Dossiê | Escuta e participação nas pesquisas com (sobre) crianças
Escuta e participação em uma pesquisa etnográfica com crianças na Educação Infantil
Escucha y participación en una investigación etnográfica con niños en la Educación Infantil
Listening and participation in ethnographic research with children in Early Childhood Education
Destaques
O respeito às temporalidades das crianças é imprescindível para que elas possam vivenciar processos participativos.
O exercício da cidadania infantil demanda a escuta e a participação na vida cotidiana.
Escuta e participação na pesquisa com crianças demanda que elas exerçam escolha e decisão.
Resumo
O objetivo do artigo é discutir a escuta e a participação das crianças em uma pesquisa etnográfica sobre os sentidos do tempo na Educação Infantil. A pesquisa foi desenvolvida com 23 crianças da pré-escola de uma instituição pública. As estratégias metodológicas foram observação, diário de campo, fotografia, fotoelicitação e rodas de conversa. O percurso da pesquisa é discutido através de unidades analíticas que tematizam a escuta e a participação das crianças. A partir da pesquisa, infere-se que a escuta e participação das crianças: promovem o exercício da cidadania; demandam estratégias metodológicas participativas; possibilitam com que elas tenham poder de decisão durante a investigação.
Palavras-chave
Educação Infantil. Pesquisa com crianças. Tempo. Escuta. Participação.
Recebido: 11.09.2023
Aceito: 10.11.2023
Publicado: 29.11.2023
DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202350765
Considerações iniciais
Nas últimas décadas temos vivenciado uma aceleração do ritmo da vida (Rosa, 2019), cujos efeitos têm reverberado em todos os âmbitos da esfera social. Os efeitos desta aceleração também podem ser percebidos na fragilidade e efemeridade das relações sociais estabelecidas pelas pessoas no contexto do trabalho, nas relações de amizade, nos relacionamentos íntimos, ou ainda nos processos educacionais institucionalizados – cujo imperativo tem sido aprender mais rápido e em menos tempo. Conforme Rosa (2019), tal aceleração tem incidido igualmente na “[...] diminuição da duração das refeições, do sono, ou do tempo médio de comunicação na família [...]” (p. 155), entre outros aspectos relacionados à vida das pessoas. A aceleração do ritmo de vida é vista como uma marca do presente e a redução do tempo para a realização das atividades – sejam estas do cotidiano, dos estudos, das tarefas domésticas ou da vida profissional – é “[...] alcançada, por um lado, [pelo] aumento da velocidade de ação [...], e, por outro, pela diminuição de pausas e intervalos entre as atividades [...]” (Rosa, 2019, p. 156).
Em relação aos processos educacionais, é possível afirmar que a aceleração do ritmo de vida também tem reverberado na Educação Infantil. A obrigatoriedade da Educação Infantil aos 4 anos de idade, o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, assim como a difusão de livros didáticos e sistemas de ensino nas redes municipais de Educação no território nacional – após a homologação da Base Nacional Comum Curricular de Educação Infantil (Brasil, 2017) – têm contribuído para um processo de aceleração da vida escolar das crianças, especialmente das que frequentam a pré-escola. A partir de uma perspectiva educativa propedêutica, o tempo na Educação Infantil tem sido visto como um bem de consumo que não pode ser desperdiçado.
Em nome da aceleração do ritmo de vida, as temporalidades (Oliveira, 2014) das crianças, as quais muitas pessoas acreditam estar salvaguardadas nas instituições de Educação Infantil, têm sido geralmente desconsideradas. Nesta direção, “a experiência [que as crianças têm] no e com o tempo” (Oliveira, 2014, p. 215), em especial através das interações e da brincadeira, vem sendo ocupada por uma intensa e acelerada agenda de atividades que frequentemente não dialogam com os princípios éticos, políticos e estéticos (Brasil, 2010) que pautam o trabalho pedagógico na Educação Infantil. Corroborando o argumento, Clark (2023, p. 14) afirma que “[...] discutir a concepção de tempo na Educação Infantil impacta nos modos como vemos as crianças, a infância e o papel docente”. Ora, sempre é bom lembrar que “[...] pensar sobre o tempo é refletir sobre o propósito da educação” (Clark, 2023, p. 14).
Mobilizado pelas inquietações sobre os efeitos da aceleração do ritmo de vida (Rosa, 2019) na Educação Infantil, o artigo é decorrente de uma pesquisa etnográfica com crianças que buscou entender os sentidos que as crianças atribuem ao tempo institucional a partir de suas vivências no cotidiano na pré-escola.
Considerando o exposto, informo que o artigo está organizado em seis seções. A partir desta seção introdutória, na segunda seção é apresentada a metodologia da pesquisa; na terceira seção são discutidos os conceitos de escuta e participação; na quarta e quinta seções, respectivamente, são apresentadas as análises; e, por fim, na última seção são feitas as considerações finais do artigo.
Metodologia da pesquisa
Metodologicamente, a pesquisa etnográfica foi desenvolvida durante o período de um ano letivo, com um grupo de 23 crianças de 5 anos de idade – sendo 14 meninas e 9 meninos – que frequentava a pré-escola em uma instituição pública municipal localizada na periferia urbana de uma cidade do interior do Estado do Rio Grande do Sul. A partir da leitura da ficha de matrícula das crianças foi possível identificar que 5 eram declaradas negras, 2 pardas e 10 brancas pelas suas famílias. As estratégias de geração dos dados da pesquisa foram a observação, o registro em diário de campo, o registro fotográfico, a foto-elicitação (como disparadora de discussões com as crianças) e as rodas de conversa. O trabalho de campo foi desenvolvido diariamente, em turnos alternados, perfazendo uma carga horária de 20h por semana, durante o período de 11 meses.
Em relação aos aspectos éticos da pesquisa, foram seguidas todas as orientações constantes na Resolução n.º 510, de 7 de abril de 2016 (Ministério da Saúde, 2016), que orienta as investigações com seres humanos. A partir da apresentação do projeto e aceite das docentes e gestoras da instituição de Educação Infantil para a realização da pesquisa, mediante a assinatura do Termo de Anuência Institucional, o projeto foi submetido, via Plataforma Brasil, ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP). Após a aprovação do CEP1, o projeto de pesquisa foi apresentado para as docentes e famílias das crianças, ocasião em que foi obtida sua autorização com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Na sequência, a pesquisa foi apresentada para o grupo de crianças a partir de uma História em Quadrinhos (HQ) em que eram narradas visualmente todas as estratégias de geração dos dados a serem desenvolvidas com o grupo. A HQ foi assinada pelas crianças – mediante desenho e escrita do nome – na qualidade de Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE).
Além do atendimento das normas legais para a realização da pesquisa, a discussão ética se fez presente em toda a investigação, tendo em vista que a escuta (Santos, 2022) e a participação (Bordenave, 1983; James & James, 2012) das crianças se constituíram como mobilizadoras das estratégias de geração dos dados. Em tal direção, os conceitos de escuta e a participação das crianças no contexto da pesquisa foram vistos de modo interdependente e relacional. A escuta foi tida conceitualmente como um ato político e pedagógico (Santos, 2022) que tem implicações na tomada de decisões do pesquisador com base nas informações que são compartilhadas pelas crianças. Já a participação foi concebida como a possibilidade de as crianças fazerem parte, tomarem parte e terem parte (Bordenave, 1983) no processo investigativo. Nesta acepção, a participação envolveu a oportunidade de as crianças contribuírem “[...] ativamente para uma situação, um evento, um processo ou um resultado [...]” (James & James, 2012, p. 86) no decorrer da pesquisa.
Com a escuta e a participação das crianças figurando como princípios do fazer investigativo, foram realizadas as seguintes ações: 1) o pesquisador fez uma entrada reativa em campo; 2) as crianças participaram da pesquisa em grupos de seis componentes; 3) as crianças foram consultadas durante toda a pesquisa sobre se queriam ou não aderir às propostas; 4) as sugestões das crianças em relação às estratégias metodológicas da pesquisa foram incorporadas à investigação; 5) as propostas de geração de dados envolveram a produção de desenhos e de imagens fotográficas; 6) a partir da escuta das demandas das crianças sobre a rotina na pré-escola houve a mediação do pesquisador entre as crianças e a professora para garantir um tempo diário mais estendido para a brincadeira; 7) houve a devolutiva da pesquisa para as crianças, a professora, as famílias e a equipe gestora.
Os dados gerados na pesquisa foram discutidos partindo de duas unidades analíticas, assim denominadas: 1) Estar com as crianças em campo e a escuta como processo de pesquisa; 2) Entre o fazer parte e o tomar parte: as crianças e a participação na pesquisa. Os resultados da pesquisa apontaram que há uma preocupação das crianças com a falta de tempo para brincar, decorrente da aceleração da vida cotidiana institucional e da intensa demanda de atividades de cunho preparatório para a alfabetização. Ao escutar as crianças, também foi possível perceber que a gestão do tempo é realizada por elas de modo reiterativo (Sanches, 2019), uma vez que os participantes da pesquisa, ao serem escutados, apontaram, em inúmeras situações, a necessidade de mais tempo para brincar e ainda de escolher e propor brincadeiras nos espaços externos da escola. Isto porque “para brincar e brincar bem são necessários espaços e tempos adequados [...]” (Giovannini, 2022, p. 168).
Escuta e participação: a desaceleração do tempo na pesquisa com crianças
Episódio 1: Final do expediente na padaria
As crianças estão brincando na caixa de areia da praça, fazendo bolos, pizzas e pães. A professora anuncia:
Professora: — O tempo de pátio terminou.
Ao finalizar o anúncio, a docente é interpelada por Bella.
Bella2: — Professora, nós estamos brincando de padaria. Hoje a gente tem muita encomenda de bolo.
Ana: — É verdade!!!
Caio: — Mas a gente ainda está brincando.
Professora: — Hora de fechar a padaria, pois já estamos encerrando o tempo de brincadeira no pátio.
Sara: — Não vai dar tempo de terminar o bolo.
Bella: — Por que nós não podemos ficar brincando de padaria mais tempo?
Professora: — Porque é hora de entrar para a sala. Vocês ainda não terminaram de fazer todas as atividades no bloco.
Bella escuta atentamente a professora.
Professora: — Ano que vem, no 1º ano, não vai ter pátio toda hora.
Bella: — E no 1º ano a gente não vai poder brincar na praça?
Professora: — Poderão brincar, mas não haverá horário para ir à praça todos os dias. É um tempo mais curto. Ano que vem você vai entender.
Caio: — Sem brincadeira no pátio não tem graça.
Bella: — Professora, a gente pode ficar brincando só mais um pouquinho?
Professora: — O tempo de pátio já acabou, Bella.
Bella olha para a professora, coloca as mãos na cintura e pergunta:
Bella: — Por que o tempo já acabou?
Professora: — Eu já expliquei. Estamos perdendo tempo aqui na rua. Nós temos atividades bem legais para fazermos na sala.
Théo: — Atividade de folha não é legal.
Ana: — Não é mesmo.
Professora: — Tempo esgotado. Hora de fechar a padaria.
Bella: — Que chatice! Atividade, atividade e atividade.
Professora: — Todos para a sala. Assunto encerrado. (Diário de Campo do Pesquisador – observação)
No episódio destaca-se a relação assimétrica de poder estabelecida entre adultos e crianças no cotidiano da Educação Infantil, assim como a necessidade de que o tempo institucional – que pauta a organização do cotidiano – seja repensado a partir das demandas das crianças e do respeito às suas temporalidades. Em tal direção, o episódio transcrito também elucida que, embora as crianças tenham legalmente os seus direitos de escuta e participação reconhecidos na Convenção dos Direitos da Criança (CDC) (Organização das Nações Unidas [ONU], 1989), ainda há um longo percurso a ser trilhado para que as intenções previstas no plano legal se tornem efetivas no âmbito das práticas institucionais. Corroborando o argumento, Morales e Magistris (2020, p. 46) afirmam que “[...] nós adultos devemos refletir sobre as nossas práticas e manter a vigilância constante sobre o nosso poder, em relação aos nossos privilégios, a fim de saber acompanhar, colaborar e a coadjuvar com as crianças em suas lutas [...]”. Para tanto, institucionalmente, os adultos precisam promover espaços de escuta e participação das crianças com base em relações sociais democráticas, nas quais o adultocentrismo seja tensionado a partir da partilha de poder.
Considero oportuno ressaltar que quanto ao reconhecimento das crianças como atores sociais de pleno direito, a CDC (ONU, 1989), apesar das críticas ao seu caráter colonialista e protecionista (Aitken, 2019, p. 95), é indiscutivelmente considerada um marco histórico que “[...] fornece uma plataforma na qual legisladores e ativistas podem debater para melhorar os mundos das crianças”. Isto porque a CDC (ONU, 1989) legitimou o direito de as crianças serem escutadas, expressarem os seus pontos de vista, reivindicarem suas demandas, assim como participarem da discussão dos assuntos que lhes dizem respeito, tendo como efeito uma mudança paradigmática nos modos de conceber a infância e a cidadania das crianças.
Morales e Magistris (2020) apontam que durante todo o decorrer do século XX, a infância foi entendida a partir do paradigma da situação irregular, segundo o qual as crianças, pelo fato de serem vistas como “[...] risco, perigo material ou moral, deveriam ser salvas pelo Estado” (p. 33). Todavia, com a homologação da CDC (ONU, 1989), para os referidos autores, houve uma mudança de paradigma, isto é, “[...] a passagem do paradigma da situação irregular para o da proteção integral” (Morales & Magistris, 2020, p. 34), o qual, de certo modo, tem inviabilizado a participação política das crianças. Conforme os autores, tal mudança de paradigma está pautada “[...] em torno dos três grandes grupos de direitos: proteção, provisão e participação” (Morales & Magistris, 2020, p. 34), que constituem o texto da CDC (ONU, 1989). No âmbito do conjunto de direitos, os de provisão e participação, embora sejam “[...] quantitativamente mais escassos [no que se refere ao número de artigos destinados a eles na CDC], são qualitativamente mais significativos” (Morales & Magistris, 2020, p. 34), pois elucidam a importância de que as crianças sejam vistas como atores sociais. Por outro lado, Alderson (2008) critica o caráter instrumental dado aos direitos de participação das crianças, já que são reduzidos a “duas áreas principais: ser consultado e tomar decisões”.
Embora reconheça que a participação das crianças também se efetiva a partir da consulta e da tomada de decisões, concordo com Alderson (2008, p. 79) quando argumenta que não devemos esquecer que “[...] as crianças participam de inúmeras atividades e relacionamentos, em pares ou em grupos, brincando, atuando, aprendendo, cozinhando, cuidando de outras pessoas ou animais”, entre outras ações. Por esta razão, conforme lembram Morales e Magistris (2020), é preciso indagar: como fazer para que a participação das crianças não seja adicional, mas parte integral das relações entre adultos e crianças? Entendo que ultrapassar o caráter instrumental da participação das crianças demanda discutir a noção de cidadania na infância, a qual geralmente tem sido entendida a partir de uma perspectiva de preparação para o seu exercício na idade adulta. Contrariando tal perspectiva, é importante ressaltar que “ver as crianças como detentoras de direitos está relacionado a vê-las como cidadãs ativas” (Clark, 2015, p. 22).
Na esteira desta discussão, Liebel e Gaitán (2011) propõem que a cidadania na infância não seja pensada com base em regulamentos normativos, mas através da prática da vida cotidiana. Os referidos autores defendem que a cidadania não seja “[...] vista como um status que se outorga às crianças, mas como um fato que nasce da prática de vida das crianças e que coloca em avaliação a vantagem de poder dos adultos” (Liebel & Gaitán, 2011, posição 2301). A proposta dos autores é que seja pensada uma cidadania desde baixo, “que se baseia na prática e nas experiências das crianças e que leva em consideração de modo especial as desvantagens sociais e as vulnerabilidades de direitos” (Liebel & Gaitán, 2011, posição 2321). Deste modo, ratifica-se o argumento de que “[...] as crianças são, sim, agentes políticos nos espaços dos quais participam, mas [que] suas batalhas são distintas das dos adultos, [já] que ocorrem dentro de suas geografias políticas” (Silva & Gomes, 2023, p. 5).
Depreende-se, assim, que o exercício da cidadania infantil demanda a escuta e a participação das crianças no âmbito da vida cotidiana. Em consonância com esta lógica, a escuta das crianças pode ser entendida como: a) “ [...] um processo ativo de comunicação que envolve ouvir, interpretar e construir significados [...]” (Clark, 2015, p. 23); b) “um direito da criança, assegurado por documentos nacionais e internacionais que situam a criança como sujeito de direitos (e não objeto de direitos) [...]” (Ribeiro, 2022, p. 69); c) “um ato político porque envolve [...] decisões da parte de quem escuta uma vez que faz escolhas em relação a quem vai escutar, quando vai escutar, onde vai escutar [...]” (Santos, 2022, p. 75); d) um “ato pedagógico [que] funda-se quando a experiência de falar e ser escutado representa um gesto de acolhimento do ser humano que o escutador tem diante de si [...]” (Santos, 2022, p. 75). Com base nestes pressupostos, a escuta pode operar como deflagradora da participação das crianças.
Infere-se, assim, que a escuta das crianças contribui com sua identificação e pertencimento ao grupo, além de funcionar na mobilização de iniciativas em que elas se sintam impelidas a tomar parte das decisões (Bordenave, 1983) que lhes dizem respeito. Ressalto que a participação, além de ser definida como “[...] ‘ser parte de’, receber status de membro de uma comunidade, também pode ser entendida como um sentimento de estar juntos, de conectividade, de compartilhar interesses em comum, direitos e responsabilidades” (Liebel & Gaitán, 2011, posição 2047).
Em tal perspectiva, a escuta e a participação das crianças na pesquisa foco de discussão do presente artigo exigem que elas tenham tempo para viver a infância. A este respeito, Clark (2023) defende que as crianças precisam de um tempo estendido, e não fragmentado, em suas vidas para terem oportunidade de escutar, manifestar suas demandas, fazer escolhas, conviver, estabelecer relações com os seus pares, escolher fazer parte de um grupo, reivindicar, entre outras ações que poderiam ser elencadas.
Dito de outro modo, é imprescindível que sejam respeitadas as temporalidades das crianças para que elas possam viver processos participativos, mediante o exercício de uma cidadania ativa nas instituições e nas comunidades das quais fazem parte. Clark (2023) destaca que a promoção de um tempo estendido às crianças exige estar com (being with) as crianças, a partir do estabelecimento de relações densas nas quais elas se sintam acolhidas e tenham os seus ritmos respeitados. A autora também aponta que é preciso que os adultos envolvidos com as crianças, mediante uma escuta sensível e ativa das demandas de seu grupo, promovam oportunidades para que elas possam sair da rota (going off track). Por fim, Clark (2023) ressalta a necessidade de que haja um resgate da brincadeira para que as crianças possam explorar o tempo com profundidade. A autora utiliza metaforicamente a expressão mergulhar profundo (diving deep) ao se referir à necessidade de que as crianças tenham mais tempo para estabelecer relações sociais mais densas através da brincadeira.
No caso da pesquisa com crianças, as considerações abordadas por Clark (2023) são de extrema importância, pois possibilitam que se reflita sobre o modo muitas vezes acelerado com o qual são colocadas em funcionamento metodologias (adjetivadas como participativas) e estratégias de geração de dados nas investigações na Educação Infantil, desconsiderando o respeito às temporalidades das crianças. Assim, concordo com Clark (2015) quando aponta que as metodologias de pesquisa participativas com crianças não são inerentemente éticas, já que elas dependem do questionamento do adultocentrismo do pesquisador, da horizontalidade das relações estabelecidas com os participantes e sobretudo da escuta e da participação das crianças envolvidas a partir de um processo de desaceleração do tempo. Para tanto, tal como Clark (2015, p. 20), entendo que as crianças pequenas, nas investigações, devem ser concebidas: “1) como especialistas de suas próprias vidas; 2) como comunicadoras hábeis; 3) como detentoras de direitos; 4) como criadoras de significados”. E é precisamente neste sentido que nas próximas duas seções analíticas serão compartilhados e discutidos episódios referentes à geração dos dados da pesquisa realizada com as crianças, no intuito de evidenciar a escuta e a participação como princípios mobilizadores da prática investigativa.
Estar com as crianças em campo e a escuta como processo de pesquisa
A escuta durante a investigação etnográfica demanda que o pesquisador esteja com as crianças, mediante a desaceleração do tempo institucional e a promoção de espaços de encontro que possibilitem que os pontos de vista delas sejam compartilhados, sustentados e respeitados. Corroborando o argumento, Ribeiro (2022, p. 76) afirma que “a escuta é por excelência conexão”. A autora advoga que “para escutar [as crianças] precisamos desenvolver um estado de presença” (Ribeiro, 2022, p. 76). As palavras-chave conexão e estado de presença, enunciadas pela referida autora ao tematizar a escuta das crianças, aproximam-se do conceito de being with – estar com – defendido por Clark (2023). Conforme Clark (2023, p. 39), estar com as crianças “está conceitualmente relacionado com a busca pelo ritmo da criança, mas também com a atenção ao ritmo do grupo, dos materiais e das ideias” que são compartilhadas. Deste modo, a escuta enquanto ato político e pedagógico (Santos, 2022) na pesquisa com crianças é vista como “[...] um processo ativo, que envolve não apenas ouvir, mas também interpretar, construir significados e responder” (Clark, 2015, p. 26) a partir do tensionamento da posição adultocêntrica que geralmente ocupamos como adultos.
Estar com as crianças para escutá-las sobre os modos como atribuem sentido ao tempo escolar com base na rotina institucional demandou a promoção de um tempo estendido (Clark, 2023) de encontro e de diálogo para que fosse possível “[...] cultivar a cultura do pensar e do trabalhar junto” (Clark, 2015, p. 40). A cada encontro com o grupo de crianças, nas rodas de conversa para a proposição de desenhos, registros fotográficos, ou ainda para o debate do material visual produzido, percebia que as crianças estavam vivenciando com cada vez mais intensidade o convívio com os colegas e com o pesquisador. Para ilustração, apresento a seguir um episódio referente ao momento em que compartilhei com as crianças a proposta de registro de imagens com câmeras fotográficas digitais das atividades da jornada cotidiana de que eles mais gostavam de participar. A tônica do diálogo a ser transcrito possibilita perceber como a escuta opera para “[...] que cada criança sinta que a sua experiência [...] [tem] valor” (Agostinho, 2010, p. 109). Além disto, como poderá ser depreendido com a leitura, encontra-se presente no diálogo o reconhecimento das crianças enquanto atores sociais participantes da investigação.
Episódio 2: Então agora nós somos pesquisadores!
Pesquisador: — Vocês lembram que nós usamos as máquinas fotográficas?
Bento: — Eu lembro. A gente brincou de tirar foto das nossas caretas.
Mel: — E de fazer pose para as fotos.
Ana: — Pose de modelo.
Pesquisador: — Será que vocês já sabem usar as máquinas fotográficas?
Bia: — Claro que sim. É bem fácil. É só apertar o botão.
Bento: — Não pode esquecer de ligar a máquina.
Ana: —Também não pode colocar o dedo na frente da máquina.
Mel: — E tem que mirar para o alvo.
Pesquisador: — Então, a novidade hoje é que cada um de vocês irá receber uma máquina fotográfica.
Pedro: — Igual a tua máquina professor?
João: — Claro que não. A máquina do professor é grande. Tu esqueceu, Pedro, que é máquina pequena. Nós já brincamos com elas.
Mel: — Então é uma máquina para cada um? É isso?
Pesquisador: — Isso mesmo, cada um terá a sua máquina fotográfica. A primeira vez que nós usamos as máquinas eu trouxe somente duas. Vocês lembram?
Luca: — Lembro sim.
Bento: — E a gente vai poder levar para casa?
Pesquisador: — Inicialmente vocês irão usar as máquinas somente na escola.
Mostro um baú de madeira para as crianças no qual estão as máquinas e prossigo com a explicação.
Pesquisador: — No final do dia, ou quando vocês acharem necessário, poderão guardar a máquina nesse baú.
Mel abre o baú e observa as máquinas.
Mel: — Tô vendo, as máquinas têm cordinha para pendurar no pescoço e até nome.
Pesquisador: — Isso mesmo.
Bia: — E o que nós vamos fazer com as máquinas?
Pesquisador: — A máquina é para vocês fotografarem as atividades que mais gostam de realizar na escola.
Ana: — E tu vai imprimir as nossas fotos?
Pesquisador: — Sim.
Mel: — E vai colocar na parede?
Pesquisador: — Sim.
Bia: — E só mais uma perguntinha. A gente vai poder falar das fotos?
Pesquisador: — Sim. Eu vou imprimir as fotos de vocês, bem grandes e conversaremos sobre elas na roda.
João: — Legal!
Pedro: — Então, agora nós somos pesquisadores!
Bia: — Pesquisadores mesmo! (Diário de Campo do Pesquisador – roda de conversa)
O diálogo desenvolvido entre o pesquisador e as crianças, assim como a escuta ativa presente na trama interativa possibilitam destacar três aspectos relacionais. O primeiro refere-se ao fato de que “[...] quando escutamos uma criança, não estamos fazendo uma concessão e sim fazendo valer seu direito” (Ribeiro, 2022, p. 69). Isto implica dizer que a escuta atenta do pesquisador mobiliza a participação do grupo envolvido no diálogo e denota o reconhecimento de que “a oportunidade de participar daquilo que o adulto faz transmite à criança uma mensagem de estima das próprias capacidades” (Giovannini, 2022, p. 152). Neste sentido, também se destacam as câmeras fotográficas digitais como materialidade desencadeadora do engajamento das crianças na partilha de seus pontos de vista. A máquina, de certo modo, conecta as crianças ao fazer investigativo do adulto, já que, durante o decorrer do processo de entrada em campo – aproximadamente dois meses – estive munido de uma câmera fotográfica profissional, realizando registros do cotidiano institucional e compartilhando as fotos no mural da sala-referência da turma participante da pesquisa. Por fim, o terceiro aspecto em destaque é o reconhecimento que as crianças expressam de que são também pesquisadoras, ou seja, de que elas fazem parte de um processo investigativo participativo, no qual escutar e ser escutado é constituinte da relação de confiança e reciprocidade estabelecida no grupo.
Conforme defende Clark (2023, p. 42), estar com as crianças possibilita a promoção de “tempo para escutar o inesperado”, como poderá ser acompanhado no próximo episódio a ser compartilhado. No entanto, é necessário que o pesquisador, a partir da desaceleração do tempo institucional (Clark, 2023), mobilize “[...] atitudes como sensibilidade, astúcia e perspicácia para capturar as diferentes formas como as crianças expressam seus pensamentos e sentimentos” (Agostinho, 2010, p. 110) mediante a discussão que se encontra em pauta no grupo. Deste modo, o foco analítico do próximo episódio é referente a como as crianças autonomamente se dispõem a orientar os colegas sobre a proposta que será desenvolvida.
Episódio 3: Profe, a gente pode ficar mais um pouquinho?
É o final do encontro com o grupo formado por Bento, Mel, Ana, Bia, João e Pedro. A proposta havia sido o desenho de atividades que eles gostariam que fossem incluídas na jornada diária na escola. O grupo foi unânime em apresentar propostas envolvendo dança, pintura, canto e brincadeiras. Ao final do encontro fui surpreendido pela pergunta de Bento:
Bento: — Profe, a gente pode ficar mais um pouquinho?
Imediatamente Mel responde.
Mel: — Claro que não, agora é o outro grupo, Bento.
João intervém.
João: — Mel, o Bento perguntou para o professor. Ele não lhe perguntou.
Pesquisador: — Bento, por que tu gostaria de ficar mais um pouco?
Bento: — Porque hoje a gente pode explicar para eles como vai funcionar a reunião.
Pesquisador: — Entendi. Você quer explicar a proposta que realizamos hoje.
Bento: — É isso mesmo.
Pesquisador: — Mel, Ana, Bia, João e Pedro, vocês também gostariam de ficar e ajudar o Bento a explicar a proposta?
As crianças respondem afirmativamente em uníssono: Siiiiiiiim!
Bia: — A gente pode começar dizendo para eles que hoje é dia de desenhar as coisas que nós gostamos.
Ana: — Coisas que a gente gosta, mas que não tem ou tem bem pouquinho na escola.
Mel: — Brincar tem bem pouquinho.
Bento: — Pintura também não tem quase nada.
Bia: — Cantar e dançar também nunca podemos.
João: — Mas essas são as coisas que nós queremos. Temos que perguntar o que eles querem de atividade.
Pesquisador: — Então, de que modo vocês podem fazer a pergunta, sem anunciar o que vocês indicaram nos desenhos sobre o que vocês gostariam que houvesse na escola?
Mel: — Então é só fazer a roda e perguntar.
João: — Perguntar e dizer que eles têm que desenhar.
Bento: — E entregar as folhas e os canetões.
Ana: — E o giz de cera também.
Pedro: — Ah, mas tem mais uma coisa.
Pesquisador: — O que, Pedro?
Pedro: — Depois que eles desenharem, eles têm que contar o que fizeram.
Mel: — Como a gente fez.
Bia: — No final a gente pode contar o que desenhou.
Pesquisador: — Ótima proposta.
Bento: — Professor, anota no teu caderninho o que a gente conversou.
Professor: — Certo.
Mel: — Eu já vou lá chamar o Théo, a Cris, a Sofia, o Cauê, o Caetano e a Sara.
Ana: — Enquanto isso, a gente organiza o material.
Pesquisador: — Perfeito. Obrigado pela ajuda, pessoal. (Diário de Campo do Pesquisador – roda de conversa)
O episódio em análise ratifica o argumento de Santos (2022, p. 78) de que “escutar a criança é uma decisão intencional e interessada do sujeito adulto”. A escuta do pesquisador em relação à demanda de Bento – em nome do seu grupo – para explicar aos colegas como seria realizada a proposta evidencia novamente a escuta enquanto mobilizadora da participação das crianças. Também é possível perceber no episódio a relação horizontal estabelecida entre o pesquisador e o grupo, assim como o reconhecimento do fato de que “a participação ativa das crianças é socialmente influente, se as crianças estiverem habilitadas a fazerem as suas próprias contribuições autônomas no processo de decisão [...]” (Agostinho, 2010, p. 302) que constitui a vida cotidiana na Educação Infantil.
No diálogo desenvolvido entre as crianças e o pesquisador também se destacam as temporalidades (Oliveira, 2014) das crianças e o fato de que “a escuta não leva à exclusão do papel do adulto, mas [o] provoca a repensar e a revisar esse papel” (Ribeiro, 2022, p. 75). O pedido de Bento demonstra que as crianças necessitam de mais tempo, já que se encontram intensamente envolvidas com a proposta de desenho. Nesta direção, também é válido ressaltar a mediação do pesquisador e a profícua discussão entre as crianças sobre a melhor forma de apresentar a proposta para os colegas. João percebe que é necessário solicitar que os colegas desenhem as atividades que eles mais gostam de realizar na escola, em vez de narrar as demandas que haviam sido expressas graficamente pelo seu grupo. É interessante o modo como as crianças percebem que é preciso promover espaço para que os colegas do grupo seguinte também possam participar das discussões que estão em pauta na investigação.
Por fim, outro aspecto que requer atenção analítica são as reivindicações das crianças pelo direito de ter mais tempo para brincar, pintar, cantar e dançar durante a jornada cotidiana. De fato, a partir da escuta das crianças, é possível depreender a necessidade de “[...] contextos estáveis e previsíveis [de brincadeira na escola], com unidades temporais amplas e não apressadas, coerentes entre si, para dar vida a uma jornada diária fluída e não mecânica” (Giovannini, 2022, p. 152). Durante todo o processo investigativo foi possível perceber a aceleração do ritmo da vida (Rosa, 2019) das crianças e a perspectiva propedêutica de um projeto pedagógico centrado na preparação delas para o primeiro ano do Ensino Fundamental, fato que contraria as orientações presentes nos documentos curriculares nacionais da Educação Infantil. Deste modo, é imprescindível lembrar que brincar é um direito das crianças, além de ser um eixo norteador do currículo da Educação Infantil em nosso país. Prosseguindo as análises, na próxima seção o foco de discussão serão os processos de participação das crianças relativos ao compartilhamento de reivindicações por mais tempo para brincar e de propostas de mudança na rotina institucional da pré-escola.
Entre o fazer parte e o tomar parte: as crianças e a participação na pesquisa
A participação das crianças na pesquisa encontra-se diretamente relacionada à promoção de espaços democráticos de escuta, pois, para tomar parte das decisões demandadas nas discussões mobilizadas pelo pesquisador e pelos pares, as crianças precisam fazer parte do grupo. Isto significa que participar tem relação direta com a constituição de um sentimento de estar junto e de compartilhar interesses em comum (Liebel & Gaitán, 2011). Para tanto, as crianças exigem que as suas temporalidades sejam respeitadas no processo investigativo – para que assim possam escutar, falar, acolher e se afetar pelas discussões em curso no âmbito do grupo. De fato, para que as crianças tenham a possibilidade de sair da rota – going off track – (Clark, 2023) sempre que necessário no processo investigativo, o respeito do pesquisador aos modos como elas experienciam a relação no e com o tempo (Oliveira, 2014) é fundamental. Afinal, as crianças são agentes políticos (Silva & Gomes, 2023), desde que sejam reconhecidas como cidadãs, e não como um projeto de adultos porvir.
Durante a pesquisa desenvolvida, as crianças tiveram a possibilidade de sair da rota (Clark, 2023) investigativa proposta, compartilhando ideias e alternativas para o que estava sendo proposto pelo pesquisador e estabelecendo relações sociais densas com os seus pares. Desta forma, foi possível observar que os participantes da pesquisa reiteradamente compartilharam pontos de vista que oportunizaram ao investigador implementar ações que não estavam previstas no projeto inicial. Em tal direção, no episódio a seguir pode-se notar o modo como as crianças encaminham uma alternativa – que não havia sido prevista pelo pesquisador – para que as suas reivindicações por mais tempo para brincar sejam compartilhadas com a professora-referência da turma.
Episódio 4: As reivindicações das crianças sobre a falta de tempo para brincar
Crianças e pesquisador estão em roda. Compartilho com as crianças que estão participando do encontro – Théo, Cris, Sofia, Cauê, Caetano e Sara – as fotos que eles produziram sobre as propostas que mais gostam de realizar na escola. Distribuo as fotografias em tamanho A3 no centro da roda. Todas a imagens, sem exceção, são de brincadeiras na praça da escola.
Pesquisador: — Hoje eu trouxe impressas as fotos que vocês produziram.
Théo: — Tem foto minha.
Cauê: — Tem de todo mundo.
Caetano: — E são grandonas mesmo.
Théo: — O profe já tinha falado que seriam fotos grandonas.
Pesquisador: — Vocês lembram que eu havia pedido para vocês fotografarem as atividades que mais gostam de realizar na escola?
Cris: — Sim!
Pesquisador: — O que vocês estão observando nas imagens?
Sofia: — Todo mundo brincando na praça.
Caetano: — Brincando de padaria.
Théo: — Também tem gente brincando de polícia e ladrão.
Cris: — Ah, mas tem a Bella e o Luca andando de balanço também.
Sofia: — Na minha foto, o Caetano e a Sofia estão brincando de se esconder.
Théo: — Tem também brincadeira de roda com a professora no pátio.
Cauê: — Nessa foto tem quase todo mundo.
As crianças começam a rir.
Pesquisador: — E por que vocês escolheram tirar essas fotos?
Cauê: — Porque é o que a gente mais gosta de fazer na escola, né?
Sofia: — A gente gosta é de brincar no pátio.
Caetano: — Pena que é pouco tempo.
Sofia: — Pouquinho mesmo.
Théo: — Um pouco de manhã e um pouco de tarde.
Pesquisador: — Ao ir ao pátio, vocês sempre podem brincar na praça?
Sofia: — Nem sempre.
Cris: — Às vezes é para brincar aqui dentro da área coberta.
Caetano: — Mas eu gosto mesmo é da praça.
Cauê: — A padaria fica na praça.
Théo: — É lá que a gente faz o pão.
Sofia: — E brinca de polícia e ladrão.
Cauê: — A professora não gosta dessa brincadeira.
Pesquisador: — Vocês gostariam de ter mais tempo de brincadeira no pátio?
Cris: — Sim!
Caetano: — Mas não dá.
Théo: — A professora já explicou que tem as atividades.
Sofia: — Ano que vem é o primeiro ano.
Cauê: — O que eu queria mesmo era continuar a ser pequeno para poder brincar.
Pesquisador: — Mas você não é pequeno?
Cauê: — Não sou muito pequeno, né?
Théo: — Ele não é pequeno como os bebês, professor.
Sofia: — O meu irmão tem 3 anos e ele pode brincar bastante.
Cris: — Nós não podemos.
Théo: — Ano que vem a gente vai para a escola dos grandes.
Sofia: — Tenho uma ideia.
Pesquisador: — Diga, Sofia.
Sofia: — E se a gente fizer um livro com as fotos das coisas que a gente gosta?
Cauê: — E podemos colocar os desenhos das brincadeiras também?
Sofia: — Sim.
Pesquisador: — Você está propondo que façamos um livro da pesquisa?
Sofia: — Mais ou menos isso. O livro é para gente mostrar para a professora.
Cauê: — Para pedir para brincar mais tempo no pátio.
Théo: — Mas a gente pode chamar todos os grupos.
Sofia: — Isso. Vamos chamar todo mundo.
Cauê: — Pode isso, professor?
Pesquisador: — Sim, é uma ótima proposta.
As crianças ficam empolgadas com o meu aceite. (Diário de Campo do Pesquisador – foto-elicitação)
A leitura do episódio em análise permite destacar os seguintes aspectos: 1) a reivindicação das crianças por mais tempo para brincar no pátio da escola de Educação Infantil; 2) o modo como as crianças atribuem sentido ao tempo das brincadeiras – enquanto atividade que lhes possibilita ter maior poder de decisão; 3) a percepção das crianças sobre a diferenciação etária entre creche e pré-escola a partir da observação da redução do tempo de brincadeira das crianças de 5 anos em relação às de 3 anos; 4) a indicação das crianças para que seja elaborado um livro com fotos e desenhos das atividades preferidas, tendo em vista o pedido de mais tempo para brincar no pátio junto à professora-referência. É evidente, no compartilhamento dos pontos de vista das crianças sobre as suas atividades preferidas na escola, a centralidade que ocupa a brincadeira. Isto porque a brincadeira proporciona que as crianças exerçam a autonomia, produzam narrativas, criem enredos simbólicos, tenham poder de decisão, convivam em grupo e efetivamente participem dos assuntos que lhes dizem respeito, sem a tutela do adulto. Bae (2015, p. 22) “argumenta que a brincadeira é central na educação da infância [pois] permite que haja espaço para a liberdade de expressão das crianças e para estas participarem como agentes ativos”.
Além disto, é importante destacar que a reivindicação pelas brincadeiras de padaria e polícia e ladrão foram recorrentes em todos os grupos que participaram da investigação. A observação sistemática das crianças no pátio durante a entrada em campo possibilitou perceber o empenho da turma em definir papéis, criar enredos e estabelecer rotinas para as referidas brincadeiras. Embora muitas vezes interditadas pelos adultos – professora, monitores, funcionária da limpeza –, a brincadeira de polícia e ladrão foi sempre reinventada pelas crianças. Conforme a declaração da professora-referência da turma, a interdição de tal brincadeira ocorria motivada pela percepção dos adultos de que as crianças estariam reproduzindo o comportamento dos moradores no qual estava situada a escola, secundarizando a narrativa simbólica presente nas ações de todos os envolvidos.
Paralelamente à reinvindicação de mais tempo para brincar no pátio, é importante destacar a sugestão das crianças em relação à criação de um livro das brincadeiras enquanto instrumento mediador da conversa com a professora-referência. De fato, a alternativa apresentada pelo grupo nos permite lembrar que “não basta que as crianças tenham voz; para terem presença elas também precisam ser ouvidas” (Aitken, 2019, p. 116). Ao se sentirem ouvidas e contempladas em suas demandas como parte do grupo, as crianças participantes da pesquisa passam a tomar parte das decisões e a compreender que “[...] a participação tem a ver em primeiro lugar, com a vida cotidiana [...]” (Liebel & Gaitán, 2011, posição 2389). No entanto, a desaceleração do tempo institucional (Clark, 2023) na pesquisa se apresenta como uma condição para que as crianças possam de fato exercer o direito de participação.
No que tange aos sentidos que as crianças atribuem ao tempo, convém elucidar, a partir do episódio, o fato de que elas percebem o tempo tanto em relação à duração das brincadeiras no pátio quanto à diferenciação da rotina da creche e da pré-escola, a qual toma como parâmetro as idades. Quanto às idades, as crianças também percebem que há uma diferenciação entre estar na creche ou na pré-escola. Todavia, para as crianças há um impasse: por que somente as crianças de 0 a 3 anos têm a oportunidade de brincar livremente, sem a regulação dos horários das atividades? Afinal, as atividades de escrita são mais importantes do que a brincadeira? Sob a mediação do pesquisador, tais questões se tornaram presentes no encontro das crianças da turma com a professora-referência para o compartilhamento do livro e a reivindicação de mais tempo para brincar, como poderá ser acompanhado nas considerações finais.
Considerações finais
Episódio 5: E se a escola fosse um lugar só para brincar?
A turma está reunida, crianças em roda. Conforme eu havia combinado com as crianças, reunimo-nos para um encontro especial para a apresentação do livro das brincadeiras para a professora e a solicitação de mais tempo para brincar no pátio. Bella abre o livro no centro da roda e chama a professora:
Bella: — Profe, vem ver o nosso livro.
A professora se aproxima do centro da roda. As crianças ficam empolgadas e logo começam a apresentar as fotos e desenhos das suas brincadeiras preferidas.
Cauê: — Eu fiz essa foto da brincadeira de padaria.
Ana: — Tem também a polícia e ladrão correndo aqui.
Luca: — Tem o Théo e o Caetano andando de balanço.
Mel: — Tem foto da praça.
Ana: — Foto da gente andando de balanço.
João: — O meu desenho é da gente na casinha.
Sara: — A minha foto é no escorregador.
Théo: — Mas tem o meu desenho aqui também, profe.
Professora: — E o que você desenhou?
Théo: — Eu desenhei a gente na padaria.
Cauê: — Profe, a gente queria pedir uma coisa.
Professora: — O que vocês gostariam?
Cauê: — A gente quer brincar bastante no pátio.
Bento: — Tem muita atividade no bloco.
Théo: — A hora do pátio é sempre bem pouquinho.
Professora: — Eu estou vendo o livro de vocês e sei que vocês gostam de brincar no pátio, mas vocês estão no último ano na escola e têm atividades para fazer na sala. As atividades são importantes, pois o ano que vem é o 1º ano na escola dos grandes.
Bella: — E se a escola fosse um lugar só para brincar? (Diário de Campo do Pesquisador – roda de conversa)
Nas análises compartilhadas no artigo, escuta e participação foram apresentadas como dois conceitos relacionais no âmbito da pesquisa. Em tal perspectiva, as crianças participantes foram reconhecidas como cidadãs de pleno direito. Deste modo, com base em Liebel e Gaitán (2011), destaco que o exercício da cidadania infantil na investigação foi promovido a partir de uma relação de escuta do pesquisador e de sustentação das contribuições e reivindicações das crianças sobre o modo como estava sendo organizado o tempo na instituição em que foi realizada a investigação. Embora a prática pedagógica da pré-escola frequentada pelas crianças estivesse pautada em uma perspectiva preparatória para o Ensino Fundamental, a pesquisa teve como efeito a escuta das suas vozes, reverberando no aumento de horas diárias de brincadeira no pátio e em uma flexibilização da rotina de atividades focalizadas na escrita.
As estratégias de geração dos dados mobilizadas pelo pesquisador durante a pesquisa, assim como a relação estabelecida com as crianças, possibilitaram evidenciar que “a participação infantil envolve uma relação mútua entre crianças e adultos na qual todos os participantes aprendem e são beneficiados” (Soares & Oliveira, 2022, p. 1265). Todavia, isto só foi possível a partir do respeito às temporalidades dos participantes da pesquisa e do reconhecimento de suas demandas enquanto grupo social que partilha o contexto de vida coletiva da Educação Infantil. O entendimento da escuta enquanto ato político e pedagógico (Santos, 2022), bem como a interlocução com as crianças mediante uma desaceleração do tempo (Clark, 2023), permitiu perceber que “[...] a participação [infantil] envolve um processo de aprendizagem social por meio do qual as crianças acumulam conhecimentos e habilidades partilhadas em seus grupos” (Soares & Oliveira, 2022, pp. 1273-1274).
A partir dos encontros com os grupos de crianças durante a pesquisa para a discussão dos modos como elas atribuíam sentidos ao tempo institucional, foi notável a sofisticação dos seus modos de expressão, partilha de ideias e proposição de ações para a conquista de mais tempo de brincadeira no pátio. Ou seja, o contato com os meninos e meninas na investigação possibilitou entender que “[...] não é suficiente ‘outorgar’ direitos às crianças: é necessário que elas compreendam esses direitos como seus, que vejam o vínculo que têm com a sua vida” (Liebel & Gaitán, 2011, posição 4147). No entanto, cabe destacar que os resultados da pesquisa apresentada não devem ser vistos de modo generalizado, pois se referem ao contexto institucional do qual participavam as crianças e adultos envolvidos. Neste sentido, ressalto que a participação das crianças na Educação Infantil demanda a mediação dos adultos, para que elas possam ter tempos e espaços para exercer escolhas, compartilhar posicionamentos e estabelecer relações sociais densas. Todavia, as práticas de exercício de escuta e participação das crianças, assim como as discussões éticas e metodológicas apresentadas, podem servir de inspiração para futuras investigações que pretendam conhecer os modos como crianças menores de 5 anos de idade significam o tempo institucional.
Mediante as discussões desenvolvidas no artigo, ainda ressoa a indagação de Bella à professora, compartilhada no episódio de abertura da seção: “E se a escola [de Educação Infantil] fosse um lugar só para brincar?”. Certamente seria possível responder para Bella que o respeito às crianças, a alteridade de suas infâncias e as aprendizagens emergentes do cotidiano partilhado com os pares e com os adultos presentes no contexto institucional assumiriam o primeiro plano da ação pedagógica, sem jamais ceder espaço a uma perspectiva propedêutica de Educação Infantil. Entretanto, brincar envolve tempo. Tempo de convívio, de escuta, de participação e de interação com os pares. Afinal, para as crianças, brincar é viver, e o desejo expresso pelos meninos e meninas participantes da pesquisa é o de viver a vida em toda a sua intensidade.
Referências
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Rodrigo Saballa de Carvalho
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-8899-0998
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2011). Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Líder do Grupo de Pesquisa Currículo, Linguagens e Cotidiano de bebês e crianças pequenas. E-mail: rsaballa@terra.com.br
El objetivo de este artículo es analizar cómo se escuchó y participó a los niños en un estudio etnográfico sobre los significados del tiempo en la Educación Infantil. La investigación se llevó a cabo con 23 niños de preescolar de una institución pública. Las estrategias metodológicas fueron la observación, el diario de campo, la fotografía, la foto-elicitación y los círculos de conversación. El curso de la investigación se discute a través de unidades analíticas que tematizan la escucha y la participación de los niños. A partir de la investigación, se puede inferir que la escucha y la participación de los niños: promueven el ejercicio de la ciudadanía; exigen estrategias metodológicas participativas; les permiten tener poder de decisión durante la investigación.
Palabras clave: Educación Infantil. Investigación con niños. Tiempo. Escucha. Participación.
The aim of this article is to discuss how children were listened to and participated in an ethnographic study on the meanings of time in Early Childhood Education. The research was carried out with 23 pre-school children from a public institution. The methodological strategies were observation, field diary, photography, photo-elicitation and conversation circles. The course of the research is discussed through analytical units that focus on listening and children's participation. Based on the research, it can be inferred that children's listening and participation: promote the exercise of citizenship; demand participatory methodological strategies; enable them to have decision-making power during the investigation.
Keywords: Early Childhood Education. Research with children. Time. Listening. Participation.
Linhas Críticas | Periódico científico da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, BrasilISSN eletrônico: 1981-0431 | ISSN: 1516-4896
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Referência completa (APA): Carvalho, R. S. de. (2023). Escuta e participação em uma pesquisa etnográfica com crianças na Educação Infantil. Linhas Críticas, 29, e50765. https://doi.org/10.26512/lc29202350765
Referência completa (ABNT): CARVALHO, R. S. de. Escuta e participação em uma pesquisa etnográfica com crianças na Educação Infantil. Linhas Críticas, 29, e50765, 2023. DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202350765
Link alternativo: https://www.periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/50765
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