adultos levem cadeira de praia ou alguma toalha de piquenique para sentarem enquanto observam intermitentemente as crianças de longe. Também é representativa a relação entre distância social em ambos os sexos, mas mantendo a diferença de alinhamento frontal para mulheres e lateral para os homens, no que se refere à direção da criança. Esta distância é frequente nos seguintes casos: acompanhar mais de uma criança e alternar distanciamento (saindo da distância pública para dizer algo ou da distância íntima para realizar a vigilância e permitir mais autonomia à criança). Importa observar, portanto, que há diversidade nos procedimentos que os adultos tomam durante a atividade.

O último momento é o encerramento (saída), geralmente dado pelo adulto. Vale ressaltar que em 81% das vezes as crianças não vão sozinhas, o que varia quando se está no pedaço, isto é, no bairro periférico, onde as pessoas se conhecem. Quando o adulto está presente é comum chamar a criança avisando que é hora de ir para casa; à medida que ela o ignora, ele vai se aproximando para a convocação de partida. Frente à ausência de entrevistas, não é possível inferir as motivações ou parâmetros usados pelo adulto para interromper a atividade. Quando são as crianças na iniciativa de encerrar, elas expressam a vontade de não brincar mais ali.

Aqui vale acrescentar a estratégia comum por parte dos adultos de levarem água, às vezes até isopor, para aumentar o tempo de permanência das crianças. Já para motivar a saída, é comum haver nas instalações alguém que ritualiza o encerramento com um piquenique. Nas áreas consideradas nobres é corriqueiro que os responsáveis levem materiais complementares como bolas e bicicletas com rodinhas.

Embora exista certa fidelização das famílias a determinado território, como um habitus que marca o lugar de cada grupo na sociedade, também pudemos desvelar táticas nômades de movência em relação aos espaços públicos da cidade. Ao nosso ver, isto pode impactar no protagonismo compartilhado entre adultos e crianças na apropriação do meio para o brincar arriscado.

Santos (2004), ao realçar a importância fundamental do corpo em movimento para a compreensão da realidade, adverte que a corporeidade é determinada pela espacialidade. Portanto, todo movimento interage com a dimensão espacial que, em certa medida, incita ou inibe respostas do corpo. Nesta perspectiva, as sociabilidades parentais ou de amigos participam da ressignificação destes espaços sob diferentes categorias táticas.

Em diálogo com o trabalho antropológico de Magnani (2000; 2003; 2018), podemos perceber as táticas familiares em dispor destes equipamentos para um vagar ciclístico. O autor identifica, por exemplo, o lugar vivido em termos de proximidade como pedaço, pois representa uma localidade na qual os moradores de certo bairro ou vila se sentem familiarizados. Mas, as pessoas podem precisar se dirigir para outros ambientes para vivenciarem o lazer, tendo que aderir a comportamentos mais impessoais enquanto realizam a transição do pedaço ao Parque do Ingá, por exemplo, um dos macroequipamentos de lazer de Maringá (PR). Desta forma, ao saírem do pedaço, as pessoas precisam perfazer certos trajetos que as conduzem para uma mancha ou um circuito. Mancha é uma área concentrada de atrativos, como a rua Tiradentes (dos bares e restaurantes da moda), que liga o Parque do Ingá à Praça da Catedral, ponto de encontro das diferentes configurações sociais. Já circuito evoca passar em lugares distantes, mas que marcam um roteiro culturalmente significativo para certo grupo.

Retornando à empiria, em nossos registros, os complexos Meu Campinho e as praças evocam o circuito. Conforme a familiaridade com os territórios, adultos e crianças adotam o vagar majoritariamente por meio ciclístico. Observamos adultos acompanhados de bicicleta por crianças na segunda infância ou mesmo adolescentes. Eles fazem incursões breves nos brinquedos, traçando uma espécie de rodízio recreativo, tendo o Meu campinho, praças ou outros equipamentos como pontos de parada. Noutros casos, o circuito é feito por veículo motorizado, o que possibilita conectar o pedaço às manchas de lazer do município.

Algumas observações quanto ao limite do escopo precisam ser feitas, de modo que novos estudos sofistiquem o olhar sobre o modo como interagem adultos e crianças no brincar arriscado. Os resultados contextuais nos levaram à subcategorização por traços étnicos, sexo e estrato social no comportamento dos adultos. A categoria sexo foi adotada a posteriori, porque na empiria não foram identificados casais homoafetivos e, portanto, no limite metodológico da observação participante não avançamos na identidade de gênero dos adultos. Porém, à medida em que, a partir das interações proxêmicas, vimos padrões que diferenciavam o masculino do feminino na abordagem adulto/criança, também podemos falar mediante à questão de gênero na forma como ocorre a interação com a criança.

A variável traço étnico se fez presente na interseção entre raça e herança cultural, no sentido de distinguir dois grupos: descendentes nipônicos e hispano-falantes. Embora 25% da população de Maringá (PR) seja negra (pardos e pretos), nas observações mais se destacou a sua ausência, sobretudo nos bairros com melhor infraestrutura urbana. Em acréscimo, vale destacar que a cidade possui recente e visível imigração negra haitiana, mas as famílias não foram encontradas nas incursões.

Um estudo feito sobre o lazer físico-esportivo de famílias nos territórios urbanos de maior vulnerabilidade social da cidade indicou que há a percepção alta de que o bairro é um lugar inseguro para a infância. Como efeito, os adultos restringem a autonomia das crianças em irem sozinhas para brincar em locais públicos no tempo livre delas (Silva Junior et al., 2021). Embora Maringá (PR) possua planejamento urbano moderno, baixos índices de violência e alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em comparação ao nível nacional, a cidade foi arquitetada como uma mercadoria pela companhia que a planejou, gerando um oásis às custas de segregação socioespacial (Nunes & Santil, 2020).

Como desdobramento desta realidade, outro recorte possível de ser observado é que a localização do equipamento conforme cada bairro está associada à incidência de certos indicadores que denotam diferenças sociais, tais como postura física, volume de voz, bens de consumo e roupas. Adotamos o termo estrato social uma vez que, formalmente, as pessoas observadas não constituem a rigor a burguesia, mas camadas diferentes (em termos de residência, gosto de classe, acesso a bens de consumo) dentro da classe trabalhadora.

Em síntese, na periferia predomina o desgaste dos brinquedos por maior uso, com os adultos também usufruindo destes objetos, além de haver excursões de cidades vizinhas. Em muitos casos, especialmente em relação aos homens adultos, os brinquedos de grande porte são explorados por eles junto com as crianças. Nos equipamentos das áreas centrais da cidade há melhor conservação, além de haver um brinquedo extra no equipamento, que é o cubo (Figura 5).

Figura 5

Cubo, brinquedo de grande porte

Fonte: elaborado pelos autores.

Enfim, no que toca ao comportamento dos adultos, a força da estrutura parece ser mais evidente. Porém, eles também, como sujeitos do cotidiano, sabem adotar táticas para escaparem do olhar panóptico. Estas artes de fazer, dissimular, confundir o poder instituído foram sendo reveladas à medida que a observação participante se aprimorou. Um exemplo de artimanha sutil é como alguns pais embaralham os marcadores de classe, como o vestuário, para que os filhos não sejam discriminados por outros adultos quando da ida aos equipamentos das áreas nobres. Estas evidências, a nosso ver, corroboram muito mais com a proposição de Certeau (2014) sobre a potência das pessoas ordinários do cotidiano em resistirem à estrutura por meio do consumo produtivo de novas práticas.

Proxêmica na relação entre crianças


Em relação ao conjunto de 612 crianças observado, selecionamos padrões quanto ao estrato social e ao desenvolvimento (primeira e segunda infância, sendo possível identificar questões de gênero nesta última).

As configurações que as crianças estabelecem entre si não são necessariamente padronizadas, mas seguem algumas afinidades eletivas. A conexão mais comum é o agrupamento por faixa etária, seguida da tendência pela busca por pares em crianças do mesmo sexo. Com o aprofundamento das observações, a regra da exceção a estes dois padrões é a presença de irmãos, uma vez que a criança mais velha, conforme o contexto, associa a participação nas interações com os demais infantis em função da inclusão do(a) irmão/irmã. Além disto, conforme já observado, a localização do equipamento vem acompanhada de diferenças entre a proxemia. No centro há mais distanciamento; enquanto que nos bairros de periferia, a tendência de jogos em grandes grupos e de interações face a face é mais acentuada.

Outra variável presente na configuração criança/criança é a interferência do adulto, o que geralmente é favorável à interação segura com o equipamento, especialmente na parte dos modelos de ponte. Considerando que tais brinquedos estão a 150 cm do piso, muitas crianças precisam da intervenção de um adulto para subir e se sentirem apoiadas via proxemia íntima para realizar o percurso. Conforme a teoria do apego de Bowlby (1989), certas figuras próximas são essenciais para fornecer segurança nos desafios e conforto nas frustrações, de modo que se desenvolva uma personalidade madura para a exploração dos ambientes ameaçadores.

Porém, a presença de adultos ansiosos e que tolhem a experimentação do brincar arriscado é um fator de prejuízo tanto do aprendizado da gestão de riscos quanto da proxemia (afastar/aproximar-se de outros). Por isto, à medida em que as crianças adquiriam certa proficiência sobre os brinquedos, elas desejavam novas explorações, algumas delas de forma repentina, a exemplo de torcer as cordas do cesto para girar em alta velocidade, sentindo vertigem. Porém, o mais comum era desejarem fazer as travessias na ponte de forma mais rápida ou subir a pirâmide/torre. Em certos casos, era necessário despistar o adulto, contando, inclusive, com a cumplicidade de outras crianças.

Da parte delas, foi possível encontrar artimanhas e táticas de resistência diante do poder do adulto em interferir na atividade ou decretar por um tempo arbitrário (chronos) o fim da brincadeira, que se passa no tempo vivido (kairós). Destacaríamos como efetiva e recorrente a ação de se deslocarem por baixo das cordas da pirâmide (alguns chamam de torre), porque é difícil para o adulto, devido ao seu tamanho, acompanhá-las. Mas, ao adotar esta tática, o que as crianças faziam? Observamos que elas começavam a combinar entre si a realização de jogos, especialmente de pegar, alguns deles envolvendo brincar de lutas. Neste caso, as produções delas se aproximam do que se entende por brincadeiras lúdico-agressivas, tal como tratado por Barbosa et al. (2017).

A este respeito, podemos adjuntar à análise a discussão de Parlebas (2014) sobre a lógica interna do antagonismo entre corpos no espaço em situações de jogo. Para este autor, a relação entre ação motriz, espaço e outras pessoas pode ser tipificada em psicomotriz, quando a interação é entre sujeito e ambiente físico; ou em sociomotriz, ou seja, com contato humano direto, sendo esta subdividida em oposição, cooperação ou híbrido. Já o ambiente está em algum ponto entre os polos da padronização e da imprevisibilidade.

Em nossa análise, o equipamento pesquisado possui como potência a possibilidade de abertura a diferentes apropriações. Em termos de frequência, as interações iniciais nos locais tendem a ser psicomotrizes nas pontes, mantendo-se a proxemia pública e pouca incidência de risco. Gradativamente, conforme cresce o conforto da criança em explorar, registramos as aproximações pautadas em atividades sociomotrizes de oposição (pega-pega), cooperação (subir a pirâmide/torre) e híbridas (jogos em equipe inspirados em games). Há ainda, sob a forma aparente de exercício psicomotriz, um explorar dos brinquedos com mais risco (pendurar-se nas cordas, por exemplo) e/ou movimentos de aproximação (proxemia de pública para social).

A respeito da mudança de status proxêmico criança/criança, uma ação comumente vista nos estratos de maior capital socioeconômico foi o simples ato de se sentarem nas cordas para conversar longe da audição dos adultos. Na relação criança/criança é recorrente que elas socializem e conversem sentadas nas bases entre cordas (Figura 6). Além da incorporação infantil do habitus burguês, no sentido sociológico, o fato de elas estarem, via de regra, de banho tomado, com roupas novas e de calçados fechados limita a proxemia mais íntima e lúdico-agressiva observada nos bairros periféricos, configurando uma estratégia dos adultos para inibir contato físico.


Figura 6

Bases quadradas de borracha para assento

Fonte: elaborado pelos autores.

Nestes casos, embora o planejamento urbano não seja amigável com o mundo cinestésico das crianças (Agamben, 2005), entendemos que elas conseguem agir e ressignificar os espaços, com produção de cultura por pares e a sua fala se dando em ato, sendo possível observar o protagonismo infantil nas brincadeiras (Mello et al., 2021b). Vale acrescentar que estas interações também se mostram em variações do jogar/brincar de forma mais arriscada. Sendo assim, considerando a cultura em seus usos (Certeau, 2014), como esta relação se mostra nos espaços dos brinquedos e para além deles em praças e complexos Meu Campinho?

Em relação aos jogos, havia duas formas mais públicas de iniciar as brincadeiras. Uma das conjunções criança/criança mais comum e que atravessou a territorialidade presente nos equipamentos de centro e de periferia foi o chamar uma outra criança para brincar, simplesmente emitindo uma saudação (oi) com uma entonação provocativa. Em termos de efeito, era como se, por este tom, uma criança fosse desafiada, em uma distância pública, a se aproximar da outra e tocá-la (distância íntima) de forma agonística.

Pelos registros de ocorrência, notamos que esta forma de convocação se dá entre infantis de quatro a sete anos, predominantemente. Há um valor nesta maneira de fazer o contato, uma vez que a literatura a respeito do desenvolvimento infantil sugere a existência de uma tendência de as crianças adotarem formas mais individualizadas de proxemia (Fiaes et al., 2010). Em analogia à entrada reativa (Corsaro, 2011), estas crianças apresentam formas compreensíveis entre si de quebrar a barreira do distanciamento e de estabelecer oportunidades entre elas, ao mudar o status proxêmico com o qual cada uma ingressou isoladamente naquele solo emborrachado.

A segunda convocação é coletiva, quando se caminha pelo espaço perguntando se o outro quer brincar. A prática é liderada mais frequentemente pelos meninos mais velhos daquela configuração no momento e predomina nos bairros da periferia. Dentro desta prática, notamos, nas primeiras observações, a hegemonia do pega-pega, cuja regra é, após se delimitar um espaço, todos correrem do pegador, que deve tocar em alguém, tornando-o o novo pegador. À medida em que o tempo passou, registramos novas formas de dinâmica lúdica, demonstrando a possibilidade de as crianças produzirem novos fazeres sobre o equipamento de lazer estandardizado.

Avançando nesta escuta, chama a atenção que as crianças observadas sofisticam as formas de interação com usos não previstos. Em uma das praças, meninos adaptavam narrativas de jogos eletrônicos (Free fire, Fortnite e Among Us) para o pega-pega, promovendo novas regras e táticas inspiradas no signo dos games. Aqui identificamos como as culturas infantis possibilitam o consumo produtivo, conceito trazido por Certeau (2014) para se referir ao modo ativo de cada pessoa recriar os produtos culturais de massa.

Em um dos casos, as crianças coletaram coquinhos da palmeira Butia capitata, que é típica do cerrado e foi introduzida há tempos nas praças pela proposta paisagística do município. Então, elas se organizaram em duas equipes e tomaram como objetivo acertar a maior quantidade de frutos no adversário. O campo de jogo se ampliou para o gramado com uma fluida alternância de movimento ofensivo para se aproximar e acertar; e defensivo para se afastar do outro e dificultar a mira. Esta ação transcorreu por 17 minutos até se esgotar. Após a brincadeira, um deles, com nove anos, afirma: “Ainda bem que foi Fortnite, que eu gosto mais, porque o Free fire é violento”. O líder da brincadeira anuiu com a cabeça.

Inferimos que, ao menos no olhar daqueles meninos, a evocação do imaginário do game Fortnite e não de outro (Free fire) pressupunha um contrato tácito de uma brincadeira lúdico-agressiva sob risco/violência mais controlado. Portanto, além de consumo produtivo, as crianças são capazes de gerir o risco no brincar. Ademais, estas artes de fazer infantis situam também que as crianças adotaram formas dinâmicas de proxemia. Naquele brincar arriscado, a vivência do terreno e da dor causada pelo coquinho resulta em uma experiência de distância ótima para fruir o jogo.

Conforme o estudo evidencia, há relações de protagonismo compartilhado mais pronunciadas entre as crianças do que entre adultos e crianças. Isto ocorre, entre outros aspectos, porque a forma de socialização e de aprendizagem de muitas infâncias se dá em movimento de cultura de pares. Cada distância entre pessoas está associada a um modo de se comunicar (Hall, 2005) e, na nossa empiria, são as crianças que mais rápida e ativamente fazem uso de linguagens para reduzir as distâncias interpessoais.

Uma vez que a aprendizagem ocorre quando alguém se espelha no mais desenvolvido, mais condições objetivas de troca, em proximidade, é condição oportuna para as crianças serem mais proficientes no enfrentamento dos desafios. Por isto, a aprendizagem por pares parece precisar mais de proxemia íntima para gerar desenvolvimento a partir das condições objetivas do equipamento físico-esportivo.

Por outro lado, Hall (2005), sociólogo inserido no contexto estadunidense, trouxe a proxêmica à baila devido à preocupação biossocial com a garantia do espaço privado vital para a promoção da saúde psicossomática de cada indivíduo. Um dos aspectos levantados por ele é que a superlotação dos ambientes resulta em empobrecimento do desenvolvimento. Logo, a menor diversidade de brinquedos, a falta de manutenção ou mesmo o número insuficiente de instalações em um bairro têm implicações negativas no protagonismo e nas interações proxêmicas livres.

Um exemplo é a já mencionada presença de lugares para sentar entre as cordas do brinquedo cubo, restrito às partes com maior IDH do município. Como as cordas são em certa medida duras e ásperas, elas acabam sendo desconfortáveis se a criança, ainda mais descalça, permanecer muito tempo no brinquedo. Em face disto, os equipamentos da periferia já possuem uma indução de variação de uso que dificulta as oportunidades de conversa articulada entre certo grupo de crianças.

Por isto, ao trazermos diferentes referenciais complementares para pensar a espacialidade interpessoal na relação com o brincar, incorporamos novas inquietações, como a mobilização social. Chama a atenção, em todos os casos, como variáveis socioculturais estão presentes nas formas de interação. Um dos aspectos destacados nos fazeres foi o affordance (acessibilidade programada) previsto pelos arquitetos dos brinquedos, no sentido de haver uma previsão, uma estratégia de usos de cada estação do equipamento. Assim, poderíamos traçar também os limites estruturais na circunscrição das relações proxêmicas e do brincar arriscado à dimensão cultural.

Embora as táticas sejam formas de resistência do sujeito ordinário do cotidiano, Certeau (1995) adverte que o capitalismo já não se sente ameaçado por estes refluxos de criatividade nas atividades de lazer. Para o autor, toda forma de expressão cultural precisa ser pesquisada ao menos a partir de três pontos: “1. fazer algo com uma coisa; 2. fazer algo com alguém; 3. mudar a realidade cotidiana” (Certeau, 1995, p. 247). Ora, se verificamos pessoas fazendo algo com os brinquedos no equipamento das praças ou do complexo Meu Campinho e elas, em proxemia, fazem algo umas com as outras, a nova lacuna parece ser em que medida o cotidiano e o estilo de vida são colocados em desconstrução.

Certeau (1995) defende que o poder já sabe tirar proveito do lazer como um setor de consumo. Portanto, as expressões culturais teriam um limitador em termos de reinvenção do cotidiano, enquanto os usuários se mantêm como multidão anônima. Assumir-se na qualidade de grupo e querer existir conforme tal, para o autor, é a unidade política necessária para haver um sujeito novo na história, mas isto implica colocar a existência de sua resistência em risco.

Sendo assim, estas formas de brincar arriscado, ainda que potentes, estão sujeitas a serem capturadas. A própria pedagogia da aventura, em uma perspectiva neoliberal de exaltação do empreendedorismo em saber correr riscos, pode ser uma estratégia de reprodução das estruturas tradicionais. Logo, qualquer leitura positivada sobre a ocupação popular dos equipamentos de lazer deve ser acompanhada da previsão de uma contraofensiva dos poderes estabelecidos: “cada reação cultural suscetível de provocar um deslocamento das posições adquiridas parece produzir seu antídoto” (Certeau, 1995, p. 217).

Não obstante esta advertência fundamental para aprimorar a análise da realidade, a compreensão ecológica destas configurações relacionais fornece pistas, a nosso juízo, para refinar a própria mediação pedagógica da Educação Física na contribuição para essas biografias de movimento. Retomando os pressupostos sobre o valor educativo do brincar arriscado (Sandseter et al., 2021), entendemos que a apropriação da cidade pela população para o brincar arriscado também possui um valor político. Estar em atividade no lugar é condição para que as pessoas saiam de configurações proxêmicas distantes para próximas. Além disto, existir como uma unidade social é ainda uma opção, uma tarefa e um desafio.

Neste aspecto, compartilhamos com Freire (2022) a inquietação a respeito das limitações estruturais e ideológicas concernentes à vivência das práticas corporais de aventura. O autor denuncia que o ambiente escolar blinda os alunos das incertezas e dos riscos da vida presentes na rua, o que paradoxalmente é um perigo para as crianças, uma vez que não as qualifica para a experiência que há fora da segurança da escola. Por isto, entendemos que o brincar arriscado é um direito da criança desde a Educação Física curricular até se ampliar como uma conquista de toda a família nos equipamentos públicos de lazer apropriados.

Por fim, podemos retomar o impasse do limite das atividades de aventura, seja na escola ou na rua, para constituir um cenário cultural com maior protagonismo compartilhado. O que há de potência ou de revolucionário na aventura parece passível de ser incorporado ao affordance do próprio brinquedo, reforçando relações proxêmicas cada vez mais pobres. Isto configura um problema, pois, segundo Lindón (2011) suspeita, na contemporaneidade, o quadro tende à diminuição da proxemia e à aceleração dos ritmos espaço-temporais.

Em (hipó)tese, estaríamos diante de aproximações face a face cada vez mais rápidas e curtas, seguidas de parcelas longas de isolamento físico presencial de interações com outras motricidades (Lindón, 2011). Por outro lado, em consonância com os achados do estudo, qualidade de interações sociais foi um dos ganhos proporcionados pelas brincadeiras arriscadas ao ar livre, em consonância com os achados em outras realidades (Brussoni et al., 2015). Assim, em nossa análise, as táticas proxêmicas ora percebidas no brincar arriscado seriam evidências em contrário e, portanto, precisam ser valorizadas como uma arte de fazer contra-hegemônica.

Aqui, frente aos dados da empiria, existe, portanto, diversidade de interface proxêmica neste atrativo no lazer. Segundo, há uma população que usufrui destas facilidades urbanísticas. Ao caracterizarmos as configurações concretas (duplas ou grupos de crianças, adultos masculino e/ou feminino), corroboramos as artes de fazer como o consumo produtivo, elaboradas por Certeau (2014) para situar as apropriações singulares em relação a um espaço estandardizado.

Por fim, é necessário reconhecer que é limitador ao brincar arriscado pensar em uma aventura para a infância uma vez que a arquitetura reproduz a desigualdade social, desfavorecendo a chance de protagonismo infantil nos equipamentos situados na periferia, com menores condições objetivas. Portanto, diante destes aspectos, uma das respostas via Educação seria ampliar o entendimento destas infâncias e pensar a aventura a partir das crianças e não apenas para elas.

Conclusões


Os espaços de aventura no Meu Campinho e nas praças não são exclusivamente adotados para o brincar arriscado, havendo diferentes usos e conexões. Destaca-se o pega-pega e as conversas, reiterando, pois, a predominância de brincadeiras tradicionais sobre as não usuais. As formas de brincar arriscado em cada brinquedo são de exploração, enquanto nos espaços intermitentes (vazios) entre os brinquedos predomina as brincadeiras lúdico-agressivas.

As relações proxêmicas são mais representativas entre crianças da mesma idade, típicas da cultura de pares, ainda ocorrendo mediações quando a criança mais velha intervém para incluir a menor. O protagonismo compartilhado é menos comum nas interações intergeracionais e se reitera como a presença da figura adulta de afeto impacta positivamente nas condutas de brincar arriscado, especialmente nos brinquedos que balançam ou são altos.

Por isto, a proxêmica íntima é vista mais frequentemente no início da interação adulto/criança, enquanto a proxêmica criança/criança se inicia em distância pública, evoluindo para social na primeira infância e íntima em crianças mais velhas. Como a proxemia vincula-se à linguagem, as descobertas nos sugerem que as culturas infantis se valem de muitos marcadores interacionais com função fática, atuando para chamar atenção do interlocutor. A propósito, quando afirmamos que é necessário dar voz às crianças, neste caso nada lhes é dado. Elas produzem mesmo quando consomem: crianças sabem fazer porque fazem um saber.

Os equipamentos não se limitaram a um modelo único com os mesmos brinquedos e, por isto, é esperado que a relação da população também se altere com este dinamismo. Portanto, não apenas muda a operação visível da lógica interna, mas também o significado (a ser melhor desvendado). Todavia, o estudo destacou mais os usos do que os significados dados pelos grupos, o que já nos permite avançar para desdobramentos em investigações futuras com o propósito de entrevistar crianças e adultos a fim de confrontar seus fazeres com as representações sociais.

A descrição destas manifestações reiteradas, ainda que recortadas por sexo, idade ou estrato social, aproxima-se da discussão que a Sociologia da Infância faz em relação ao campo do lazer/animação, de como se materializa o protagonismo infantil. É importante considerar o que o cotidiano do brincar nos mostra, uma vez que não há uma, mas muitas infâncias. Logo, crianças não sabem apenas coisas diferentes dos adultos; entre elas também encontramos distintas artes de saber e fazer em relações proxêmicas.

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Sobre os autores


Giuliano Gomes de Assis Pimentel


Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR, Brasil

https://orcid.org/0000-0003-1242-9296


Doutor em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (2006). Professor Associado da Universidade Estadual de Maringá. Líder do Grupo de Estudos do Lazer. E-mail: ggapimentel@uem.br


André da Silva Mello


Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil

https://orcid.org/0000-0003-3093-4149


Doutor em Educação Física pela Universidade Gama Filho (2007). Professor Associado III do Centro de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Espírito Santo. Líder do Núcleo de Aprendizagens com as Infâncias e seus Fazeres. E-mail: andremellovix@gmail.com


Contribuição na elaboração do texto: autor 1 – coleta de dados, escrita do texto; autor 2 – orientador do estudo, análise e interpretação dos dados, revisão e consolidação do manuscrito.


Resumen


La proxémica investiga la relación entre el cuerpo y el espacio circundante. Lo adoptamos aquí como un modelo teórico y metodológico que implica observar participativamente territorios de juegos de riesgo. Para ello, llevamos a cabo una investigación de campo en parques infantiles. Identificamos que los niños se organizan y desarrollan relacionalmente tácticas de proximidad corporal que reflejan sus intereses en la relación intergeneracional o la relación entre pares. Ante eso, encontramos en la proxémica infantil una posibilidad privilegiada de escuchar y develar la participación de los niños, enfatizando cómo organizan la relación con el otro y el territorio del juego.


Palabras clave: Niños. Juego. Instalaciones para la Educación Física.



Abstract


Proxemics studies the relationship between bodies and the space around them. We adopted it as a theoretical-methodological research model for participant observation in territories of risky play. To this end, we conducted a field study in children's playgrounds. Based on the mobilized reference, we found that children self-organize and build, in a relational way, patterns of bodily approximation that reflect their interests in intergenerational or peer relationships. Because of this, we found in children's proxemics a privileged way of listening to and unveiling children's participation, highlighting how they organize their relationship with others and with the territory of play.


Keywords: Child. Play. Physical Education Facilities.




Linhas Críticas | Periódico científico da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, BrasilISSN eletrônico: 1981-0431 | ISSN: 1516-4896

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Referência completa (APA): Pimentel, G. G. de A., & Mello, A. da S. (2023). Proxêmica das experiências infantis do brincar arriscado em equipamento específico de lazer. Linhas Críticas, 29, e50794. https://doi.org/10.26512/lc29202350794

Referência completa (ABNT): PIMENTEL, G. G. de A.; MELLO, A. da S. Proxêmica das experiências infantis do brincar arriscado em equipamento específico de lazer. Linhas Críticas, 29, e50794, 2023. DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202350794

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1Para Corsaro (2009), a entrada reativa diz respeito a um comportamento menos expansivo e invasivo por parte dos adultos que, ao adentrarem nos espaços infantis, esperam que as crianças reajam à sua presença e estabeleçam interações com ele.

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