Artigo
O cuidado como
direito público: desafios da docência na creche
El cuidado como derecho público: desafíos de la
enseñanza en la guardería
Care as a public right: challenges of teaching in day
care
Daniela Guimarães[i]
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, RJ, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-7358-230X
Recebido: 12/10/2022
Aceito: 03/01/2023
Publicado:
13/01/2023
Linhas
Críticas | Periódico científico
da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil
ISSN: 1516-4896 |
e-ISSN: 1981-0431
Volume 29, 2023
(jan-dez).
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas
Referência
completa (APA):
Guimarães, D. (2023). O cuidado como direito público: desafios da
docência na creche. Linhas Críticas, 29, e45380. https://doi.org/10.26512/lc29202345380
Link alternativo:
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/45380
Licença Creative Commons
CC BY 4.0.
Resumo: Este trabalho é fruto de uma pesquisa
institucional que visa compreender os sentidos e desafios da docência na
educação de bebês e crianças até 3 anos no contexto da creche, tendo como viés
metodológico a pesquisa-formação. A partir do diálogo entre 18 professoras de
diferentes instituições cariocas, emerge a discussão acerca do cuidado como
direito público, na tensão com a compreensão historicamente construída da
creche como lugar de tutela e do cuidado num plano privado. Na pesquisa,
destacam-se reflexões sobre as fronteiras entre o cuidado doméstico e o cuidado
coletivo num movimento atento, relacional e profissional.
Palavras-chave: Creche. Cuidado. Direito.
Resumen: Este trabajo es el resultado de una investigación
institucional que tiene como objetivo comprender los significados y desafíos de
la enseñanza en la educación de bebés y niños hasta los 3 años en el contexto
de la guardería, teniendo como sesgo metodológico la investigación-formación.
Del diálogo entre 18 docentes de diferentes instituciones de Río de Janeiro,
surge la discusión sobre el cuidado como derecho público, en tensión con la
comprensión históricamente construida de la guardería como lugar de tutela y
cuidado en un plan privado. En la investigación se destacan reflexiones sobre
los límites entre el cuidado doméstico y el cuidado colectivo en un movimiento
atento, relacional y profesional.
Palabras
clave: Guardería. Cuidado. Derecho.
Abstract: This work is the result of an institutional research
that aims to understand the meanings and challenges of teaching in the
education of babies and children up to 3 years old in the context of the day
care center, having as a methodological bias the research-training. From the
dialogue between 18 teachers from different institutions in Rio de Janeiro, the
discussion about care as a public right emerges, in tension with the
historically constructed understanding of daycare as a place of guardianship
and care in a private plan. In the research, reflections on the boundaries
between domestic care and collective care are highlighted in an attentive,
relational and professional movement.
Keywords: Child Care Center. Care. Law.
Introdução
No campo da Educação Infantil, é recorrente a tensão
entre a garantia do direito das crianças à educação pública e a proposição de
políticas que indicam a supressão deste direito. Nesta linha, Nunes et al.
(2011) afirmam que é frequente nas análises do percurso da Educação Infantil no
Brasil a constatação da distância entre o proposto e o realizado. De um lado, a
garantia jurídica do direito à educação, a partir de uma concepção de criança
cidadã de pouca idade; de outro, a situação de exclusão de grande parte da
população infantil do sistema educacional, fruto da pungente desigualdade
social que atravessa a sociedade brasileira.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu
artigo 53 do cap. IV, sublinha o direito das crianças à educação e o acesso à
escola pública e gratuita e, no artigo 34, expressa o direito à creche e à
pré-escola (Brasil, 1990). Também, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Brasileira (LDB), em seu artigo 5º, assevera que o acesso à educação básica
obrigatória é direito público subjetivo (Brasil, 1996). Nesta perspectiva,
educar e cuidar são assumidas como ações indissociáveis no desenvolvimento das
crianças, desde os bebês.
Como fomento ao desenvolvimento das creches no país,
o Plano Nacional da Educação (PNE) prevê na sua Meta 1 que o percentual de
atendimento à população de 0 a 3 anos atinja 50% até 2024, final de sua
vigência (Brasil, 2014). No entanto, de acordo com Coutinho (2017), há uma
série de entraves para que essa meta seja atingida, de modo especial a partir
da Emenda Constitucional 95, que congela gastos públicos, inclusive com a
educação, por 20 anos no Brasil (Brasil, 2016). Esta, dentre outras medidas,
sinaliza os limites na ampliação das vagas na creche e na garantia deste
direito já constituído. Para a referida autora, a situação é ainda agravada
tendo em vista a obrigatoriedade da pré-escola, instituída para as crianças de
4 e 5 anos desde 2009 (Coutinho, 2017). Neste cenário, a creche, segmento da
Educação Básica historicamente excluído, figura, mais uma vez, em lugar
marginal na política.
De modo paralelo ao movimento de retração do direito
à creche pela supressão das vagas e do financiamento, uma série de projetos de
lei e iniciativas parlamentares deslocam a educação dos bebês e das crianças
pequenas para a esfera privada e domiciliar. Foi aprovado no Senado Federal, em
2019, o Projeto de Lei Complementar (PLS) 466 (Brasil, 2018). O referido
projeto altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, permitindo aos
municípios e ao Distrito Federal pagar um auxílio financeiro para que famílias
de baixa renda possam matricular as crianças em creches privadas com fins
lucrativos, o voucher creche. Esta iniciativa, dentre outras, sinaliza um
movimento de privatização e consequente precarização da Educação Básica, de modo
especial a educação das crianças de 0 a 3 anos. Vale sublinhar que, pelas
indicações orçamentárias, o valor do voucher permite pagar iniciativas de baixo
custo, sem regulação de qualidade pelo Estado.
Como já afirmado, essas políticas colocam em risco a
educação pública como direito, o que destitui as crianças, desde bebês, da
experiência com a pluralidade, a convivência social mais ampla, o coletivo.
Essas questões trazem também implicações para a compreensão da docência na
creche no que diz respeito à profissionalização do professor e da professora.
Muitos estudos, tais como os de Cerisara (2002) e Tiriba (2005), mostram que a
docência na 1ª etapa da Educação Básica constitui-se no feminino,
desprestigiado, em nossa sociedade patriarcal. Também constitui-se atravessada
pelas imagens da maternidade, do higienismo, ou da docência no Ensino
Fundamental, como aponta o trabalho de Nunes (2000). O sentido do privado e
doméstico é muito presente na constituição subjetiva das professoras dos bebês.
Portanto, do ponto de vista das políticas, e também na perspectiva das práticas
com bebês e crianças pequenas, o direito público à educação e ao cuidado, a
afirmação do estatuto profissional do professor e da professora são garantias
importantes no enfrentamento das desigualdades sociais, no desvio do caminho de
políticas e práticas precárias e custodiais especialmente para as crianças
pobres.
A compreensão da educação e do cuidado como direitos
implica no rompimento com a perspectiva doméstica do trabalho pedagógico na
creche, relacionando-se com a profissionalização e formação docente para essa
atuação. Para Rosemberg (1999), a creche não foi pensada para a produção de
qualquer ser humano, mas dos filhos recém-libertos das mães escravas. A origem
da creche no âmbito da subordinação e da opressão marca suas práticas ao longo
da História. Para a autora, o desvio da perspectiva beneficente, baseada no
improviso, e na ideia da vocação para lidar com as crianças pequenas, deveria
acontecer a partir da valorização da formação e da profissionalização das
professoras.
Para Arroyo (2012), o movimento ético-emancipatório
das políticas de inferiorização que atravessam o corpo, a infância e o cuidado
passa por trazê-los para a esfera pública, superando a oposição binária entre
público e privado. Trata-se de “politizar os corpos, a reprodução, a
maternidade, o cuidado, o gênero, a raça, como componentes da condição humana
social, política” (Arroyo, 2012, p. 35).
Portanto é importante problematizar o lugar social de
bebês e crianças pequenas entre a esfera íntima, privada e familiar e a esfera
pública, especialmente a creche, compreendendo a educação e a docência na
creche numa perspectiva do cuidado como ética, como propõe Guimarães (2011), na
organização de uma Pedagogia do Cuidado, nos termos de Catarsi (2013). Para
além do direito à educação pública, é importante a garantia do direito ao
cuidado como modo de relação humana-pedagógica, atencional e responsiva com as
crianças, desde os bebês.
Na pesquisa aqui apresentada, a partir da análise dos
diálogos produzidos no contexto de uma pesquisa-formação com professoras de
bebês entre 2015 e 2019, percebemos impasses e desafios na compreensão destas
acerca de seus papéis como docentes. A pesquisa indica, na experiência das
professoras, como acontece a construção de uma perspectiva sobre si mesmas num
lugar profissional e afetivo ao mesmo tempo.
A seguir, vamos problematizar a creche a fim de
situá-la como direito dos bebês e das crianças pequenas à humanização, ao
trabalho pedagógico intencional, ao contexto coletivo que mobiliza
aprendizagens da autonomia, da alteridade, da colaboração; ou seja, espaço de
direito ao cuidado. Em um segundo momento, apresentaremos a pesquisa e os
diálogos entre as professoras que compuseram o campo, apontando as tensões na
concretização da creche como lugar do direito à experiência com o público, com
a construção da autonomia, convivência social, atravessada por intencionalidade
pedagógica.
No âmbito da Educação Infantil, vários estudos
qualificam o cuidado como dimensão importante da educação, para além da atenção
aos momentos de cuidado corporal nas rotinas (Tiriba, 2005; Barbosa, 2010;
Guimarães, 2011). Neste panorama, o objetivo deste trabalho é compreender os
desafios da docência na creche, na perspectiva do direito das crianças de 0 a 3
anos ao cuidado no plano público e de justiça.
Na creche, o cuidado como
direito
Inicialmente, tal como prescreve a LDB, vale destacar
as prerrogativas para a defesa da creche como espaço privilegiado à educação
das crianças de 0 a 3 anos, de modo complementar à educação familiar (Brasil,
1996). De acordo com Nunes et al. (2011), a opção brasileira pelo caminho educacional
como pista central na construção de uma política de atenção integral à criança
relaciona-se com uma concepção de criança cidadã desde o nascimento, ativa,
criativa e produtora de cultura. Por outro lado, ancora-se numa visão de
política pública universalista, voltada para toda a população, garantindo
direitos de todos. Neste plano, educar e cuidar são ações integradas,
concretizadas em instituições públicas, as creches, no caso das crianças de 0 a
3 anos, direito das crianças, dever do Estado, ofertadas pelos sistemas de
ensino municipais (em regime de colaboração), de acordo com a legislação
brasileira.
A partir das prerrogativas da LDB, uma série de
movimentos sociais e políticos acontecem, tendo em vista a compreensão da
especificidade pedagógica da Educação Infantil, de modo especial, da creche
(Brasil, 1996). Barbosa (2010) destaca as funções pedagógica, política e social
desta, garantindo acolhimento, direitos das mães e das crianças, e um projeto
de mobilização da sensibilidade, criatividade, ludicidade e a liberdade de
expressão de crianças e bebês. Trata-se de compreender o currículo como imersão
em experiências com pessoas e objetos, constituindo-se como narrativa de vida,
assim como interação com diferentes linguagens, em situações contextualizadas,
na contramão da proposta de atividades dirigidas.
Neste contexto, as relações entre educação e cuidado
ganham relevo. A legislação afirma a indissociabilidade entre cuidar e educar,
na função das instituições de Educação Infantil, inclusive as creches. No
entanto, as práticas indicam reiteração de dicotomias e hierarquização destas
ações. Nesta linha, o cuidado é desprestigiado na medida em que é geralmente
compreendido como dimensão da vida privada, ligado às mulheres e ao que é
doméstico. A educação assume o lugar da instrução, relação com o conhecimento
sistematizado.
De acordo com Tiriba (2005), em nossa sociedade
capitalista, urbana, industrial e patriarcal, há uma tendência à valorização da
razão em detrimento do corpo e das emoções. Essa divisão razão-corpo
expressa-se na dicotomia educar-cuidar. Neste prisma, educar relaciona-se com
ensinar, disciplinar a razão, e cuidar significa eficiência e controle do
corpo. Paralelamente, o desprestígio pelo polo da emoção e do corpo implica na
consequente desqualificação do cuidado.
Campos (1994) discute a urgência e os desafios na
integração de educação e cuidado, na superação da dicotomia
assistência-educação, o que passa pela discussão do perfil do profissional, e
pela destinação das instituições, tendo em vista enfrentar a naturalização de
um lugar assistencial, tutelar e pobre para as crianças pobres e uma proposta
pedagógica conteudista no caso das crianças de classes sociais abastadas. A
relevância da relação entre cuidado e educação coloca-se de modo especial na
discussão das especificidades pedagógicas da Educação Infantil e da
constituição de uma Pedagogia da Educação Infantil, como sugere Rocha (1999).
Diversos estudos e publicações no Brasil afirmam o
cuidado como dimensão inerente à educação na 1ª etapa da Educação Básica e, por
outro lado, inerente à toda formação humana (Kramer, 2003; Tiriba, 2005;
Montenegro, 2005). Mais recentemente, outros estudos enfatizam o cuidado como
modo de relação entre adultos e bebês, que envolve escuta, diálogo, atenção
compartilhada, disponibilidade, presença (Kramer et al., 2020).
Nesta perspectiva, Kramer (2003) afirma a urgência de
compreendermos a dimensão política do projeto pedagógico da/na Educação
Infantil a partir da consideração das crianças como cidadãs de direitos. Ou
seja, “as políticas de infância são cruciais porque a educação da criança é um
direito – não só social, mas um direito humano” (Kramer, 2003, p. 55). O
direito à educação alinha-se com o direito à saúde, ao bem estar, às
diferenças, e também com o reconhecimento do pertencimento das crianças a
diversas classes sociais, vivendo muitas vezes situações de desigualdade que
precisam ser superadas. Assim, tratamos de uma criança pública. Para além da
responsabilidade parental, há uma responsabilidade do Estado na relação com as
crianças brasileiras. Trata-se do direito das crianças à participação social,
ao convívio coletivo, partilhando o discurso que constitui a sociedade,
enunciando perspectivas a partir de um lugar social próprio.
A discussão da educação como passagem entre o privado
e o público na vida social das crianças coaduna-se com a perspectiva de Arendt
(2016). Na visão da referida autora, a ação e participação configuram a criança
como ser político, para além do protecionismo que insiste em se colocar como
forma de relação predominante, em situações em que mais do que cidadãs de
direito, as crianças colocam-se como promessas de futuro. Neste sentido,
apresenta-se o desafio da equalização de proteção e participação no cotidiano
da Educação Infantil.
Assim, o direito é compreendido também como
responsabilidade social. Para Arendt (2016), a escola, e podemos entender que
desde a creche, não é o mundo, mas a instituição que se interpõe entre o
domínio privado, do lar, e o mundo, tendo em vista a experiência da transição
da criança do privado ao público. Nesta perspectiva, o adulto-professor é
aquele que assume a responsabilidade coletiva sobre o mundo; ou seja,
constitui-se como autoridade na relação com a criança, na mediação entre ela e
o mundo. No contraponto do conservadorismo e numa possível manutenção estanque
da ordem social, a ação mediadora adulta acontece no plano do acolhimento ao
novo. Segundo a autora, “exatamente em benefício daquilo que é novo e
revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora”
(Arendt, 2016, p. 243). Essa perspectiva da educação institucional como
oportunidade de renovação de um mundo comum pelo acesso a ele que promove a
cada nova criança que nasce, fortalece a importância da sua dimensão pública.
Na mesma linha, se compreendemos o cuidado em seu
estatuto próprio, como modo de relação atencional e dialógica, consideramos
também o cuidado como direito. Tal como mostra a pesquisa de Kramer et al.
(2020), a partir da escuta de professores de Educação Infantil, o cuidado pode
ser compreendido como ofício, próprio da função exercida no desempenho da
atividade profissional docente com responsabilidade e responsividade, em
presença. Portanto, cuidar é ser presença com os bebês, escutar, observar, agir
relacionalmente, o que qualifica as ações educativas.
Nas palavras das professoras, o
desafio do cuidado como direito público e da docência como profissão
A pesquisa institucional que gerou esse trabalho
aconteceu entre os anos 2016 e 2019, sob o viés metodológico da
pesquisa-formação, alinhada com a perspectiva da pesquisa-intervenção. Tal como
propõe Castro e Lopes (2008), conhecer e agir interligam-se na investigação em
Ciências Humanas. Ao mesmo tempo em que o conhecimento é produzido, a realidade
é alterada. Nessa pesquisa, a partir de encontros sistemáticos quinzenais com
grupos de professoras de bebês, buscamos investigar quais as especificidades do
trabalho pedagógico no contexto da creche, tendo em vista suas experiências que
emergiam nos discursos e diálogos empreendidos. Ao mesmo tempo em que proferiam
seus enunciados acerca da prática, as professoras refletiam, perguntavam-se
sobre suas experiências, trocavam impressões e alteravam seus modos de ver a si
mesmas e o trabalho com crianças e bebês.
Ao longo de quatro anos da pesquisa, houve a formação
de 3 grupos, cada qual composto por 6 docentes, todas mulheres, entre 25 e 40
anos, licenciadas em Pedagogia, atuantes com bebês e crianças de até 3 anos, em
diferentes creches públicas no Rio de Janeiro. Ou seja, ao todo, 18 professoras
participaram do estudo. Com cada grupo houve a realização de 6 encontros. Cada
encontro teve 3 horas de duração e foi gravado, transcrito e analisado, tendo
em vista os sentidos pregnantes sobre a docência na creche. O material
discursivo foi organizado em categorias, de acordo com os diferentes conteúdos
que se constituíram nos diálogos. Neste movimento, destacaram-se as discussões
sobre cuidado corporal e cuidado como ética; os desafios do planejamento na
creche e a tensão entre o doméstico e o profissional na docência com bebês e
crianças de até 3 anos.
Os encontros aconteciam quinzenalmente na
Universidade. As professoras dos dois primeiros grupos foram participantes do
Curso de Especialização em Docência na Educação Infantil, realizado
anteriormente em diferentes universidades públicas, a partir de convênio com o
Ministério da Educação e Cultura (MEC). As professoras que participaram do
terceiro grupo eram integrantes do quadro de profissionais de uma Escola de
Educação Infantil que pertence a uma universidade pública fluminense. Ou seja,
todas as professoras envolvidas na pesquisa, em todos os grupos, participavam
de processos de formação continuada, o que garantia um chão comum de discussões
e atualização das referências teóricas no campo da Educação Infantil. As
professoras dos primeiros grupos foram contactadas por e-mail, a partir do
banco de dados do Curso de Especialização. As professoras do terceiro grupo
foram contactadas a partir de relações de trabalho dentro da própria
Universidade. Todas assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
concordando que seus depoimentos pudessem ser publicizados, e seus nomes
alterados, tendo em vista manter seu anonimato na pesquisa.
Os encontros disparavam o diálogo e a reflexão entre
as participantes a partir da seguinte questão: qual a especificidade do
trabalho pedagógico-educacional com bebês e crianças até 3 anos na creche?
Quais os desafios desse trabalho? O movimento investigativo acontecia de modo
paralelo à reflexão crítica sobre si mesmas e sobre o trabalho desenvolvido, em
situações em que a pesquisadora buscava desviar do lugar de saber, dar
respostas, resolver dilemas, colocando-se como problematizadora dos discursos
emergentes.
Para Alves (2015), a pesquisa-formação rompe com a
relação tradicionalmente hierárquica entre Universidade e Educação Básica,
estabelecendo possibilidades de diálogo, reflexão conjunta, alteração de
fazeres a partir do cotejo de diferentes pontos de vista sobre as práticas. Nesta
perspectiva, os encontros quinzenais com cada grupo de professoras
possibilitavam tanto a compreensão dos desafios da docência na creche, como
mobilizavam as reflexões e alterações de visões das professoras sobre o
trabalho pedagógico cotidiano.
A perspectiva da Filosofia da Linguagem, desde o
trabalho de Bakhtin (2003), também foi mobilizadora na compreensão do processo
da pesquisa. Assim, o percurso investigativo-reflexivo foi marcado pela
experiência alteritária e pelo cotejo entre diferentes pontos de vista. Os
enunciados das professoras colocavam-se como elos na cadeia discursiva
constituída sobre a docência com crianças de 0 a 3 anos. Os encontros
aconteciam como oportunidades formativas no sentido da formação discursiva,
produção de reflexões e deslocamentos, a partir de relações dialógicas.
Ao mesmo tempo em que se construía a compreensão dos
sentidos da docência pela experiência narrada pelas professoras, esses sentidos
eram dilatados, transformados e revistos na troca entre pares. As professoras indagavam-se
mutuamente sobre os porquês de suas ações com as crianças, organizavam os
argumentos, reviam os caminhos da prática, construíam e reconstruíam
intencionalidades. Os trechos longos das interlocuções expostos neste trabalho
evidenciam a cumplicidade entre as docentes, a reflexividade promovida pelo
movimento discursivo, o papel organizador e provocador do pesquisador. Vale
sinalizar que seus usados neste trabalho são fictícios, tendo em conta o acordo
oficial firmado com elas em Termo de Consentimento à participação na pesquisa.
A pesquisadora é a própria autora deste trabalho.
No plano das análises do material discursivo, chamou
a atenção, inicialmente, a tensão entre o assistencialismo e o direito das
crianças à creche a partir da experiência da docência. Em alguns momentos, as
professoras se perguntam “até que ponto nós saímos mesmo da assistência
(tutelar) para o direito das crianças?”, referindo-se às situações em que
passam horas da rotina fazendo penteados solicitados pelas mães, não permitem
que os bebês e as crianças corram para não se machucarem, dentre outras medidas
que atropelam possibilidades de expressão. Assim, a tensão entre a docência
protecionista e a docência como ampliação de ações e sentidos de bebês e
crianças pequenas destacou-se como categoria importante em vários encontros dos
três grupos de professoras que compuseram a pesquisa:
A
qual cuidar vocês se referem? (Pesquisadora)
Esse
cuidar mesmo da proteção, de mãe… De filho, como filho. (Irany, 30 anos, professora)
Por
mais que tenha uma concepção pedagógica, mas esse cuidado de mãe ainda tá… E às
vezes limita a criança de ter algumas experiências, a gente sabe que vai ajudar
no desenvolvimento, mas a gente… Assim, lá na minha unidade a gente até
consegue fazer algumas coisas até (…) mas em alguns momentos que as pessoas têm
muito aquela questão do medo de se machucar, a mãe não vai gostar, vários
momentos. (Maria, 35 anos, professora)
Em
que lugar está essa criança, né? No olhar desse professor, quem é a criança pra
esse professor? Como ele se vê nessa relação? Vocês tão falando do lugar da
maternidade, da proteção, eu acho que isso é muito importante pra gente
entender a construção dessa docência, não é? (Pesquisadora)
Então,
essa questão da proteção eu sofri um bocado com o berçário no parquinho, né? Eu
era a que protegia, tive que desconstruir isso na escola. Por mim, o berçário
não descia descalço, correndo… não descia no escorrego, botava no tatame
fofinho pra eles ficarem só ali, mas as outras professoras me instigaram (…)
então assim é desconstruir mesmo, aí eu vi que os pequenininhos de um ano se
misturando com os cinco anos e meio, os maiores tomavam conta dos menores,
brincavam com eles. (Raíssa, 38 anos, professora)
E
tem mais… o berçário não participa de festa. (Maria, 35 anos, professora)
É
verdade. (Raíssa , 38 anos professora)
Eu
consegui assim que eu entrei na pós, a primeira coisa que eu fiz foi quebrar
algumas regras, porque eu tinha muita essa questão da maternidade, né? Então eu
assim, tinha muito aquela coisa de proteção e quando eu vim fazer a pós, logo
nos primeiros meses eu comecei a refletir e aí estava no berçário na creche que
eu trabalhava, e assim o cuidado tinha que ser aquela coisa… Aí comecei a
conversar com a minha amiga que me indicou essa creche aí, ela falou “María,
por favor, não vai inventar moda aqui” porque era uma creche lá no Norte
Shopping e o pessoal é de poder aquisitivo um pouco alto e as mães elas eram
super exigentes, como se nós fôssemos empregadas delas , uma coisa
insuportável… Aí teve uma festa “Ah, o berçário não vai participar, a gente vai
levar o bolo na sala” aí falei pras meninas “vamos trocar as fraldas dessas
crianças que a gente vai pra festa”, daqui a pouco quando eu abri a porta os
bebês começaram a engatinhar pela creche toda, olha foi uma… A diretora tirou
foto, se eu conseguir essas fotos eu trago, as crianças engatinhando pelo
refeitório o pessoal desesperado e aí quando as crianças viram o bolo, se
sujaram, todas. (Maria , 35 anos, professora)
Então
acham que a criança correr ou percorrer a creche é descuido? (Pesquisadora)
Da
nossa parte, a gente acha que é o cuidado pedagógico, né? Porque a gente tá
cuidando pedagogicamente, a outra quer cuidar é… Aquele cuidado de proteção e
nós queremos cuidar pedagogicamente, deixar eles experimentarem. (María, 35
anos, professora)
Entre o que as professoras chamam de “cuidado
pedagógico”, que possibilita a expansão dos bebês, e o “cuidado de proteção”,
que restringe suas possibilidades, podemos refletir sobre o lugar do adulto nas
relações pedagógicas. Quais as fronteiras entre o protecionismo, impedimento da
apropriação do mundo por parte dos bebês e das crianças, e a atenção conjunta,
promotora de segurança nas relações? Nas situações em que é garantido aos bebês
o direito ao movimento livre acompanhado pelo olhar atento dos adultos,
constitui-se a autonomia e confiança deles em si mesmos.
Falk (2004) afirma a importância do não
intervencionismo nas atividades dos bebês e na garantia de suas conquistas
plenas, o que não significa abandoná-los, tendo em vista que a qualidade da
observação, trocas de olhares, comentários verbais e compartilhamento de
alegrias constituem-se como presença, e contribuem na regulação do movimento
dos bebês, confirmando que estão sendo considerados.
Neste prisma, Saddy (2017) propõe a articulação da
perspectiva do cuidado como ética com o conceito de atenção conjunta. De acordo
com a autora, “desloca-se o cuidar como técnica localizada em um cuidador e
dirigida a um objeto de cuidado, para uma atitude atenciosa que envolve ambos”
(Saddy, 2017, p. 69). Ou seja, “cuidar de alguém é estar atento ao que acontece
entre os dois” (Saddy, 2017, p. 69). Assim, o cuidado coloca-se como atitude
conjunta, responsiva, de responsabilidade e resposta do adulto na relação com
as crianças, desde os bebês. Ao mesmo tempo, a atenção coloca-se não como
atributo individual, mas como ação relacional, afetando o bebê e o adulto,
provocando conexão e compreensão mútuas. O cuidado atencional concretiza-se na troca
de olhares, sorrisos, nos gestos partilhados, na disponibilidade corporal.
Em consequência, podemos afirmar o cuidado como
direito, no sentido do direito à convivência no espaço coletivo e público com
uma presença adulta profissional atenta, numa intencionalidade pedagógica
mergulhada na atenção conjunta. Trata-se de um movimento não intervencionista,
mas da construção de sintonia afetiva, no incremento da expansão social dos
bebês.
Uma questão destacou-se fortemente no trecho
transcrito acima quando as professoras apontavam o modo pelo qual eram
percebidas pelas mães. Diziam “elas eram super exigentes, como se nós fôssemos
empregadas delas”. Essa perspectiva coaduna com uma profissão construída no
feminino, ocupada, muitas vezes, por mulheres negras, historicamente
relacionadas com o colonialismo, a subalternidade. Quando eram reconhecidas e
se sentiam “como empregadas” das mães na creche, estava em jogo o lugar
doméstico para onde muitas vezes é deslocada a docência na educação dos bebês,
principalmente em contexto de pobreza e quando as professoras são pretas. Vale
sublinhar que os modelos domésticos de educação das crianças pequenas em
contextos de pobreza e desigualdade social aproximam-se dos modelos coloniais,
autoritários e antidemocráticos, ensejando resistência e luta. No caso da
Educação Infantil, o reconhecimento da profissionalidade docente e do direito
ao cuidado numa dimensão pública são caminhos nesta direção.
De acordo com hooks (2017), para o povo preto, a
educação é uma luta anticolonial e o ato de ensinar neste contexto é um modo
fundamental de resistir a todas as estratégias brancas de colonização racista.
Nesta pesquisa, mães pretas e brancas eram racistas com professoras pretas,
reiterando lugares sociais de opressão. Para hooks (2017), educar é um ato de
transgressão a uma estrutura que oprime alguns corpos e reforça a dominação.
Essas questões ganham especial contorno nas narrativas das professoras que
compõem esta pesquisa. Narrar suas experiências coloca-se como forma de estranhar
práticas racistas, ainda que não as denominem desta maneira; e a educação dos
bebês e das crianças pequenas no contexto público e coletivo oportuniza espaços
de liberdade, de fazer a história de uma nova maneira.
Neste caminho, ainda sobre o cuidado protetivo e a
relação com as famílias, outras nuances se colocam.
Esse
lugar… Essa questão das famílias de certa forma encaminha esse trabalho, acho
que influencia até as rotinas… Você tá falando isso, tô pensando aqui em uma
outra questão, não sei se sai do foco que a gente tá falando, mas que até essa
questão do cuidar, né? Eu estava conversando isso com as gestoras agora à
tarde, que lá a gente tem uma cultura, que o banho ele é dado à tarde, né? Por
causa das famílias, porque as crianças têm que sair na parte da tarde todas
penteadas, arrumadas e tal… Elas têm que sair impecáveis, então assim as
auxiliares… olha elas fazem assim com excelência o trabalho delas nesse sentido
porque elas penteiam assim vinte cabelos, eu não dou conta acho. (Glaucia, 39
anos, professora)
Percebemos que as fronteiras entre o cuidado
profissional e o cuidado materno/familiar estão em jogo nesta enunciação.
Parece que as professoras se colocam esse desafio de romper com as expectativas
maternas, enfrentando a perspectiva alteritária de suas relações com os bebês e
com as famílias. Trata-se de explicitar a possibilidade de considerar os bebês,
as rotinas próprias da creche, de maneira diferente do que as famílias
consideram, sem que se trate de um modo desqualificado.
Podemos dizer que o bebê se constitui subjetivamente
entre a esfera privada e a pública nas relações com o cuidado profissional das
professoras e o cuidado familiar, neste movimento de passagem do doméstico ao
social mais amplo, que configura um direito, direito à socialização.
Outros estudos mostram diferentes faces das
ambiguidades na consideração da creche em sua qualidade pública e social. Nunes
(2019) afirma que, em suas investigações, expõe-se a creche como equipamento de
utilidade das famílias. Muitas vezes, se a mãe não trabalha, as profissionais
entendem que não há o direito da criança. Quando as crianças perguntam pela
mãe, é frequente a resposta “foi trabalhar”, mesmo que as mães não trabalhem.
Ou seja, o direito ao cuidado coletivo na creche é ameaçado pelo atravessamento
destas contradições e tensões entre direito das famílias e direito de bebês e
crianças pequenas.
No plano dos diálogos que tocam a questão da tensão
entre doméstico e profissional, destaca-se a intencionalidade pedagógica como
marca do saber-fazer docente na creche, o que se estabelece como o ofício do
professor de bebês, marcado pelo cuidado.
E
qual a diferença do que acontece em casa, a mãe também tá mediando, a gente,
né? A mãe também lê história, mas você promove espaços ricos pro seu filho,
qual é a diferença? (Pesquisadora)
É
que a gente tem uma intencionalidade, né? Não coloca aquele espaço porque achou
que ficou mais bonitinho, mais decoradinho colocar assim, colocar assado, a
gente preparou aquele espaço pensando na intencionalidade… Uma vez lá na turma
ano passado a gente achou que eles gostavam muito de um livro especifico e aí a
gente pegou o livro e a gente fotocopiou cada página e fez um varalzinho, e aí
aquilo teve uma proposta específica, eles viram a história, reproduziam, contavam
outra… Tudo que acontecia dentro da sala é intencional, essa é a principal
diferença entre o espaço doméstico e o da escola. (Raissa, 38 anos, professora)
Ongari e Molina (2003), numa investigação sobre a
qualidade profissional das educadoras de bebês, explicitam a importância da
discriminação dos papéis de educadora e mãe na construção da profissionalidade
docente na creche. Destacam que, embora o componente afetivo seja central na
atuação profissional das educadoras, é fundamental que seja assegurada a
dimensão coletiva e grupal do relacionamento e o equilíbrio do comportamento em
relação a todas as crianças. Assim, o afeto da educadora expressa-se em
variadas formas, tais como, saber observar os bebês, intuindo e compreendendo
suas demandas, compartilhar com eles escolhas e conquistas, alegrar-se com seus
progressos, escutá-los, aprender suas predileções, encorajar a autonomia,
respeitar seus tempos e ritmos subjetivos, entre outras. Entendemos que essas
modulações afetivas constituem-se como modos de cuidar.
Além disso, no campo da Educação Infantil, coloca-se
a ideia de uma atuação indireta do professor e da professora, que se constrói
no que pode ser denominado de uma Pedagogia do Contexto. Como aponta Fortunati
(2009), neste cenário, espaços, tempos, materiais e gestão das crianças são
pensados previamente, refletidos na ação e alterados continuamente. Trata-se de
ampliar oportunidades de aprendizagem e interação das crianças entre si, delas
com o ambiente e com a cultura.
Quando a professora narra a experiência do varal de
história, apresenta a construção de um contexto para a interação dos bebês. É o
planejamento de oportunidade para aprendizagens, sem resultado pré-definido,
sem ponto de chegada determinado antes da ação dos bebês.
É,
e assim eu tinha um cuidado excessivo em relação àqueles… Desse tamanhozinho,
né? Aí subia as escadas, descia segurava a mão de um, segurava a mão de outro,
é uma coisa da minha história como professora, vim de uma escola de excesso de
zelo pra não se machucar, pra não cair, era muito marcante, então quando fui
com os bebês, eu levei isso comigo, só que as crianças elas vão burlando, né? E
na co – docência eles viam em todas as professoras alguém que podia permitir a
amplitude das possibilidades deles, aí às vezes falava que não e aí a outra
professora “Vai, vai”, subia e ainda me chamava “Aqui Raissa, tô aqui em cima”.
(Raissa, 38 anos, professora)
Interessante
a gente pensar a função da docência numa turma de bebês, né? Então assim… E aí
eu ficava pensando “Meu Deus, amanhã é dia de tá lá com os bebês e qual é a
proposta”, então sempre tentava fazer dessa forma, né? Preparava os espaços,
gosto muito dessa questão dos espaços, abria um tapetão e deixa um material ali
pra eles, às vezes deixava uns fantoches, alguma coisa pra eles manusearem,
fazia um relaxamento no final com uma música bem light, bem tranquila, e eu
assim… Mas essa docência pensando nisso, eu acho que é a gente compartilhar
esse espaço junto com eles, todas essas vivências e essas experiências, vamos
pensar assim como um compartilhamento, eu não consigo enxergar esse adulto,
esse educador como alguém que vá ensinar algo ou… Eu acho que é o
compartilhamento, não sei se seria essa a palavra? (Glaucia, 39 anos,
professora)
A intencionalidade coloca-se nas ações indiretas do
professor, na capacidade de organizar espaços, observar ativamente, agir e
dispor contextos a partir da atenção aos movimentos dos bebês, num caminho
pedagógico mais centrado no acompanhamento destes movimentos do que na previsão
de seus resultados ou performances. Podemos dizer que neste percurso há a
construção de uma Pedagogia do Cuidado, no sentido da reflexividade das ações
pedagógicas e da dimensão dialógica dessas ações.
Considerações Finais
A trajetória da pesquisa permite-nos afirmar que,
além do direito à ampliação das vagas na creche, na direção do que institui o
PNE, é necessário garantir o cuidado como direito público, direito dos bebês
aos ambientes públicos e coletivos de socialização, escuta, diálogo, atenção,
para além da esfera doméstica e privada (Brasil, 2014). Esse movimento implica
na tensão em relação às expectativas construídas sobre a docência e o lugar
social do profissional da educação na creche. Assim, a pesquisa indica a
importante modulação do afeto numa dimensão profissional por parte da
professora de bebês, além da perspectiva do cuidado como atenção conjunta, um
modo de presença e disponibilidade que se concretiza entre
adultos-professoras e bebês ou crianças pequenas. Trata-se de uma intencionalidade
pedagógica indireta, que acontece na organização de contextos, no cuidado
responsivo.
Nesta pesquisa, identificamos tensões na compreensão
da criança pública, em contraposição à perspectiva da criança restrita ao
domínio privado do lar, nos diálogos travados com as professoras. As seguintes
questões eram recorrentes nos discursos: como deslocar-se do lugar da
maternagem para o lugar profissional que envolve cuidado e afeto? Como desviar
da visão de si mesmas como substitutas dos cuidados familiares para a visão e
implementação de práticas de complementaridade e parceria com as famílias? Como
caminhar entre a perspectiva protetiva-tutelar, individualizante e privatista
na relação com os bebês para a proteção que os encaminha na direção da autonomia?
Esses questionamentos contribuem na reflexão do papel da creche como espaço
público de direito das crianças, direito à ampliação de laços sociais, para
além dos familiares e incremento de suas capacidades sociocomunicativas.
No cenário contemporâneo, diante da grave crise
econômica e social advinda da instauração da pandemia associada ao Corona
Vírus Disease (covid-19), novas questões foram colocadas no que se refere
ao cuidado como direito público. Qual a responsabilidade do Estado na gestão da
vida das crianças pequenas, frente à ameaça da saúde e integridade física? O
direito à educação e, portanto, à creche e pré-escola, foi suficiente para
resguardar e cuidar das crianças de 0 a 3 anos no contexto pandêmico? Que
outras esferas públicas devem comprometer-se com a integridade emocional e
física de bebês e crianças pequenas? O isolamento instituído pela pandemia
acirrou as desigualdades já presentes na sociedade brasileira. No caso das
crianças pequenas, as famílias pobres ficaram especialmente desassistidas com o
fechamento das creches e escolas, espaços privilegiados de socialização. Ao
mesmo tempo, a demora na liberação da vacinação para bebês e crianças exacerbou
a exclusão de cada uma delas da vida social mais ampla.
Na linha do que propõem Kramer et al. (2020), a
situação atual convoca-nos a sublinhar o ECA, sobretudo quando afirma o direito
das crianças à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária. Para além da educação, cada vez mais, as crianças demandam
políticas intersetoriais que garantam o direito ao cuidado. No momento atual de
crise, é fundamental trazer à tona o ECA de 1990, tendo em vista garantir a
perspectiva das crianças como sujeitos públicos, de direitos. No mesmo
movimento, é importante não perder de vista as políticas públicas voltadas à
justiça social, contra a desigualdade, a exclusão, o preconceito. Como
desenvolver políticas intersetoriais para a população infantil, especialmente a
população infantil pobre brasileira, tendo em vista o cuidado integral e o
cuidado como ética?
A garantia das políticas intersetoriais acontece de
modo paralelo à luta pela garantia do direito à creche como espaço público,
espaço do contraditório, da diversidade. Não é somente no meio familiar,
principalmente nas populações pobres das cidades brasileiras, que as crianças
terão garantido o direito ao cuidado como expansão de si mesmas, como atenção
conjunta, como aprendizagem da expressão e da democracia.
No que se refere à educação das crianças de 0 a 3
anos na creche, em diversos momentos da história do país, iniciativas
paliativas são implementadas, o que reitera bebês, mães/mulheres e professoras
no lugar da subalternidade. Como afirmado no início deste trabalho, atualmente,
essa situação também se agrava tendo em vista o PNE, que prevê atendimento de
50% das crianças de 0 a 3 anos até 2024, ao lado da retração dos gastos
públicos com a educação (Brasil, 2014). A ampliação do atendimento pela via
privada, com iniciativas de baixo custo e sem garantia de qualidade, é um risco
constante.
Enfim, a Educação Infantil constrói-se historicamente
no Brasil como direito ao espaço público, à qualidade relacional com os bebês e
as crianças pequenas, no contraponto em relação às práticas domésticas e
políticas marcadas pelo improviso. Privatização, educação domiciliar e arranjos
deste tipo significam grave retrocesso. No passado e no presente, é importante
observar o direito à educação pública, ao cuidado como modo relacional atento
aos bebês, o que implica promover a profissionalização das professoras também
como direito à formação. Neste trabalho, ao refletirem sobre o lugar social das
crianças, desde bebês, ao pensarem coletivamente sobre suas funções docentes,
as professoras puderam fortalecer a perspectiva ética, sutil e responsável do
trabalho pedagógico cotidiano na creche.
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[i] Doutora em Educação pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2008). Professora Associada
do Departamento de Didática da Faculdade de Educação da Universidade Federal do
Rio de Janeiro.