Artigo
Vulnerabilidade
social e performatividade: motivações da escolha das escolas militarizadas no
Maranhão
Vulnerabilidad social y performatividad social:
motivaciones de la opción por las escuelas militarizadas en Maranhão
Social vulnerability and performativity: motivations
for choosing militarized schools in Maranhão
Hélio Cleidilson de Oliveira Sena[i]
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
São Leopoldo, RS, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-6821-6698
Viviane Klaus[ii]
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
São Leopoldo, RS, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-6382-8089
Os
autores contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.
Recebido: 01/12/2022
Aceito: 17/01/2023
Publicado:
25/01/2023
Linhas
Críticas | Periódico científico
da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil
ISSN: 1516-4896 |
e-ISSN: 1981-0431
Volume 29, 2023
(jan-dez).
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas
Referência
completa (APA):
Sena, H. C. de O., & Klaus, V. (2023). Vulnerabilidade social e
performatividade: motivações da escolha das escolas militarizadas no Maranhão. Linhas
Críticas, 29, e45897. https://doi.org/10.26512/lc29202345897
Link alternativo:
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/45897
Licença Creative Commons
CC BY 4.0.
Resumo: O presente artigo analisou os motivos que levam
as Redes Públicas de Ensino do Maranhão a firmarem parcerias com o Corpo de
Bombeiros e com a Polícia Militar, possibilitando que eles assumam a gestão
administrativa de algumas de suas escolas. Os procedimentos metodológicos
adotados foram a análise documental e a realização de entrevistas
semiestruturadas. No contexto investigado, a militarização se deu a partir da
interface entre educação, vulnerabilidade social e performatividade, sem uma
discussão e problematização das desigualdades sociais e do caráter público da
escola, que é profundamente alterado.
Palavras-chave: Escolas militarizadas. Escolas tradicionais. Vulnerabilidade
social. Performatividade.
Resumen: El artículo analizó las razones que llevan las Redes
Públicas de Educación de Maranhão a firmar alianzas con el Cuerpo de Bomberos y
de la Policía Militar, haciendo posible que asuman la gerencia administrativa
de algunas de sus escuelas. Los procedimientos metodológicos adoptados fueron
el análisis documental y la realización de entrevistas semiestructuradas. En el
contexto investigado, la militarización se dio a partir del interfaz entre
educación, vulnerabilidad social y performatividad, sin una discusión acerca de
las desigualdades sociales y del carácter público de la escuela, que es
profundamente modificado.
Palabras
clave: Escuelas militarizadas. Escuelas tradicionales. Vulnerabilidad
social. Performatividad.
Abstract: This article analyzed the reasons why the Public Nets
of Education of Maranhão establish partnerships with the Fire Department and
the Military Police, enabling them to assume the administrative management of
some of its schools. The methodological procedures adopted were the documentary
analysis and the conduction of semi-structured interviews. In the investigated
context, the militarization occurred from the interface between education,
social vulnerability and performativity, without properly discussing the social
inequalities and the public character of the school, which is deeply modified.
Keywords: Militarized schools. Traditional schools. Social vulnerability. Performativity.
Notas introdutórias
Em pesquisa realizada, Sena (2021) analisou os motivos que levam
as Redes Públicas de Ensino do Maranhão a firmarem parcerias com o Corpo de
Bombeiros e com a Polícia Militar, possibilitando que eles assumam a gestão
administrativa de algumas de suas escolas. Estudou, também, os efeitos de tais
parcerias na gestão escolar. Os procedimentos metodológicos adotados foram a
análise documental e a realização de sete entrevistas semiestruturadas com
representantes das Secretarias de Educação de municípios da região e duas
entrevistas com as Diretorias de Ensino do Corpo de Bombeiros Militar (CBMMA) e
da Polícia Militar do Maranhão (PMMA).
Importa dizer que a nomenclatura “colégios militares” concerne aos
colégios vinculados às forças armadas e de dependência federal; a nomenclatura
“escolas militarizadas” refere-se a escolas regulares de ensino que sofreram
esse processo de militarização com a entrada da gestão militar.
O Governo Federal brasileiro –
período de 2019 a 2022 – utilizava o termo escolas cívico-militares nos casos
de implantação de novas escolas militarizadas em parceria com Ministério da
Defesa, Ministério da Educação, Secretarias Estaduais e Municipais de Educação
e Secretarias Estaduais de Segurança Pública, por meio dos militares das Forças
Armadas, das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros.
A pesquisa evidenciou
que um dos principais motivos que mobiliza as Redes Públicas de Ensino a transformarem algumas de suas escolas públicas regulares em escolas militarizadas é a
questão da interface entre educação, vulnerabilidade social e performatividade. Na visão dos entrevistados, a
entrada em cena dos militares resolveria o problema da violência e da
indisciplina escolar e melhoraria o desempenho de escolas
situadas em regiões de vulnerabilidade social nos rankings educacionais, o que empalidece uma
discussão mais aprofundada sobre desigualdades sociais na Contemporaneidade e o direito ao acesso, a permanência e a aprendizagem de todos(as). O que causa certo estranhamento é que a
modificação do público-alvo dessas escolas a partir de
processos seletivos para ingresso, cobranças de taxas e
transferência de alunos que não se adequam às normas
institucionais não foi problematizada pelos participantes da pesquisa. O caráter público
da escola que se torna militarizada é profundamente alterado.
A pesquisa evidenciou, também, que as escolas militarizadas encontram terreno fértil no contexto de uma aliança
constituída pela Nova Direita “entre neoconservadores e neoliberais, central para o
desmantelamento do Estado de Bem-Estar e para a criação de uma nova forma de
administrar o Estado” (Lima & Hypolito, 2019, p. 3) e de incidir sobre as funções sociais da escola.
As reformas na área
da educação têm sido perpassadas por uma agenda global de transformações,
influenciadas por grupos neoliberais e neoconservadores que modificam
significativamente as principais pautas educacionais. Os populistas
autoritários, por exemplo, “[…] baseiam suas posições sobre educação e política
social em certas visões da autoridade bíblica, como a moralidade cristã, os papéis de gênero e da
família” (Lima & Hypolito, 2019, p. 8, grifos dos
autores). Eles colocam em circulação debates sobre livros didáticos e a mudança
do seu conteúdo, e sobre o ensino domiciliar (homeschooling), que entende que a interferência do Estado na vida
da família representa um perigo, já que, na escola, seus filhos precisam
conviver com o diferente e, muitas vezes, com o dito imoral (Lima & Hypolito, 2019). Os valores da liberdade e da moralidade são
característicos tanto do neoliberalismo como do neoconservadorismo.
Nesta linha, Brown (2019) aponta que “O ataque contemporâneo à sociedade e à
justiça social em nome da liberdade de mercado e do tradicionalismo moral é,
portanto, uma emanação direta da racionalidade neoliberal, e não se limita aos
assim chamados ‘conservadores’” (Brown, 2019, p. 23). A autora afirma ainda que “As forças conservadoras, no entanto, fizeram apelos mais
diretos à moralidade tradicional e homílias ao livre-mercado, embrulhando tudo
isso com patriotismo, nativismo e cristandade” (Brown,
2019, p. 23). A expansão das escolas militarizadas se inscreve neste contexto.
Desse modo, este artigo, apresentará um recorte da investigação
realizada por Sena (2021). Para uma melhor organização da discussão, está
estruturado em cinco seções. Na primeira seção,
apresentam-se os procedimentos metodológicos adotados na investigação. Na
segunda seção, situa-se no que consiste a parceria entre Polícia Militar e
Corpo de Bombeiros com as Secretarias Municipais e Estaduais de Educação,
apresentam-se alguns dados das escolas militarizadas no Maranhão. Na terceira
seção, discorre-se brevemente sobre o tema da vulnerabilidade social e da performatividade – motivações para a
militarização das escolas públicas no Maranhão no recorte analisado, e procura-se
compreender como esses temas se articulam na Contemporaneidade, a partir
da responsabilização individual dos sujeitos pelos seus sucessos e fracassos.
Na quarta seção, apresentam-se
as análises realizadas a partir do material empírico selecionado; e, na quinta e
última seção, encontram-se as considerações finais.
Procedimentos metodológicos
Na presente pesquisa, utilizam-se como procedimentos
metodológicos a análise documental e a realização de entrevistas compreensivas.
Parte-se do pressuposto de que os caminhos metodológicos são uma construção que
vai se delineando durante todo o percurso investigativo. Assim, para compreender
as razões da parceria entre Redes Públicas de Ensino do Maranhão e o Corpo de
Bombeiros ou Polícia Militar, analisam-se as entrevistas realizadas com sete
secretarias de educação e duas diretorias de ensino militar do Maranhão, que
propiciaram compreender de forma mais aprofundada as motivações das escolhas
das escolas selecionadas para militarização.
No Quadro 1, apresenta-se a relação de
secretarias de educação, a Secretaria Estadual de Educação (SEDUC) e as
Secretarias Municipais de Educação (SEMED), com suas respectivas escolas
militarizadas, os Colégios Militares do Corpo de Bombeiros (CMCB) e os Colégios
Militares Tiradentes (CMT) da Polícia Militar, vinculadas à sua estrutura e
organização, que participaram das entrevistas em 2020, por ordem de entrevistas.
Quadro 1
Localização das
escolas militarizadas por Secretaria que participaram das entrevistas
Ord. |
Secretaria de Educação |
Colégios Vinculados |
Data da entrevista |
Entrevistado |
01 |
SEMED de Timon |
CMCB VI e CMT V |
16/06/2020 |
Secretária de Educação |
02 |
SEMED de Barra do Corda |
CMCB XI |
29/06/2020 |
Secretário de Educação |
03 |
SEMED de Rosário |
CMCB VII e VIII |
04/07/2020 |
Coordenadora |
04 |
SEMED de Santa Rita |
CMCB V |
06/07/2020 |
Assessora pedagógica |
05 |
Secretaria Estadual de Educação |
CMCB I e XI; CMT I, II, III, IV e V |
08/07/2020 |
Superintendente |
06 |
Diretoria de Ensino do CBMMA |
CMCBs |
14/07/2020 |
Subdiretor |
07 |
SEMED de Caxias |
CMCB IX |
25/07/2020 |
Coordenador |
08 |
SEMED de Arari |
CMCB X |
05/08/2020 |
Supervisora |
09 |
Diretoria de Ensino Regular da PMMA |
CMTs |
12/08/2020 |
Comandante CMT I |
Fonte:
Elaborado pelos autores.
Observa-se que CMCB I (São Luís), CMT I (São Luís), CMT
II (Imperatriz), CMT III (Bacabal), CMT IV (Caxias) e CMT V (Timon) são da
SEDUC. As demais unidades estão em municípios distintos, envolvendo sete Redes
Municipais de Educação, pois uma delas conta com dois colégios cada (Rosário).
Destaca-se que o CMCB XI (Barra do Corda) é uma escola que faz parte da rede
estadual de educação e também da rede municipal. Acrescentou-se, também, duas
entrevistas, uma com a Diretoria de Ensino do CBMMA e uma com a Diretoria de Ensino
Regular da PMMA, acreditando ser importante ouvir os gestores desses dois
setores sobre a temática em estudo, prevendo ao todo nove entrevistas.
Das nove secretarias de educação que em 2020 tinham
parcerias com as corporações militares, apenas as SEMEDs de São José de
Ribamar, com três colégios (CMCB II e III, e CMT VI) e Paço do Lumiar (CMCB
XII) não participaram das entrevistas. Após a realização das entrevistas, o
Corpo de Bombeiros firmou mais 15 parcerias com as secretarias de educação; são
elas: em 2021, foi implantado o Anexo do CMCB I (Colégio Pio XII) e os CMCBs
XIII (São José de Ribamar), XIV (Coroatá), XV (Pedreiras), XVI (Palmeirândia),
XVII (Capinzal do Norte), XVIII (São Bento), XIX (Penalva), em 2022 em processo
de implantação estão as unidades XX (Guimarães), XXI (Santa Inês), XXII (São
Vicente Ferrer), XXIII (Bequimão), XXIV (Cantanhede), XXV (São Mateus) e XXVI
(Porto Franco). A Polícia Militar, em 2022, implantou mais 10 parcerias; são
elas: CMTs VII (Peritoró), VIII (São Mateus), IX (Aldeias Altas), X
(Turilândia), XI (Tuntum), XII (Raposa), XIII (Coroatá), XIV (Primeira Cruz),
XV (Axixá) e XVI (Santa Quitéria do Maranhão).
O roteiro de entrevista versou sobre quatro aspectos
centrais: (a) a história da parceria em cada um dos municípios (período, atores
envolvidos, materiais publicados, documentos formulados); (b) as motivações
para o estabelecimento da parceria e os critérios de escolha da(s) escola(s);
(c) as funções exercidas pelas equipes diretivas (gestão militar e gestão pedagógica);
(d) os principais resultados da parceria desde a sua implantação.
Devido à pandemia da Covid-19, todas as entrevistas
foram realizadas através de videoconferência pelo aplicativo Zoom, gravadas e
transcritas na íntegra. Todos os procedimentos éticos foram adotados durante a
investigação. Cada Secretaria de Educação assinou o Termo de Anuência
Institucional e todos os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido. Os nomes dos entrevistados foram mantidos em sigilo.
Considera-se que os ditos produzidos por meio de
entrevistas fazem parte de um contexto discursivo maior, ou seja, inscrevem-se
a partir de condições que possibilitam que algumas coisas sejam ditas, pensadas
e construídas em um determinado contexto histórico, social, econômico e
político – e não em outro. Afasta-se, portanto, o entendimento a partir do qual
“concebe-se a fala do entrevistador como mero instrumento de extração de
verdades e não como um provocador de outras verdades, outras histórias, outras
lógicas!” (Silveira, 2002, p. 134).
Além das entrevistas, analisou-se um conjunto de
documentos, como leis de criação, termos de cooperação técnica, projetos
políticos-pedagógicos, regimentos internos, regulamentos disciplinares e normas
gerais de ação, que propiciaram compreender, de forma mais aprofundada, as
implicações da parceria entre o Corpo de Bombeiros ou a Polícia Militar e as
Redes de Ensino, principalmente a partir do binômio administrativo-pedagógico.
Sobre as Escolas
Militarizadas no Maranhão
A expansão das escolas militarizadas é uma realidade no
Brasil, que tem como pilares as normas dos Colégios Militares do Exército
originadas em 1889, com o primeiro Colégio Militar no Rio de Janeiro, criado
para atender aos filhos dos militares que morriam em combate. Conforme os dados
mapeados na pesquisa de Sena (2021), em janeiro
de 2021 foram contabilizados 259 colégios militares e escolas militarizadas
espalhadas pelo Brasil.
No Maranhão, existem 44 escolas militarizadas
atualmente: 9 de dependência estadual e 34 de dependência municipal; 16 delas
estão sob a gestão da PMMA e são caracterizadas a partir da denominação de
Colégio Militar Tiradentes (CMT); 27 estão sob a gestão do CBMMA e são
caracterizadas como Colégio Militar do Corpo de Bombeiros (CMCB) ou Colégio
Militar 2 de Julho; e uma está sob dependência da Aeronáutica.
Além das instituições escolares já citadas, o Programa
Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM), promulgado pelo Governo Federal
brasileiro por meio do Decreto 10.004 (Brasil, 2019), implantou 53 escolas
cívico-militares em 2020, 74 em 2021, e está em processo de implantação 89
escolas em 2022[3], totalizando
216 instituições. As escolas estão distribuídas nas cinco regiões do país,
sendo 44 na Região Norte, 36 na Região Nordeste, 28 na Região Centro-Oeste, 54
na Região Sudeste e 54 na Região Sul (Brasil, 2022). Tais instituições estão
divididas nas três esferas de governo (federal, estadual e municipal), mas com
formas distintas de gestão e por meio de diversas parcerias e atores
envolvidos, tais como: Ministério da Defesa, Ministério da Educação,
Secretarias Estaduais de Educação, Secretarias Estaduais de Segurança Pública e
Secretarias Municipais de Educação. Porém, praticamente todos os colégios
seguem os mesmos pressupostos dos Colégios Militares do Exército.
As escolas públicas regulares estaduais que passam a
ser militarizadas no Maranhão e que são criadas por lei própria são mantidas
tanto pela SEDUC como pela Secretaria de Estado da Segurança Pública (SSP), por
meio do Corpo de Bombeiros, e mudam a sua razão social para a nomenclatura Colégio
Militar 2 de Julho, absorvendo toda a estrutura da antiga escola. O mesmo
acontece nas leis de instituição das escolas militarizadas da Polícia Militar:
a escola escolhida passa a se chamar Colégio Militar Tiradentes, absorvendo
também toda a estrutura da antiga escola pública. Já nas escolas públicas
regulares municipais, a nova nomenclatura de colégios militares fica sendo o
nome fantasia, pois é uma parceria realizada através de um termo de cooperação
que tem prazo de vigência, que pode ser prorrogado, e a manutenção delas se dá
tanto pelas SEMED quanto pela SSP, através do CBMMA ou da PMMA (Sena, 2021).
Os militares assumem a gestão das escolas
militarizadas, permanecendo com as secretarias de educação a responsabilidade
pela manutenção do prédio escolar, pela coordenação pedagógica das instituições
e pelo corpo docente. As escolas militarizadas de dependência municipal
funcionam, em sua maioria, nos anos finais do Ensino Fundamental (do 6° ao 9°
ano), sendo que um número menor de escolas funciona com a educação infantil
(pré-escolar) e anos iniciais do Ensino Fundamental. Já as escolas de
dependência estadual funcionam nos anos finais do Ensino Fundamental e no
Ensino Médio. É de competência do CBMMA ou da PMMA estabelecer as normas de
organização e funcionamento dos colégios, em compatibilidade com as legislações
pertinentes. Tanto nas leis de criação como nos termos de cooperação, as
parcerias também trazem essa divisão de responsabilidade entre os entes
envolvidos, em que a gestão militar assume a administração geral das escolas
regulares, e a gestão que estava na escola passa a ser gestão pedagógica, assim,
há uma cisão entre o pedagógico e o administrativo.
Dos dados fornecidos pelas escolas militarizadas do
Maranhão e da análise dos documentos, chega-se ao Gráfico 1 relacionado a
seguir, em que destaca-se o número de alunos matriculados pelos CMCBs e CMTs em
2020, indicando que o CMT I e CMCB I possui um público maior de alunos que
abrange tanto estudantes do ensino fundamental como do ensino médio.
Quantidade de alunos matriculados nos CMCBs e CMTs
em 2020
Fonte: Elaborado pelos
autores.
Reflexões sobre vulnerabilidade e
performatividade
Tendo em vista os dois principais motivadores, na visão
dos entrevistados, para a transformação de algumas escolas públicas em escolas
militarizadas, optou-se por discutir brevemente, nesta seção, a articulação
entre vulnerabilidade e performatividade na Contemporaneidade. O intuito é uma
breve reflexão sobre a individualização dos riscos sociais, a melhora da
performance individual nas avaliações de larga escala e a performatividade das
instituições nos rankings.
A argumentação
central é a de que, na Contemporaneidade, a lógica performática coloca em
circulação um processo de “individualização
dos riscos sociais”; e “as diferenças sociais de classe perdem sua feição
no mundo da vida e, com sua perda, desvanece-se
a noção de mobilidade social, no sentido de uma troca de indivíduos entre
os grandes grupos perceptíveis” (Beck, 2010, p. 147, grifos do autor). O autor
menciona que as diferenças sociais de classe e a noção de mobilidade foram
temas sociais e políticos fortes na geração de identidade ainda durante boa
parte do século XX.
Tal desvanecimento está relacionado a um conjunto de
mudanças que ocorreram principalmente a partir do final do século XX e do
início do século XXI, tais como: dissociação das áreas do econômico, do
político e do social; mutações profundas no mundo do trabalho; fragmentação
social e individualização exacerbada; lógica da concorrência e da
diferenciação; processo de individualização da desigualdade social (Beck,
2010).
A dissociação entre as áreas do econômico, do político
e do social implica a compreensão de que o mercado não é mais um ambiente
natural de livre circulação das mercadorias, mas um processo regulado (e menos
autorregulador), autocriador, que tem a sua própria dinâmica e utiliza
motivações psicológicas e competências específicas (Dardot & Laval, 2016).
Tal dinâmica parte da lógica do concorrencialismo cujas bases teóricas foram
estabelecidas pelo sociólogo norte-americano William Graham Sumner (1840-1910),
que considerava a escassez a grande educadora da humanidade e a luta contra a
natureza como uma luta dos homens entre si (Dardot & Laval, 2016). Os
indivíduos passaram a ser considerados “agentes ativos em seu próprio governo
econômico através da capitalização de sua própria existência”, questão que
“coincide com toda uma nova série de vocabulários e esquemas para supervisionar
os indivíduos dentro do ambiente de trabalho, em termos do desenvolvimento de
suas habilidades, capacidades e empreendedorismo” (Miller & Rose, 2012, p. 121).
Martuccelli (2017) discute de que modo o termo
vulnerabilidade[4] foi sendo
ressignificado ao longo do tempo, e diz que na Modernidade emerge a semântica
voluntarística[5], que se
caracteriza por uma modificação política considerada inédita: a valorização da
vida humana e o domínio da natureza. Segundo o autor, neste período, há uma
supremacia da vontade do homem, uma glorificação da vida e dos prazeres
terrenos; e, a partir de então, surge o individualismo no contexto do
liberalismo e do pacto político da modernidade.
Assim, na modernidade, essa semântica voluntarista do
termo vulnerabilidade apresenta uma função política incontestável, sendo que,
dentro do pacto político, há a proteção à vida. “A vulnerabilidade humana
transforma-se, assim, neste período, em uma questão de desigualdade social:
algo bem refletido e mensurado pelas taxas diferenciais de mortalidade,
morbidade, segurança, pobreza.” (Martuccelli, 2017, p. 129). Martuccelli (2017) apresenta, ainda, a semântica
performativa, que
surge na contemporaneidade, em que a vulnerabilidade passou a ser percebida
através das transformações ocorridas ao nível do controle coletivo dos
fenômenos sociais e naturais, gerando consequências no contexto das vítimas e ao seu nível de sofrimento, dessa forma,
passando então esta semântica a ter um sentido ético e político.
Nessa
semântica, a vulnerabilidade como via sofrimento “é percebida como um teste
ético e uma forma de conhecimento de si mesmo” (Martuccelli, 2017, p. 131),
sendo que as condições de ser ou não vítima são julgadas dentro de uma
avaliação ou estratégica coletiva. Ele diz ainda que, “Se toda a semântica é
indissociável de uma forma de representação, somente na semântica atual a
vulnerabilidade é evitada e enfrentada a partir de um trabalho propriamente
performativo” (Martuccelli, 2017, p. 131); assim, esta semântica apresenta
dilemas: por exemplo, como evitar a competição entre vítimas, como se sensibilizar
com o sofrimento alheio diante dos bombardeios de mensagens dos vários
aplicativos das redes digitais. Vive-se uma estetização da vida no sentido da
visibilidade e consciência das nossas próprias vulnerabilidades e dos outros.
Neste sentido, a vulnerabilidade social, diante de um
contexto de riscos produzidos por fatores sociais e econômicos, tem fragilizado
o modo de vida de muitos grupos e indivíduos. A “emergência da sociedade de
risco […] designa uma fase de desenvolvimento da sociedade moderna na qual os
riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem, cada vez mais, a
escapar das instituições de monitorização e proteção da sociedade industrial” (Beck,
1997, p. 5). Assim, destaca-se que esta reflexividade está na ordem da autoconfrontação,
em que o indivíduo é colocado em xeque a todo momento. O autor afirma, ainda,
que:
[…] a
individualização não é baseada na livre decisão dos indivíduos. Utilizando as
palavras de Sartre, às pessoas estão condenadas a individualização. A individualização
é uma compulsão, mas uma compulsão para o fabrico, autodesenho, auto-encenação,
não apenas da nossa própria bibliografia, como também dos nossos compromissos e
redes, à medida que as nossas preferências e fases da vida mudam, mas, é claro,
sob as condições e os modelos gerais do Estado de bem-estar, como seja o
sistema educativo (adquirindo diplomas), o mercado de trabalho, o direito
laboral e social, o mercado imobiliário e assim por diante. (Beck, 1997, p. 15)
Tais discussões são centrais no presente artigo, pois
permitem a desnaturalização das desigualdades sociais que são produzidas no
contexto da racionalidade neoliberal. As transformações que estão ocorrendo na
sociedade, em virtude deste novo capitalismo informacional ou flexível, têm
impactado consideravelmente a forma de vida das pessoas e empresas, as relações
de cuidado de si, de cuidado do outro e do meio natural em que vivem, o que
ocasiona e ocasionará muitas catástrofes. Bauman (2017, p. 59) afirma: “Hoje
nós tendemos a temer o futuro, tendo perdido a confiança na nossa capacidade
coletiva de mitigar seus excessos, torná-lo menos assustador e repelente, bem
como um pouco mais amigável para o usuário”.
Dentro da lógica de uma sociedade inscrita pela racionalidade
neoliberal, em que as populações miseráveis são a maioria, a dinâmica de
responsabilização dos sujeitos pelos seus sucessos e fracassos acaba por
empalidecer as discussões sobre as desigualdades sociais. Nesta sociedade de
risco, do controle, da informação etc., não faltam argumentos e soluções que
não resolvem os principais problemas educacionais. Assim, o novo modelo de
gestão das escolas militarizadas está inserido na racionalidade neoliberal e
neoconservadora, que busca uma divisão de responsabilidades entre instituições,
além de visar à qualidade do ensino através de competividade, performance,
eficiência e resultados. Nesse sentido, Dardot e Laval (2016, p. 302) dizem que
a nova gestão pública.
[…]
consiste em fazer com que os agentes públicos não ajam mais por simples
conformidade com as regras burocráticas, mas procurem maximizar os resultados e
respeitar as expectativas dos clientes […] Cada entidade (unidade de produção,
coletivo ou indivíduo) passa a ser “autônoma” e “responsável” (no sentido
accountability). No âmbito de suas missões, recebe metas que deve atingir. A
realização dessas metas é avaliada regularmente, e a unidade é sancionada
positiva ou negativamente de acordo com seu desempenho.
Essa nova racionalidade vem pautando uma educação
voltada para resultados, inovações, eficiência, performatividade e formação de
‘sujeitos para o século XXI’ que devem atender a um mercado cada vez mais
competitivo. Dessa forma, a escola passa a ter uma função econômica
influenciada pelas constantes mutações no campo social, político e cultural, em
que o fracasso ou o sucesso de cada indivíduo é de responsabilidade de cada um.
O Estado passa a funcionar como uma quase empresa e a
incorporar novas formas de gestão empresarial que impactam diretamente no
significado do “público”. As escolas militarizadas se inserem nesse contexto e
aparecem como instituições eficientes na busca de resultados e de indicadores
educacionais que comprovem seu sucesso e eficiência. Neste sentido, Laval (2019,
p. 251) diz que:
A função atribuída à escola na formação de competências e os objetivos
de eficiência que se esperam dela encontram no sistema educacional sua
continuação lógica, sob os auspícios da ‘revolução gerencial’. O objetivo desta
última é gerir a escola como uma empresa.
As reformas educacionais neoliberais das últimas
décadas, que transformaram a forma de gestão pública em uma gestão de uma quase
empresa, têm mudado as condutas das pessoas e instituições, na busca crescente
de resultados e desempenhos, além de fomentarem a competitividade e a
responsabilização pelo fracasso dos indivíduos e instituições. Assim, a pauta
de uma educação “de qualidade” em zonas vulneráveis a partir do discurso da
disciplina, da contenção da violência que é estrutural, da criminalização da
pobreza e da performatividade dos indivíduos e das instituições invisibiliza as
desigualdades, descaracteriza o caráter público da escola e não coloca em pauta
a discussão de políticas públicas que possibilitem a melhoria de vida da
população. As motivações para a escolha das escolas a serem militarizadas no
Maranhão merecem ser problematizadas e desnaturalizadas.
Sobre a análise do material empírico
Conforme já mencionado, analisaram-se entrevistas
realizadas com sete secretarias de educação e duas diretorias de ensino militar
do Maranhão, com o objetivo de compreender as razões da parceria entre Redes
Públicas de Ensino do estado e o Corpo de Bombeiros ou Polícia Militar, e as
motivações das escolhas das escolas selecionadas para militarização.
Nessas escolas, a vulnerabilidade passa a ser assunto
de disciplina, pois só permanecem os alunos que se enquadram nos regulamentos
disciplinares; os que não se enquadram nos requisitos da disciplina e
comportamento são transferidos da escola, e o perfil dos estudantes é alterado
quando essas instituições passam a exigir processo seletivo para seu ingresso,
a cobrar taxas escolares e exigir aquisição de uniformes por parte dos pais.
Assim, analisando as entrevistas, fica claro que
importa a localização da escola em zonas periféricas e em situações de
vulnerabilidade como a motivação para a escolha das escolas a se tornarem
militarizadas, conforme destaca-se nas falas dos entrevistados:
[…] que a escola está né, no seu entorno de muitas situações de
vulnerabilidade, de um contexto social realmente, eu digo assim, num espaço
pra, é interessante justamente porque a escola vem com aquela função de cumprir
aquela função social mesmo de transformação do espaço em si […]. […] queríamos
um espaço, a escola fosse num espaço né, de vulnerabilidade, que pudesse mudar
aquele contexto social […]. (entrevistado 1)
O outro fator importante é que a escola tá sediada em um bairro de
periferia e né, de, de famílias carentes e nós tivemos todo um olhar pra essa
questão social, né, pro perfil social de alunos que nós iríamos atender,
justamente pra tirar esse menino da rua, pra tirar esse menino das drogas, né,
então, nós tivemos um olhar social também na implantação dessa escola […].
(entrevistado 2)
[…] a gente segue a linha sempre de ofertar escolas aonde nós temos um
alto grau de vulnerabilidade, né, naquela comunidade ou naquela, naquele espaço
né, então, geralmente nós seguimos essa linha enquanto Secretaria […]. Então, a
ideia é sempre trazer a escola pra mais próximo e nas comunidades de alta
vulnerabilidade […]. (entrevistado 5)
[…] nós tivemos uma mudança na clientela, do
aluno, a indisciplina caiu demais, essa questão com drogas também ficou
praticamente zerado. Nós tínhamos índices de violência ali diminuiu, no entorno
escolar diminuiu muito, diminuiu muito […]. (entrevistado 7)
[…] o secretário de educação escolheu o bairro da […] que é um
bairro de periferia, […] então, a gente montou esses outros colégios e esses
outros colégios são em áreas periféricas e aí as pessoas, geralmente, eu
costumo criticar quem […] solicita essas escolas? É a comunidade? Não, agora
sim é a comunidade, mas logo no começo é mais uma questão política […].
(entrevistado 9)
Conforme a análise documental dos regulamentos
disciplinares, observou-se que há uma mudança de perfil dos alunos que
ingressam nas escolas militarizadas do Maranhão. Pode-se esse aspecto observar
no item 3.3 do Projeto Político-Pedagógico (PPP) do CMT I, que apresenta as
questões das cerimônias militares, enfatizando a semana de adaptação, em que
todos os alunos matriculados têm de participar – e a não participação gera o
cancelamento da matrícula do aluno:
Art.
23. O aluno matriculado neste estabelecimento de ensino deverá obrigatoriamente
comparecer na SEMANA DE ADAPTAÇÃO, que ocorre na semana que antecede o início
do ano letivo, sendo imperiosa a sua participação ativa e efetiva em todas as
rotinas diárias de treinamento que ocorrerem neste período adaptativo.
§ 1º –
A presença é necessária nesta semana, pois visa inserir o aluno no cotidiano da
vida escolar do Colégio Militar Tiradentes, além de receber instruções cívicas
e militares fundamentais para sua formação e adaptação à rotina desta unidade
de ensino.
§ 2º –
O não comparecimento e efetiva participação do aluno em todas as rotinas
diárias de treinamento será objeto de cancelamento de sua matrícula. (Colégio
Militar Tiradentes Unidade I, 2019, p. 18)
Não se pode esquecer que se trata de escolas públicas –
e, mais ainda, de escolas públicas em zonas de vulnerabilidade social. Conforme
já discutido, a lógica da concorrência em curso na racionalidade neoliberal
produz desigualdades e exclusões. Muitas famílias que têm seus filhos em escolas
públicas não têm condições mínimas de subsistência. A criminalização da pobreza
em curso precisa ser mais bem compreendida. As regras das escolas militarizadas
deixam muito claro que existe um período de adaptação, e muitos podem ser
excluídos da escola ainda nesse período. E o direito à educação, como fica?
Observou-se que as escolas militarizadas utilizam o
processo seletivo como forma de ingresso de seus alunos. A Lei 10.664
(Maranhão, 2017), de normatização dos Colégios Tiradentes, apresenta a questão
da seleção para ingresso, conforme destaca-se a seguir:
Art.
18. O número de vagas para o ingresso nos Colégios Militares Tiradentes, por
concurso de admissão, será fixado anualmente pelo Diretor de Ensino da
Corporação mediante proposta dos gestores dos Colégios Militares Tiradentes e
homologadas pelo Comandante Geral da Polícia Militar do Maranhão.
Art. 19. Serão destinadas no máximo 50% (cinquenta por
cento) das vagas existentes para preenchimento, mediante aprovação, por
candidatos dependentes de militares da Polícia Militar do Maranhão, de
professores e funcionários civis dos Colégios Militares Tiradentes e da
Corporação.
Art. 20. Os 50% (cinquenta por cento) das vagas
restantes serão destinadas para a comunidade em geral e preenchidas pelos
candidatos aprovados, observada a ordem de classificação do concurso de
admissão.
Enfatizou-se que o processo seletivo nestes colégios é um fator que vem a
contribuir para gerar uma exclusão de acesso a essas instituições, além das
contribuições realizadas pelas famílias na manutenção das escolas, o que é
visto com exaltação pelos gestores, considerando que uma parceria com as
famílias contribui para a manutenção das instituições. Ou seja, nos critérios
de escolha das escolas, o argumento da vulnerabilidade social e da violência e
a necessidade de uma educação de “qualidade” para a população mais pobre são
reinscritos pela lógica da meritocracia – melhoria dos índices, que será
discutida mais adiante, mas resultam em hierarquia, disciplina e exclusões. Vê-se
aqui a articulação entre neoliberalismo e neoconservadorismo. A escola
militarizada não é para todos; ela vai sendo reescrita e recomposta a partir de
diferentes combinações de processos seletivos e regras de quem fica e quem sai,
quem entra e quem não entra.
Em relação aos critérios de
acesso às escolas, alguns entrevistados falam sobre uma taxa de manutenção paga
pelos pais, conforme as entrevistas 2, 3 e 7:
[…] a escola tem se beneficiado com a parceria da comunidade também
porque, exemplo, existe uma taxa de manutenção que a gente ficou muito preocupado
com relação a essa taxa da manutenção, mas a gente conseguiu implantar isso,
mesmo que num valor bem diferente dos demais colégios militares, mas nós
conseguimos ter essa parceria com a comunidade, e aí mais do que nunca a gente
percebe que a comunidade acredita no ensino, acredita na escola, por conta
dessa parceria que nós já temos com a comunidade. (entrevistado 2)
[…] as escolas, as duas escolas os alunos contribuem com uma taxa, se
não me engano é R$30,00. Se tu tem 427 alunos esse aluno todo mês da R$30,00 tu
calcula isso vai dar o diferencial de receita pra que o administrativo da
escola, ele atenda essas demandas didáticas, pedagógicas, ele pode chamar, ele
pode criar uma escola e reforço no horário contraturno, então, isso faz uma
diferença […]. (entrevistado 3)
[…] Tem a associação de pais, né, que tem essa função de aproximar os
pais da escola, os pais da, da administração da escola e tudo e tem a
contribuição deles também, que esse dinheiro é revertido pro caixa escolar, que
é justamente pra fazer essa manutenção. e que foi fundamental pra gente […].
(entrevistado 7)
Poder-se-ia fazer uma discussão aqui sobre o valor da
taxa versus o valor do Bolsa Família[6],
por exemplo, bem como apresentar levantamentos da renda das famílias que vivem
nas comunidades das escolas militarizadas. Porém, não foi possível fazer essa
análise, pois isso ampliaria o escopo da investigação. Mas observou-se que a
taxa reforça a exclusão dos alunos em situação de vulnerabilidade social e que
não têm condições de pagar o valor cobrado nos colégios militares, sem contar
que um princípio constitutivo da escola pública é a gratuidade. Além disso, há
um processo seletivo para ingresso e uma série de critérios para ter a
permanência assegurada, o que acaba por inverter a lógica da escola pública,
laica e gratuita para todos(as). O Regimento Interno do CMCB I também apresenta
os critérios por meio dos quais os alunos serão desligados ou transferidos da
escola, destacando o seguinte:
V –
tendo concluído o ano letivo, ainda que com aproveitamento, não contar com o
parecer favorável do Conselho de Ensino para sua permanência nesta escola, ante
seu comportamento disciplinar e ético não satisfatório
VII –
descumprimento das regras estabelecidas no Termo de Compromisso Educacional
assinado no ato da matrícula. (Colégio Militar do Corpo de Bombeiros Unidade I,
2018a)
A mudança de perfil de aluno mereceria uma maior
investigação. Onde estão esses alunos? Evadiram? Mudaram de escola? Como o
processo seletivo contribui com essa mudança de perfil? São vários
questionamentos que futuras pesquisas poderiam problematizar e buscar respostas
aos problemas sociais gerados com a militarização das escolas.
É importante ressaltar
que, inseridos nessa racionalidade de performatividade desde sua criação, os
colégios militares são vistos como conquistadores de grandes resultados e
eficiência.
As secretarias de
educação, ao serem questionadas sobre as motivações para transformarem escolas
públicas em escolas militarizadas, enfatizam a melhoria do desempenho nas
avaliações externas. Importa dizer que disciplina e melhores resultados aparecem
nas mesmas respostas, ou seja, conforme já havia destacado, neoconservadorismo
e neoliberalismo estão diretamente relacionados. A competitividade, a
performatividade a partir da melhoria do desempenho e a retomada de “valores
perdidos” se articulam, se hibridizam e se retroalimentam. Assim, constam nas
falas dos entrevistados relacionadas a seguir, sobre os bons resultados das
escolas militarizadas:
[…] os resultados vêm demonstrando, se você fizer
um levantamento das escolas militares, elas se destacam em relação à qualidade
de ensino, então, é um modelo que trabalha essa parte pedagógica com a questão
da disciplina, né, muito bem […]. […] uma
simulação dos resultados que vai, do resultado que vai ser do IDEB e a gente já
tem uma prévia do que valeu muito a pena essa parceria e que os resultados,
realmente, serão muito bons, serão resultados assim que vai consolidar, vai
dizer, olha realmente é um modelo eficiente, o aluno ele aprende […]. (entrevistado 1)
[…] a vontade de ter essa educação ehh, mais, com mais disciplina, com
melhores resultados, né, que busca resultados, melhores resultados, e aí se a
gente já tinha a certeza que o Colégio Militar teria esses bons resultados e de
uma forma também, ehh, pedagógica de ser inspiração pras demais escolas […]. […] Então, a gente precisa elevar esses
indicadores educacionais, e aí se pensou que um Colégio Militar seria essa
referência, teria esse padrão de qualidade […]. (entrevistado 2)
[…] eu vejo que a tendência dos resultados dessa escola é fazer com que
a comunidade acredite nela, trazer mais credibilidade pela boa imagem, que a
escola representa e aí ela se amplia e a procura é maior […]. essa escola
sempre teve uns indicadores de avaliação num ponto legal, mas agora a tendência
é melhorar mesmo […]. (entrevistado 3)
Certo, a escola militar ela sempre foi um desejo né, […],
principalmente por causa dos bons resultados que as escolas têm a nível de
Brasil, né, nós temos, nós sabemos a grade parte, grande parte das escolas
militares tem excelentes resultados em provas externas, e provas internas
também. (entrevistado 4)
[…] Então, também isso é algo que chama muito
atenção da comunidade escolar, os resultados que essas escolas já proporcionam
ao longo desse período, desse tempo que nós temos essa parceria. […] eu consigo
afirmar que eles têm bons resultados sim, e sempre configuram ali entre as
cinco melhores escolas nas nossas avaliações estaduais, internas e a nível de
externo, de ENEM, de vestibulares eles têm quem consegue aprovar, eles também
conseguem ter uma boa, uma boa colocação nas olimpíadas […]. (entrevistado 5)
Primeiro pelo resultado, que as escolas
começam a obter, são as primeiras né, estão entre as cinco melhores escolas do
estado, quer seja Corpo de Bombeiros, quer seja Polícia Militar, e isso chama
atenção das famílias, além também do senso de responsabilidade dos alunos, da
forma como eles passam a se portar dentro de casa. (entrevistado 6)
Os principais resultados nós na parte pedagógica nós avançamos, né, na,
no resultado da Provinha Brasil, nós avançamos muito, né, pelo ano da
implantação, o impacto, nós conseguimos passar de três pra três vírgula cinco,
nós não alcançamos o objetivo que era três vírgula sete. Nós passamos a
disputar a Olimpíada a de Português, a Olimpíada de Matemática que a gente já
disputava né, não teve avanço nisso […]. (entrevistado 7)
[…] nós estamos inicialmente, nós estamos satisfeitos com os resultados
tá, com toda a parceria e a gente espera que essa parceria possa perdurar […].
(entrevistado 8)
[…] Então, depois do sucesso do colégio […] a
gente começou a dar resultado […]. (entrevistado 9)
Os regulamentos disciplinares dessas escolas enfatizam
ainda mais a performance dos alunos dentro do ambiente escolar, por meio da
meritocracia, que é estimulada através das pontuações e das recompensas. Há uma
classificação em categorias já pré-estabelecidas, levando em consideração
alguns méritos conquistados pelo aluno, conforme destacado no Regulamento
Disciplinar do CMCB I, a seguir:
Art. 44. As recompensas
são utilizadas para valorizar e enaltecer os alunos que se destacam na vida escolar
seja por mérito disciplinar, intelectual, esportivo, físico ou social. São
concedidas aos alunos as seguintes recompensas: I – Elogio Verbal – 0,1 ponto;
II – Elogio Coletivo em Boletim do Corpo de Alunos – 0,2 pontos; III – Elogio
Individual em Boletim do Corpo de Alunos – 0,3 pontos; IV – Alunos esportistas
do colégio com medalhas de bronze – 0,3 pontos; V– Alunos esportistas do
colégio com medalhas de prata – 0,5 ponto; VI – Alunos esportistas do colégio
com medalhas de ouro – 1 ponto; VII – Promoção aos Postos e Graduações da
Hierarquia Escolar – 2,0 pontos; VIII – Prêmios Educativos: 3º lugar: 0,5
pontos / 2º lugar: 1 ponto e 1º lugar: 2 pontos; IX – Alunos Notas Dez – 1,0
pontos; X – Aluno destaque – elogio individual em Boletim do Corpo de Alunos. (Colégio Militar do Corpo de Bombeiros Unidade I, 2018b)
A comemoração do bom desempenho das escolas
militarizadas não visibiliza todos os elementos discutidos até aqui: qual o
lugar do pedagógico? De que modo as práticas pedagógicas têm sido reescritas na
lógica da disciplina, da hierarquia e da organização militares? Que espaço de
autonomia os docentes têm para o desenvolvimento do trabalho pedagógico? Além
disso, há invisibilidade das desigualdades sociais, e a disciplina é vista como
solução para um problema de criminalização da pobreza, de modo que os processos
seletivos e a cobrança de taxas escolares produzem exclusões e reforçam a
meritocracia. Nesse sentido, é preciso reconhecer que a escola passa a ser “dos
adaptados”, dos “selecionados”, excluindo todos aqueles que não se encaixam no
perfil desejado como é o caso, por exemplo, dos estudantes que se encontram em
defasagem idade/série. A instituição que passa a obter melhores resultados nas
avaliações de larga escala, é profundamente alterada no processo de
militarização.
Considerações finais
Diante
dos resultados desta pesquisa, destaca-se que o que tem mobilizado as Redes de
Ensino do Maranhão a firmarem parceira com as corporações militares é a
possibilidade de “resolverem” a dita “qualidade” da educação em escolas
situadas em regiões de vulnerabilidade social, o que empalidece uma discussão
mais aprofundada sobre desigualdades sociais na Contemporaneidade. A gestão
militarizada dá o tom das funções da escola, bem como dos contornos
“pedagógicos”, que são baseados em disciplina, hierarquia, organização e
performatividade, por meio dos indicadores educacionais.
O estudo trata, ainda, das motivações de escolha das
escolas para se tornarem militarizadas. A maior parte dos entrevistados
mencionou que o que influenciou essa escolha foi a questão da vulnerabilidade
social (presente nos locais em que se encontram as escolas) e do seu desempenho
nos rankings educacionais.
Pode-se dizer que as escolas militarizadas no Maranhão
surgem como uma forma de controle da violência e da criminalidade em alguns
bairros de periferia, mas excluem grande parte dessa periferia do cotidiano
escolar, por meio dos seus processos seletivos, cobrança de taxas e exclusão
dos alunos por indisciplina e/ou comportamentos incompatíveis com as normas das
escolas. O processo seletivo para ingresso, a lógica meritocrática, o cancelamento
e a transferência das matrículas acabam por inverter a lógica da escola
pública, laica e gratuita para todos(as). Compreender as implicações dessas
parcerias na área da educação é fundamental na construção de uma sociedade mais
justa e igualitária.
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[i] Mestre em Educação pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) (2021). Doutorando em educação
pela Unisinos.
[ii] Doutora em Educação pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2011). Professora e pesquisadora do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos.
[3] As 216 escolas implantadas pelo PECIM somadas as 259 escolas
contabilizadas pela pesquisa de (Sena, 2021), mais 15 implementadas desde 2021
pelo CBMMA e 10 pela PMMA, totalizam 500 instituições de ensino cívico-militar.
Importa dizer que o PECIM não foi o foco do presente estudo.
[4] Importa dizer que o tema da investigação que originou o artigo
não foi a vulnerabilidade em si, tema que vem sendo estudado a partir da sua
historicidade por vários pesquisadores, tais como: Martuccelli (2017), Martí
(2006), Abramovay et al. (2002), Monteiro (2011), entre outros.
[5] Antes desta semântica, Martuccelli (2017) apresenta duas outras
semânticas sócio-históricas do termo vulnerabilidade: a exclusiva, visível na
antiguidade ocidental – nessa época, a vulnerabilidade era excluída de qualquer
valor moral ou político –; e a vulnerabilidade moral, percebida na Idade Média,
que se apresenta com um forte valor moral e um fraco significado político.
[6] O Bolsa Família foi instituído em 2003 com o objetivo de
“contribuir para a inclusão social de milhões de famílias brasileiras premidas
pela miséria, com alívio imediato de sua situação de pobreza e da fome.”
(Campello & Neri, 2013, p. 17), mas em 2021 foi extinto e “com um discurso
pautado na não dependência, Bolsonaro criou o auxílio Brasil” (Germann &
Medeiros, 2022, p. 47478).