Artigo
Migrantes
haitianos na educação de jovens e adultos no Brasil
Migrantes haitianos en educación de jóvenes y adultos
en Brasil
Haitian migrants in youth and adult education in
Brazil
Dominique Antoine[i]
Universidade Estadual de Londrina
Londrina, PR, Brasil
antoine.dominique1982@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-0008-3865
Wagner Roberto do Amaral[ii]
Universidade Estadual de Londrina
Londrina, PR, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-8555-5915
Contribuição
na elaboração do texto: autor 1 - aplicação de entrevista, análise de dados,
sistematização do texto; autor 2 - orientação da pesquisa, colaboração na
análise dos dados e sistematização do texto.
Recebido em: 31/08/2022
Aceito em: 28/11/2022
Publicado
em: 05/12/2022
Linhas
Críticas | Periódico científico
da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil
ISSN: 1516-4896 |
e-ISSN: 1981-0431
Volume 28, 2022
(jan-dez).
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas
Referência
completa (APA):
Antoine, D. & Amaral, W. R. do. (2022). Migrantes haitianos na
educação de jovens e adultos no Brasil. Linhas Críticas, 28,
e44846. https://doi.org/10.26512/lc28202244846
Link alternativo:
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/44846
Licença Creative Commons
CC BY 4.0.
Resumo: Trata-se de uma pesquisa qualitativa que tem por
objetivo analisar as intenções e expectativas dos migrantes haitianos na
modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Brasil, município de Cambé,
Paraná. Os dados evidenciam que as motivações iniciais dos educandos para
ingresso na EJA são: a proficiência da língua portuguesa, ter um diploma
internacional e estudar numa escola gratuita. Identificam-se dois perfis desses
educandos na EJA: os recém-chegados ao Brasil, que buscam a aprendizagem da
língua portuguesa, e os que vivem há mais tempo neste país e aspiram a concluir
o ensino médio para ingresso na universidade, objetivando uma ascensão social.
Palavras-chave: Migração haitiana. Educação de jovens e adultos. Política
educacional.
Resumen: Se trata de una investigación cualitativa que tiene
como objetivo analizar las intenciones y expectativas de los migrantes
haitianos en la Educación de los Jóvenes y Adultos (EJA) en Brasil, municipio
de Cambé, Paraná. Los datos muestran que las motivaciones iniciales de los
estudiantes haitianos para ingresar a EJA son: hablar el portugués, tener un
diploma internacional y estudiar en una escuela gratuita. Se identifican dos
perfiles de estos educandos: los recién llegados que buscan aprender portugués
y aquellos que han vivido en Brasil por más tiempo y aspiran a concluir la
escuela secundaria, ingresar en la universidad, con el objetivo de una
ascensión social.
Palabras
clave: Migración haitiana. Educación de jóvenes y adultos. Política educativa.
Abstract: This qualitative research aims to analyze the
intentions and expectations of Haitian migrants in the Education of Youth and
Adult (EJA) in Brazil, municipality of Cambé, Paraná. Data show that the
initial motivations of students to attend the EJA program are: to learn
Portuguese language, get an international degree, and afford a free tuition
study. Two profiles of these students are identified in the EJA: the students
who recently arrive in Brazil seeking to learn Portuguese and those who expect
to have a longer stay in Brazil while aspiring to complete their high school
with the goal to get a college degree allowing them a social ascension.
Keywords: Haitian migration. Youth and adult education.
Educational policy.
Introdução
Trata-se de uma pesquisa realizada a nível de
mestrado na Universidade Estadual de Londrina. Tem o seu foco na questão educacional
no contexto dos fluxos migratórios, problematizando o direito à educação dos
migrantes haitianos na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA) no
Brasil, particularmente no município de Cambé, interior do estado do Paraná
(PR). O estudo pretende desvelar o percurso dos migrantes, desde as suas
vivências socioculturais nas escolas do Haiti, passando pelo deslocamento ao
Brasil até a sua inserção na educação básica via modalidade da EJA. O objetivo
é analisar as intenções e expectativas dos migrantes haitianos na EJA, quando
buscam essa modalidade de educação no Brasil.
Nota-se, no caso do Brasil, que o acesso à educação
é um direito não somente dos cidadãos brasileiros, mas também dos estrangeiros
que passam a viver neste país. O artigo 5º. da Constituição Federal Brasileira
de 1988 prevê: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país
sua inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e
à propriedade” (Brasil, 1988). Além da Constituição Brasileira, destaca-se que
a Lei n.º 13.445, de 24 maio de 2017, garante, no território
nacional, o direito de acesso à educação aos migrantes em condição de igualdade
com os nacionais (Brasil, 2017).
Desta forma, os migrantes haitianos têm
direito à educação de acordo com a legislação brasileira. O aumento da migração
haitiana para o Brasil após o terremoto de 12 de janeiro de 2010 não é sem
impacto sobre o sistema de educação brasileiro. Dutra (2014), ao realizar uma
pesquisa sobre os estrangeiros no mercado de trabalho formal brasileiro,
evidencia que o número de haitianos classificados como pessoas não
alfabetizadas aumentou 979,1% de 2012 para 2013.
Este dado evidencia que a maioria dos
trabalhadores migrantes haitianos no mercado de trabalho formal no Brasil é não
qualificada. A respeito disso, entende-se que o direito à educação desses trabalhadores
não foi respeitado em seus países de origem. Eles foram excluídos do sistema
educacional ou tiveram que se afastar da escola devido a determinantes sociais,
econômicos, políticos e culturais. Chegando ao Brasil, esses migrantes desejam
recuperar o direito à educação.
Jean Baptiste (2018) aponta que os migrantes
haitianos expressam o desejo de ir à escola. A partir desta afirmação, levantam-se
várias inquietações, tais como: o que explica esse desejo? Os migrantes
haitianos tinham esse desejo em seu país de origem? Como é o acesso à educação
escolar em seu país de origem? Qual o acesso à educação escolar nos países em
que porventura trabalharam antes de virem ao Brasil? Existe acesso à educação
para migrantes haitianos no Brasil? Tendo em vista estas reflexões, define-se,
como questão central da nossa pesquisa, a seguinte: Quais são as intenções e
expectativas dos migrantes haitianos na Educação de Jovens e Adultos no Brasil?
Os procedimentos metodológicos mobilizados
nesta pesquisa foram organizados em três momentos não lineares, sendo: revisão
bibliográfica, levantamento documental e pesquisa de campo. A revisão
bibliográfica considerou pesquisas relacionadas às temáticas da Educação de
Jovens e Adultos e migração por meio de artigos, teses, dissertações,
relatórios de pesquisa, livros e periódicos, uma vez que a consideração de
estudos já realizados nesses termos é importante para orientar a reflexão deste
trabalho.
No levantamento documental, foram considerados
os documentos oficiais e legislações brasileiras e haitianas sobre políticas
educacionais, mais especificamente sobre a Educação de Jovens e Adultos.
A pesquisa de campo foi realizada em três
momentos e por meio de três técnicas: observação não participante, observação
participante e entrevistas com roteiro semiestruturado. A observação não
participante foi realizada durante duas semanas em duas escolas públicas (uma
municipal e uma estadual) localizadas no município do Cambé, sendo uma semana
em cada escola. Além disso, realizou-se uma aproximação do campo da pesquisa
por meio de participação nas atividades na igreja da comunidade haitiana em
Cambé para observar os potenciais sujeitos da pesquisa, buscando impressões dos
migrantes quanto à EJA.
As entrevistas com roteiro semiestruturado
foram dirigidas a cinco estudantes migrantes haitianos nas etapas do ensino
fundamental e médio na EJA no período de julho a novembro de 2019. Os sujeitos
foram escolhidos como pessoas destacadas em referência às atividades que
realizam na sua comunidade e devido a seu tempo de permanência na EJA. Ressalta-se
que, a fim de preservar o anonimato dos sujeitos da pesquisa e facilitar a
compreensão do texto, serão substituídos, de forma aleatória, os nomes dos
educandos entrevistados por Tijan, Tipapa, Tinono, Tiwil e Tiga. São apelidos
fictícios comuns e usados geralmente pela camada popular no Haiti. Importante
destacar que esses nomes não têm nenhuma relação com os nomes reais dos
entrevistados. Para analisar os dados coletados, foi utilizada a técnica de
análise de conteúdo. De fato, essa análise permitiu avaliar a problemática
levantada e explicar as intenções e expectativas dos sujeitos de estudo sobre a
EJA.
Estruturado em três partes, o trabalho segue o
percurso dos migrantes haitianos, sendo que, na primeira parte, evidencia as determinações sócio-históricas da política
de educação no Haiti, enfocando ainda a existência da EJA na política de
educação do país. Na segunda parte, analisa o fenômeno migratório haitiano,
particularizando a história desse fenômeno a partir do Haiti, bem como a
migração haitiana para o Brasil. Na terceira parte, são analisados os aspectos
da trajetória histórica e legal da Educação de Jovens e Adultos no Brasil,
evidenciando as intenções e expectativas dos jovens e adultos haitianos
matriculados em cursos da EJA na região de Cambé, Paraná (PR).
Determinações sócio-históricas da política de educação no Haiti.
Como Freire (1987) afirma, a educação é um ato
político. Assim, o sistema de educação haitiano é o reflexo da natureza do
Estado e vice-versa, no sentido de que o Estado haitiano e seu sistema da
educação estão em uma relação dialética constante de produção e reprodução.
Entender o sistema educacional haitiano requer uma análise das singularidades
materiais e sociais do país através de sua história.
O Haiti nasceu de uma revolução negra em
primeiro de janeiro de 1804, sendo o segundo país independente no continente
americano (após a independência dos Estados Unidos da América, em 1776), depois da vitória do
exército haitiano sobre o exército francês de Napoleão Bonaparte. Contudo, a
revolução haitiana foi o pesadelo de todos os proprietários de escravos na
América. Teve um significativo impacto no destino colonial da França, pois foi
a mais rica colônia francesa na época. Esta revolução favoreceu o surgimento do
Estado haitiano, provocando uma ruptura com a ideia colonial europeia (Hector,
2009).
O objetivo fundamental da revolução haitiana
era a superação das relações escravistas coloniais, criando um Estado livre
(Hector, 2009). Esse ideal foi materializado no projeto de sociedade de Jean-Jacques
Dessalines, sendo líder da revolução haitiana que proclamou a independência do país.
Esse projeto de sociedade baseou-se no princípio da igualdade e liberdade para
todos, sendo como dois elementos consubstanciais e inseparáveis.
Conforme afirma Dorvilier (2012), para
estabelecer as bases desta sociedade, Dessalines constituiu a educação como uma
prioridade de seu governo, desenvolvendo leis para regulamentar o sistema. Como
resultado, a política de Dessalines foi contestada pelos generais do exército e
mulatos, que eram pessoas de ascendência
francesa e africana, os quais se tornaram a classe privilegiada da sociedade após
a independência. Dois anos depois de libertar os negros da escravidão,
Dessalines, o primeiro imperador do Haiti, foi assassinado no dia 17 de outubro
de 1806 porque queria recompensar, de maneira justa, todos os participantes da
guerra de independência.
O assassinato do imperador desencadeou a
primeira grande crise política do país. A cena política foi dominada por rivalidades
entre as elites políticas e econômicas do país pelo controle do aparelho de
Estado. Essas rivalidades levaram à divisão do país em dois Estados: a
República do Oeste sob a direção de Alexandre Pétion, um líder dos mulatos, e o
reino do norte liderado por Henry Christophe, um general negro que lutou com
Jean Jacques Dessalines pela independência do país.
A política educacional de Pétion era elitista,
partidária e nepotista. Não pretendia garantir o acesso à educação a toda a
população. As poucas infraestruturas escolares construídas sobre o seu governo
eram reservadas aos filhos de cidadãos que prestavam serviços eminentes ao
país, nomeadamente aos filhos de mulatos e aos oficiais do exército (Pierre,
2012). Porém, no Reino do Norte, Henri Christophe manteve o ideal de
independência, garantindo o acesso gratuito, obrigatório e universal à
educação, ordenando aos pais que enviassem as crianças para a escola sob pena
de punir os refratários. No entanto, com a morte de Christophe, em 1820, suas
realizações e seu projeto educacional foram destruídos em favor de uma visão
segregacionista da educação.
Jean Pierre Boyer, o sucessor de Pétion na
República do Oeste, uniu o país após a morte de Henry Christophe, adotando uma
política educacional segregacionista em detrimento do interesse geral. A visão
segregacionista da educação tomou forma quando Boyer aceitou pagar à França uma
soma de 150 milhões de francos como compensação aos antigos colonos franceses.
Para Louis Juste (2007), o pagamento desta indenização da independência
constituía um novo mecanismo de exploração da riqueza do país criado pela
França e que levava à ruína da economia nacional.
Para pagar essa dívida, o governo promulgou um
código rural (Louis Juste, 2007) que proibia os filhos dos camponeses de irem à
escola, obrigando-os a trabalhar a terra durante o período de escolarização. A
este respeito, Dorvilier (2012) afirma que a extensão do acesso à educação para
as massas camponesas teria sido uma ameaça ao desenvolvimento e consolidação da
nova classe dirigente. Como a educação exige um tempo de aprendizagem
relativamente longo, poderia impedir completamente o trabalho das massas na
agricultura, único fator de enriquecimento das elites da época.
Este panorama histórico permite compreender,
em relação à base do modelo econômico da época, que o acesso à educação para
uma maioria da população não era uma prioridade do Estado. No entanto, a
política de exclusão do governo de Boyer provocou fúria da população, motivando
o movimento de contestação dos camponeses haitianos que levou à sua queda do
poder em 1843.
O movimento popular de 1843, cujas reivindicações
incluíam garantir o acesso à educação aos filhos dos camponeses, levou à
criação do Ministério da Educação Pública e à construção de escolas públicas
nas áreas rurais do país (François, 2009). Além disso, em 1860, o governo de
Fabre Nicolas Geffrard assinou um acordo com o Vaticano que confiou em grande
parte à Igreja Católica a responsabilidade pela educação. No entanto, esta
decisão complicou a situação ao acentuar as desigualdades escolares, uma vez
que as escolas fundadas pelos representantes do Vaticano, que eram inicialmente
acessíveis aos filhos dos pais pobres, são frequentadas, atualmente, pelos
filhos das elites haitianas (François, 2009).
Sob a ditadura de Jean Claude Duvalier, nas
décadas de 1970 e 1980, o Haiti tinha um aumento de 3,4% em seu Produto Interno
Bruto (PIB). Este crescimento realizava-se num contexto de implantação da
política neoliberal que exige uma mão-de-obra mais ou menos qualificada.
Naquela época, a baixa taxa de escolarização do país não poderia sustentar esse
crescimento econômico. A este respeito, uma reforma das políticas educativas
foi considerada um meio essencial para responder às necessidades do mercado
(Dorvilier, 2012).
A reforma escolar de 1982 é considerada uma
etapa decisiva que visa modernizar o sistema educativo haitiano, separando-se
do ensino tradicional instaurado no país desde a independência para se adaptar
à nova realidade econômica do país. No entanto, mesmo após a execução desta
reforma, as taxas de escolarização, independentemente do nível de ensino, são
mais elevadas nas famílias mais ricas. Observa-se que o acesso à educação é
marcadamente desigual no país em relação à situação socioeconômica das famílias
dos alunos. Dados estatísticos mostram que, nas famílias mais pobres, a taxa de
escolarização no ensino fundamental é de 66% enquanto, nas famílias mais ricas,
é de 92% (Haiti, 2011).
Entende-se que o sistema educacional haitiano
é um produto de uma sociedade profundamente desigual associada às políticas
públicas incapazes de garantir o acesso à educação para toda a população. Diante
dessa estrutura desigual, que exclui os educandos do sistema educacional e
também de outros fatores, parte da população usa a imigração como alternativa como
evidencia, atualmente, a presença dos migrantes haitianos na Educação de Jovens
e Adultos no Brasil.
Mobilidade haitiana para o Brasil
A história da migração pode ser dividida em
três períodos no Haiti. O primeiro grande fluxo migratório haitiano é marcado
no contexto da invasão estadunidense, em 1915. O segundo período iniciou-se a
partir da ascensão ao poder do ditador Duvalier (1957-1986), reduzindo os
espaços de liberdade econômica, política e cultural da maioria dos haitianos. O
terceiro momento teve início no final da década de 1980, marcado pela transição
política pós 1986 e, também, pela vasta destruição do setor produtivo e da
economia nacional, o que conduziu o país ao status
de consumidor quase que exclusivo do mercado internacional, atendendo aos
interesses do capital.
No caso da mobilidade haitiana para o Brasil,
os debates a respeito das causas desta migração são diversos. Algumas hipóteses
levantadas destacam razões ligadas ao fechamento cada vez mais incisivo das
fronteiras da Guiana Francesa, Bahamas, EUA e Canadá, destinos considerados
privilegiados dos haitianos, onde esperam encontrar mais oportunidades de
trabalho. De outro lado, destacam-se aspectos como o crescimento econômico do
Brasil entre 2003 e 2015, as obras de infraestrutura com vistas à Copa do Mundo
de 2014 e as Olimpíadas de 2016, assim como a construção de hidrelétricas (Fernandes,
2014). Delfim (2017) e Castro (2018) consideram ainda que o terremoto que
atingiu o Haiti em janeiro de 2010 é um fator desencadeante da migração desse
país para o Brasil. Todas essas hipóteses podem ser compreendidas como causas
do fluxo migratório haitiano para o Brasil, no entanto, a reflexão sobre esse fenômeno
deve ir além desses pressupostos.
A matriz da migração haitiana para o Brasil
está inserida basicamente na constante instabilidade econômica, política e
social do país em sua trajetória colonial e histórica. As greves contínuas e
protestos populares causam atrasos no currículo e programas das escolas que
afetam o desempenho eficiente dos educandos e futuros professores, reproduzindo
ciclicamente as mesmas lacunas acadêmicas (Pongnon, 2017). Nessa lógica, o
sistema educacional haitiano produz mão de obra não qualificada com baixo custo
para o mercado mundial. É nesse contexto que o Brasil, coordenando a Missão das
Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH) em 2004, usou o
terremoto como pretexto para se apropriar da força de trabalho dos haitianos a
fim de promover a expansão do capital brasileiro.
Dessa política de migração em busca de mão de
obra barata dos países periféricos para a expansão do capital, Delfim (2017)
evidencia que o Brasil recebeu cerca 80 mil haitianos de 2010 a 2015. Segundo
dados do Ministério do Trabalho, 45 mil migrantes haitianos têm emprego formal,
especialmente no abate de animais em frigoríficos, na construção civil e no
setor de serviços.
A pesquisa de campo evidenciou que a mão de
obra da diáspora[3]
haitiana é, geralmente, não-qualificada e, como resultado, o trabalhador ganha
o salário mínimo do mercado de trabalho local. Esse salário permite à diáspora,
na maioria dos casos, reproduzir apenas a sua força de trabalho. Como evidencia
Handerson (2015), no Brasil, o salário mínimo é mínimo mesmo, comparado com o
dos Estados Unidos, Canadá ou França.
Nesse sentido, migrar para os países do
hemisfério norte é mais valorizado e prestigioso na percepção haitiana – um
sonho que nem sempre é fácil de alcançar, especialmente para migrantes não
qualificados no seu processo de escolarização. Como resultado, os países do
hemisfério sul permanecem como uma alternativa para os haitianos, sendo o caso
da diáspora haitiana no Brasil. A posição da diáspora haitiana na sociedade
brasileira, especialmente no mercado de trabalho, não facilita a realização de
seu projeto de diáspora e, no entanto, alguns migrantes cursam a Educação de
Jovens e Adultos com expectativas de mobilidade social no futuro.
Intenções e expectativas dos educandos
haitianos
Ajala (2011) ressalta que as pessoas mais
pobres têm mais dificuldade de acesso e permanência na escola, o que gera cada
vez mais um aumento de homens e mulheres pobres ingressando na EJA. Passos
(2012), por sua vez, analisa o fenômeno sob um ângulo racial. Ele observa que
55% da diferença salarial entre brancos e negros está associada à
desigualdade escolar. Aponta que a disparidade entre negros e brancos existe no
acesso à educação, permanência na escola e conclusão de rotas escolares. Como
resultado, muitos jovens e adultos negros vão à EJA para concluir o ensino
médio no intento de superar estruturas sociais desiguais da sociedade
brasileira.
De acordo com as Diretrizes Nacionais para a
Educação de Jovens e Adultos (Brasil, 2000) no Brasil, esta modalidade da
educação básica pode ser vista como uma dívida social a ser reparada para
aqueles que não tiveram acesso e/ou domínio da escrita, da leitura e dos
conhecimentos científicos como bens sociais, na escola ou fora dela, e que tenham
sido reduzidos à força de trabalho empregada na constituição de riquezas e na
elevação de obras públicas. Ou seja, a ideia central da dívida social refere-se
à noção de inclusão vinculada à função reparadora da EJA. Portanto, a função
reparadora da EJA representa a restauração de um direito negado, garantindo não
apenas o acesso a uma escola de qualidade, mas também o reconhecimento daquela
igualdade ontológica de todos.
Com base nessa premissa, compreendemos que a
função reparadora da EJA se apresentou como ideal para uma sociedade
historicamente desigual na medida em que as raízes do analfabetismo no Brasil
são de ordem histórica, social e econômica. Entretanto, apesar do ideal
proposto, o contexto hegemônico atual da política neoliberal opõe-se à noção de
universalidade na gestão das políticas públicas. Diante disso, como se poderia
pensar uma escola de inclusão e qualidade para todos dentro de um contexto
socioeconômico que visava responder unicamente à demanda do mercado?
Por certo, as reformas educacionais, através
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996) e das
Diretrizes Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos (Brasil, 2000) foram inseridas
no mundo produtivo. Sendo assim, visavam, de certo modo, a inserção dos
educandos no mercado por meio do acesso aos conhecimentos produzidos pela
chamada sociedade do conhecimento. Com base nisso, salienta-se que a política
educacional no Brasil caracteriza, hegemonicamente, os interesses e as marcas
das agências multinacionais.
Nessa perspectiva, entende-se que, na
legislação e no discurso oficial, a Educação de Jovens e Adultos, que se
destacou como instrumento de reparação da dívida social, na prática revelou sua
inadequação, pois estava diretamente vinculada às exigências das instituições
financeiras internacionais. Tais instituições consideravam a educação como um
mecanismo que deveria atender às necessidades do capitalismo mundial ao contrário
dos pressupostos apresentados nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação de Jovens e Adultos. Foi neste cenário de contradições que se configuraram
as demandas dos migrantes haitianos da Educação de Jovens e Adultos no Brasil,
particularmente nas escolas públicas localizadas em Cambé, Paraná, locus
da pesquisa que realizamos.
Um ditado popular haitiano considera a
educação escolar como a chave do sucesso. No Haiti, uma pessoa que, mesmo tendo
sucesso econômico, não concluiu pelo menos o ensino médio tem pouco prestígio
social. Assim, a escola tem uma representação simbólica de ascensão na
percepção dos haitianos.
Entretanto, quando delimitado o cenário da
pesquisa, identificam-se diversos motivos para que os educandos entrevistados busquem
a inserção na EJA. O primeiro está ligado ao fato de que esses sujeitos relatam
trazer esses sonhos de estudar no Brasil desde o Haiti, conforme identificado
no relato de Tijan:
Eu sempre quis ser um filósofo [é aquele que
conclui ensino médio] no Haiti. Trabalhava de dia e não consegui encontrar
escola à noite no Haiti. Dado que nunca é tarde para aprender, quando cheguei
ao Brasil como país estrangeiro, vou à EJA para concluir o ensino médio e ter
um diploma internacional. (Tijan)
A dificuldade de Tijan para encontrar uma
escola à noite depois do seu trabalho nos permite questionar se de fato existe
uma política de Educação de Jovens e Adultos no Haiti. Nos documentos
consultados[4],
não se encontra nenhum plano ou programa específico da Educação de Jovens e
Adultos no Haiti. Mas isso não significa que essas categorias, apesar de suas
idades, sejam proibidas de ter acesso à educação no sistema público. De fato,
não há uma política claramente definida e que leve em consideração as
necessidades pedagógicas, sociais e econômicas dessa categoria de alunos, ocasionando
sérios problemas para que possam conciliar o trabalho e o estudo. Talvez seja
por isso que Tijan não encontrou uma escola de Jovens e Adultos no Haiti para
estudar, apesar de sua vontade de concluir o ensino médio, depois de seu dia de
trabalho. Nessa perspectiva, é necessário esclarecer a posição de jovens e
adultos dentro do sistema educacional haitiano.
No que diz respeito ao Plano Nacional de Educação
e Formação (PNEF), o sistema de educação haitiano tem dois componentes.
Primeiro, um aspecto formal que engloba a pré-escola, a educação fundamental
com três ciclos, ensino médio, formação profissional e ensino superior. Em
seguida, um aspecto não formal, que reúne alfabetização de adultos, formação à
distância, centros noturnos, educação especial, isto é, educação para crianças
e adolescentes com mobilidade reduzida (Roblin, 2017).
Ao analisar os dois componentes do sistema
educacional haitiano, entende-se que o Estado não coloca a ênfase em uma política
de Educação de Jovens e Adultos. No entanto, encontram-se jovens e adultos nos
dois componentes do sistema educacional. No setor formal da educação, jovens são
considerados como surãgés scolaires, sendo alunos com idade superior a
quatorze anos no ensino fundamental. Esta categoria é geralmente encontrada em
escolas públicas e escolas privadas de baixa qualidade. Essas escolas
geralmente funcionam à noite. Os surãgés scolaires são alunos de famílias
pobres principalmente do campo ou jovens em situação de empregos domésticos.
Entende-se que a presença de surãgés scolaires no ensino fundamental provoca
problemas pedagógicos, na medida em que esta categoria de alunos está na mesma
sala de aula com as crianças. Desta forma, os resultados do campo evidenciam
que os sujeitos da pesquisa se reconheciam como surãgés scolaires
em situação de abandono e reprovação no sistema escolar do Haiti.
O relato de Tipapa aponta outros aspectos
relativos às suas intenções e expectativas na EJA que evidenciam a natureza da
gratuidade da escola no Brasil.
Quando eu estava no Haiti, meus pais não
podiam pagar a taxa de escolaridade para mim. Fui para a escola na República
Dominicana porque são gratuitas. Quando cheguei ao Brasil, aprendi que a escola
também é gratuita. Fui para educação jovens e adultos para terminar o ensino
médio. Estou surpreso com a estrutura da escola, os professores são de
qualidade e há também cantina gratuita para os alunos. (Tipapa)
A gratuidade da escola é um dos fatores que
levou Tipapa a frequentar a EJA no Brasil. No entanto, essa motivação não é um
fato isolado: está relacionada com sua trajetória escolar e seu direito à
educação negado no Haiti. Em consequência, uma vez chegado ao Brasil, decide
recuperar esse direito não atendido no seu país de origem. O relato de Tipapa
evidencia a questão da taxa de escolaridade como um obstáculo para estudar no
seu país de origem. Isso pode ser explicado porque, de fato, no Haiti, o acesso
à educação não é universal, considerando que as escolas públicas têm poucas
vagas disponíveis para a população. O não acesso universal à educação no país envolve as famílias
a fim de garantir o financiamento dos custos escolares de seus filhos. Assim, Dorvilier
(2012) destaca que o pagamento dos custos escolares representa um peso para as famílias
pobres, pois as despesas escolares anuais são estimadas em cerca de 40% de sua renda
anual.
De acordo com Censo Escolar 2010-2011 (Haiti,
2011), o setor privado representa 85% da oferta escolar no país, sendo que o
setor público é responsável por apenas 15% das escolas, o que corresponde a um
acolhimento de 22% dos alunos. Ou seja, a oferta escolar no Haiti é, em sua
maioria, privada, com uma abrangência de 78% dos alunos. A predominância das
escolas particulares destacadas no sistema educativo haitiano acentua as
desigualdades sociais e escolares e limita profundamente o acesso à educação
para as populações socialmente mais vulneráveis, considerando o caráter
mercantil da oferta escolar do setor não público, num país onde o acesso à
escola é um privilégio que depende dos capitais social, cultural e econômico
dos pais dos alunos.
A predominância da oferta escolar pelo setor
privado gera uma diversidade na escolarização do território nacional. A este
respeito, Pierre (2021) evidencia que existem, no Haiti, escolas para as
elites, escolas para as classes médias, outras escolas para as massas e que não
existe escola para a população mais desfavorecida. Convém notar que, devido ao
caráter heterogêneo do ensino nas escolas haitianas, coexistem, no sistema
educativo, escolas privadas de boa qualidade reservadas às crianças cujos pais
possuem um capital econômico, cultural ou social mais elevado; e escolas
privadas de má qualidade, frequentadas por crianças de famílias pobres.
Entende-se que o sistema educativo haitiano tem uma forma piramidal que
caracteriza a topografia da organização da sociedade. Esta formação social
desigual reforça e produz a desigualdade escolar, constituindo, em si mesma, um
obstáculo à democratização escolar.
Os sujeitos entrevistados não chegaram a
passar por nenhuma das escolas consideradas de boa qualidade no Haiti, no
entanto, durante a entrevista, Tinono afirmou: “Quando era criança, sempre quis ir à escola congregacionista, mas meus
pais não tinham dinheiro”. A escola congregacionista é privada e administrada
pela Igreja Católica. Tratam-se de instituições com uma equipe de professores
bem formados, estruturas pedagógicas e materiais didáticos apropriados, além de
acompanhamento pedagógico regular. Tudo isso se deve ao fato de que, nessas
escolas, os pais pagam regularmente as taxas de escolaridade e,
consequentemente, os professores são bem renumerados. O desejo de Tinono de
frequentar uma escola congregacionista evidencia o prestígio e a representação
dessa categoria de escolas na sociedade haitiana. Além da qualidade do ensino, elas
representam também o ideário mais ocidentalizado e determinante da posição social
e econômica dos alunos que a frequentam na sociedade haitiana.
As entrevistas evidenciam que os sujeitos da
pesquisa, ao relatarem as dificuldades para obter aprovação nos exames oficiais[5],
frequentaram escolas privadas de má qualidade. Desta forma, Tiwil relata: “Fui
duas vezes para os exames oficiais, eu não passei. O problema não era eu pois, na minha sala
haviam 30 alunos, apenas dois que tinham aprovados no exame”. Perante a isso,
é possível reconhecer que essa categoria de escola é marginalizada na
sociedade haitiana e, consequentemente, com menor índice de sucesso nos exames
oficiais.
Ao analisar o status dessa categoria de alunos no sistema educacional haitiano,
compreende-se que tenham poucas possibilidades de ascender ao ensino superior e
de encontrar um emprego melhor no futuro uma vez que a qualidade do ensino não
lhes permite ser comparáveis no mercado de trabalho. Tal expressão é reflexo de
uma sociedade competitiva em que tudo é mercantilizado, sendo que os que têm
melhores possibilidades de êxito são aqueles que possuem um capital social e
cultural legitimado pela escola.
A partir das entrevistas, destaca-se que as
intenções e expectativas dos migrantes haitianos na modalidade de EJA no Brasil
estão vinculadas à duração do seu processo migratório e dos seus projetos de
futuro na sociedade Brasileira.
Meu sonho era vir ao Brasil para trabalhar e
ir para a universidade. O que pensei do Brasil quando estava no Haiti é
diferente. Pensei que com o diploma de ensino médio do Haiti, poderia me
matricular na universidade brasileira. Mas, o Estado brasileiro não reconhece o
diploma haitiano. Por isso vou à EJA para obter o diploma de ensino médio do
Estado brasileiro. (Tinono)
A EJA vai permitir-me ter um diploma
internacional que terá muito valor. Eu amo o Brasil porque me permitiu
trabalhar e estudar ao mesmo tempo. Espero um dia que o Estado haitiano crie
condições para que tudo tenha a possibilidade de ir à escola. Infelizmente, a
educação não é a prioridade do governo haitiano. (Tijan)
A partir da análise dos relatos, identifica-se
que os primeiros motivos dos educandos haitianos para ingressar na EJA são:
falar o português, ser um filósofo (é aquele que conclui ensino médio), ter um
diploma internacional, estudar numa escola gratuita pela EJA e concluir o
ensino médio para ingressar na universidade. Percebe-se que esses motivos estão
relacionados, por um lado, com as experiências de cada sujeito entrevistado e,
por outro, com suas esperanças e expectativas na EJA. A partir do universo de
sujeitos entrevistados, destacam-se duas categorias de perfis dos educandos
haitianos na EJA.
A primeira categoria consiste nos migrantes
recém-chegados, que estão, no máximo, há um ano no Brasil e que usam a EJA como
uma estratégia pessoal para aprender a língua portuguesa. O acesso a essa
aprendizagem do português acontece via escola municipal de EJA do Ensino
Fundamental (Fase I ou 1º segmento), em Cambé. Importante destacar que esses
educandos não falam o português, geralmente estão desempregados e não têm
carteira de trabalho, na maioria dos casos.
Observa-se que, nesta categoria, um fator a
ser considerado é a nítida percepção de que esses educandos apresentam-se pouco
motivados em sala de aula. Eles frequentemente conversam na língua crioulo durante
a aula sobre temas alheios, como as dificuldades para encontrar emprego no
Brasil. Neste sentido, demonstram solidariedade entre eles, compartilhando
informações sobre empresas que possuem vagas de trabalho. Percebemos que a
razão dessa categoria de educandos em procurar a EJA está diretamente associada
à aprendizagem da língua portuguesa, como um facilitador para o acesso ao
trabalho. Nessa lógica, Tiwil relatou sobre a dificuldade para encontrar
trabalho sem falar português.
Se você não fala um pouco de português, é
difícil conseguir um emprego no Brasil. No meu caso, não consigo encontrar um
emprego porque não falo o português. Não gosto da maneira que a professora dá a
aula. Eu não venho aqui para aprender matemática e fazer o desenho. Preciso só
falar o português para ir trabalhar. (Tiwil)
Constata-se que esses educandos demonstram
desconhecer a natureza do trabalho na modalidade da EJA na escola municipal em
Cambé, que é destinada para o desenvolvimento do Ensino Fundamental Fase I, o
que faz com que se matriculem acreditando ser uma escola de ensino da língua
portuguesa. Igualmente, observa-se que tal percepção é alimentada por membros
da Igreja Pentecostal Arca de Deus da comunidade haitiana no Jardim Santo
Amaro, Cambé, que orientam os migrantes recém-chegados para irem à EJA aprender
o português.
A questão da língua
dificulta ainda mais a comunicação entre os alunos e a escola no que se refere
ao atendimento específico da EJA. A inexistência de um canal de comunicação
acaba por aumentar a incompreensão dos migrantes haitianos sobre a modalidade
da EJA nesta escola. Tiwil evidencia, em seu relato, que a aquisição da língua
portuguesa é um mecanismo de integração dos migrantes no mercado de trabalho
no Brasil. Neste quesito, “aprender a língua
do país de acolhimento favorece a inserção sócio-profissional das/os migrantes,
pois esse conhecimento produz uma maior igualdade de oportunidades para todos,
facilita o exercício da cidadania e potencializa qualificações enriquecedoras
para quem chega e para quem acolhe” (Bernardo & Barbosa, 2018, p. 478).
Logo, o desconhecimento do idioma se configura
numa das barreiras para inserção dos migrantes haitianos no mercado de trabalho
brasileiro, o que se revela dentre as primeiras necessidades quando chegam ao Brasil.
Cabe reconhecer que ter um emprego é uma das razões do deslocamento desses
sujeitos que intencionam trabalhar para primeiramente saldar dívidas contraídas
com empréstimos que custearam a viagem do Haiti para o Brasil. Nesse quesito,
Tiga enfatiza: “Para vir no Brasil,
emprestei dinheiro. Tenho que trabalhar para enviar esse dinheiro para o Haiti”.
Ressalta-se que a demanda dos migrantes
haitianos na EJA é organizada de acordo com as informações compartilhadas nas
duas igrejas haitianas em Cambé, territórios onde eles moram, tendo proximidade
com as escolas. Com exceção de um educando haitiano que mora no Jardim Santo
Amaro, todos os outros frequentam a escola estadual de EJA e residem no Jardim
Ana Rosa, ambos os bairros localizados no município de Cambé. Já os educandos
haitianos que ingressam na escola municipal em Cambé residem no Jardim Santo
Amaro. Além da questão da fé e da religiosidade, entendemos que as duas igrejas
haitianas observadas criam um espaço de encontro que provoca solidariedade entre
os migrantes.
A segunda categoria consiste nos educandos
haitianos que têm pelo menos dois anos no Brasil. Geralmente, esses educandos
já trouxeram suas famílias para o Brasil, dominam o português e estão
empregados. Consequentemente, em sala de aula, demonstram motivação e
compartilham suas experiências com os educadores e educandos não haitianos na
escola.
Essa realidade foi identificada na escola
estadual de EJA em face das razões apresentadas para o ingresso na instituição:
ser um filósofo (é aquele que conclui ensino médio), ter um diploma
internacional e conclusão do ensino médio. Também demonstram a intenção de
ingressar na universidade ou aprender uma profissão a nível técnico, na
expectativa de ter uma ascensão social na sociedade brasileira. São planos
construídos desde o Haiti, como, por exemplo, concluir o ensino médio, mas que
não foram possíveis de concretização anteriormente. Nesse quesito, Tijan
apresenta dois aspectos significativos acerca de seus motivos quando procurou a
EJA: “ser um filósofo e ter um diploma
internacional”.
O desejo de Tijan
de ser filósofo pode ser explicado por vários aspectos vinculados à percepção
popular haitiana. O ensino da filosofia, como uma disciplina do último ano do
ensino médio, denota a importância da trajetória de quem chega a essa fase da
escolaridade. No Haiti, o último ano do ensino médio é comumente chamado “classe
de filosofia”. Os educandos dessa classe, quase em todas as escolas, comemoram
o Santo Thomas D’Aquin (São Tomas de Aquino), considerado o patrono da
filosofia.
Esses educandos
são prestigiados e valorizados não apenas pela escola, mas também pela
sociedade haitiana. É fácil identificar um educando da “classe de filosofia”
em uma escola e na rua, pois tem uma maneira diferente de se vestir em relação
aos outros educandos. Eles geralmente vestem camisa com a manga comprida e um laço
que sinaliza honra. A aspiração de Tijan, ao relatar querer ser um filósofo,
remete a essa percepção popular.
Outro fator relevante a ser percebido nos
relatos é a questão da possibilidade de obtenção de diploma via EJA. Há uma
nítida percepção positiva do diploma escolar. Ademais, ele enfatiza o aspecto
internacional desse diploma como forma de mostrar sua importância. Para esses
termos, Tijan evidencia: “Terei um diploma
internacional. Quando retornar ao Haiti, este diploma terá muito mais valor do
que os alunos concluindo ensino médio no Haiti”.
Identificam-se, nos
relatos de Tijan e Tinono, pelo menos dois grandes objetivos com esse ingresso
na EJA, os quais estão associados a duas expectativas. A curto prazo, anseiam
ter em mãos uma certificação ao nível de ensino médio no Brasil. Porém, as
expectativas são ampliadas a médio e longo prazo, quando a conclusão deste
nível de ensino pode culminar no ingresso na universidade e, consequentemente, na
ascensão social. Desta forma, a segunda categoria dos educandos utiliza a EJA
como um espaço que permite ampliar seus conhecimentos para mudar o seu status na sociedade brasileira e
haitiana no futuro.
Constata-se, nos
relatos de Tijan e Tinono, que a EJA é considerada como o principal meio de
ascender socialmente, estabelecendo uma relação entre a mobilidade social de
pessoas graduadas, como uma tentativa de atender à demanda por maior qualificação
no mercado do trabalho. Porém, observando esses relatos, cabe problematizar
até que ponto essas aspirações estão pautadas numa noção de realidade, ou se
constituem como uma base ilusória. A conclusão do Ensino Médio pela EJA no
Brasil de fato constitui uma ponte até a educação superior para esses
migrantes? A exclusão ou a precarização do trabalho para esses educandos
necessita unicamente da certificação para ser equacionada?
Nota-se que,
apesar de haver um discurso de necessidade de qualificação profissional, há um
número significativo de brasileiros mais escolarizados que não consegue obter colocações
correspondentes às suas qualificações (Martins & Oliveira, 2017). Além
disso, os autores enfatizam que, atualmente, grande parte dos empregos
existentes é de curta duração, sem muitas garantias sociais e habitualmente de
baixa remuneração. O mercado de trabalho, na maioria dos países, não apresenta
iguais possibilidades de ascensão social. Os escassos empregos atingem
particularmente os jovens, considerando sua vulnerabilidade no mercado de
trabalho em virtude de características como a falta de experiência e a busca
por experimentação.
Paralelamente,
outra visão apresenta a questão da qualificação profissional como requisito aos
que buscam se inserir no mercado de trabalho. Essa perspectiva, que estabelece
uma relação entre empregabilidade e qualificação profissional, foi defendida
pela teoria do capital humano da década de 1960. O ponto de partida dessa
corrente consistiu em valorizar as capacidades e competências individuais para
atingir uma melhor posição no mercado de trabalho. Ressalta-se que as
perspectivas dos educandos haitianos entrevistados inserem-se na corrente da
teoria do capital humano, na medida em que eles consideram a aquisição de escolarização
como principal meio que pode garantir o requisito da empregabilidade para ascensão
social. Com o objetivo de analisar os desafios e as possibilidades dessa
mobilidade social, os educandos entrevistados mostram estar otimistas na luta
para alcançar suas expectativas. Entende-se que esses educandos quebraram o que
pode ser vivido por outros como uma fatalidade social, colocando-se em uma
perspectiva positiva para a ascensão social.
Considerações finais
Essa pesquisa teve como foco refletir sobre as
trajetórias de jovens e adultos haitianos que acessam a modalidade Educação de
Jovens e Adultos na cidade de Cambé/PR, no contexto dos fluxos migratórios para
o Brasil. Dentro desse processo, analisamos as intenções e expectativas dos
migrantes haitianos na Educação de Jovens e Adultos, problematizando o direito
de acesso à educação por esses sujeitos no Brasil.
A análise sobre a vivência dos educandos
haitianos nas escolas no Haiti, evidencia que a desigualdade escolar no país é uma herança
histórica que persiste na ainda hoje. Diante dessa desigualdade escolar, o
Estado haitiano desempenha um papel de regulador. Em decorrência, destaca-se que os
educandos entrevistados foram excluídos do sistema educacional no Haiti,
ou tiveram que se afastar da escola devido a determinantes sociais, econômicos
e políticos.
A partir da análise dos dados empíricos,
ressalta-se que as primeiras motivações dos educandos haitianos para ingressar
na EJA são: domínio da língua portuguesa, ser um filósofo, ter um diploma
internacional, estudar numa escola gratuita e a conclusão do ensino médio. A
partir desses motivos, percebemos dois perfis de educandos haitianos na EJA: a
primeira categoria de educandos haitianos são os recém-chegados, que buscam na
EJA a aprendizagem da língua portuguesa para que assim consigam trabalhar
formalmente. A segunda categoria diz respeito aos educandos que estão há mais
tempo no Brasil e que possuem o desejo de concluir o ensino médio e depois
ingressar na universidade, buscando uma ascensão social na sociedade
brasileira.
O presente estudo revela a importância da EJA
nos percursos vivenciados pelos haitianos em diáspora neste país. Indica a
necessidade de avançar nestas reflexões para que a escola pública brasileira
compreenda melhor as expectativas dos jovens e adultos haitianos, além de
ampliar com eles os espaços de diálogo, garantindo o ingresso e uma permanência
de qualidade.
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[i] Mestre em Serviço Social e
Política Social pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) (2020). Doutorando
em Serviço Social e Política Social pela UEL.
[ii] Doutor em Educação pela
Universidade pela Universidade do Paraná (2010) e professor titular do Programa
de Pós-Graduação em Serviço Social e Política Social da UEL.
[3] O termo
diáspora é utilizado no Haiti para descrever os haitianos fora do Haiti, que
volta temporariamente ao país e logo retornam para o país estrangeiro onde eles
residem (Handerson, 2015).
[4] Consultamos o Plano da Estratégia Nacional de
Ação de Educação para Todos (SNA-EPT) e o Plano Nacional de Educação e Formação
(PNEF). Estes dois documentos definem a orientação e a política do Estado
haitiano no campo da educação.
[5] Os exames oficiais no Haiti correspondem ao
último ano do ensino fundamental e último ano de ensino médio. São exames
organizados pelo Estado no território nacional para alunos de todas as escolas,
sem distinção, sendo aplicada a mesma prova.