Artigo
Educação
física escolar: desafios, superação e retorno às aulas presenciais
Educación física escolar: retos, superación y regreso
a las clases presenciales
Physical education at school: challenges, overcomes
and live classes return
Derli Juliano Neuenfeldt[i]
Universidade do Vale do Taquari
Lajeado, RS, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-1875-7226
Elzanira Sousa de Oliveira[ii]
Universidade do Vale do Taquari
Lajeado, RS, Brasil
elzanira.oliveira@universo.univates.br
https://orcid.org/0000-0002-1035-326X
Macgregor Baumgarten[iii]
Universidade do Vale do Taquari
Lajeado, RS, Brasil
macgregor.baumgarten@universo.univates.br
https://orcid.org/0000-0002-5232-2488
Contribuição
na elaboração do texto: autor 1: escrita do artigo, coleta e análise das
informações, revisão e consolidação do manuscrito; autora 2: análise das
informações, revisão e consolidação do manuscrito; autor 3: revisão e
consolidação do manuscrito.
Recebido em: 19/07/2022
Aceito em: 11/10/2022
Publicado
em: 17/10/2022
Linhas
Críticas | Periódico científico
da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil
ISSN: 1516-4896 |
e-ISSN: 1981-0431
Volume 28, 2022 (jan-dez).
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas
Referência
completa (APA):
Neuenfeldt, D. J., Oliveira, E. S. de, & Baumgarten, M. (2022). Educação
física escolar: desafios, superação e retorno às aulas presenciais. Linhas Críticas,
28, e44216. https://doi.org/10.26512/lc28202244216
Link alternativo:
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/44216
Licença Creative
Commons CC BY 4.0.
Resumo: Essa pesquisa qualitativa analisou percepções de
docentes e gestores sobre o processo de continuidade do ensino da Educação
Física Escolar no período de pandemia causada pelo novo coronavírus e de
retorno à presencialidade. Ela foi realizada com duas escolas do Rio Grande do
Sul, Brasil. Foram entrevistadas as equipes diretivas e professores de Educação
Física. Nas aulas remotas, foram utilizados recursos do Google for Education e atividades impressas para os alunos sem
acesso à Internet. A volta à escola é acompanhada de um sentimento de
felicidade, mas percebe-se que o desenvolvimento da socialização e a aptidão
física dos alunos foram comprometidos com a pandemia.
Palavras-chave: Ensino. Educação física escolar. Covid-19.
Resumen: Esta investigación cualitativa analizó las
percepciones de docentes y directivos sobre el proceso de continuidad de la
enseñanza de la Educación Física Escolar en el período de la pandemia provocada
por el nuevo coronavirus y el retorno a la presencialidad. La investigación fue
desarrollada con dos escuelas en Rio Grande do Sul, Brasil. Se entrevistó a
equipos directivos y profesores de Educación Física. En las clases remotas, se
utilizaron los recursos de Google for Education y actividades impresas a disposición de los
estudiantes sin acceso a Internet. La vuelta a la escuela está siendo
acompañada de un sentimiento de felicidad, pero es visible que el desarrollo de
la socialización y la aptitud física de los estudiantes fueron comprometidos
por la pandemia.
Palabras
clave: Enseñanza. Educación física escolar. Covid-19.
Abstract: This qualitative research analyzed perceptions of
teachers and managers about the process of continuing the teaching of School
Physical Education in the period of the pandemic caused by the new coronavirus
and live classes return. This study was held with two schools in Rio Grande do
Sul, Brazil, in which we interviewed the directive teams and PE teachers.
During remote classes teachers used Google for Education resources and offered
printed activities to students who did not have access to Internet. The return
to school is united to a feeling of happiness, however we notice that students’
social skills development and physical ability were undermined by the pandemic.
Keywords: Teaching. Physical education at school. Covid-19.
Introdução
A pandemia provocada pela doença causada pelo novo coronavírus
(covid-19) afetou todos os setores da sociedade. Apesar dos avanços
científicos, da ampliação da produção e do
compartilhamento do conhecimento, sentimos que ainda há situações em que o
domínio da natureza, desejo da ciência moderna, escapa das nossas mãos. A
covid-19 fez a humanidade recolher-se, não só em seus domicílios, mas também na
tomada de consciência da fragilidade da espécie humana. Por outro lado, as
dificuldades que emergiram potencializaram atitudes de cooperação e de
solidariedade, como a união de esforços na busca pela vacina e na ajuda às
classes sociais economicamente desfavorecidas e a pessoas com a saúde
debilitada.
As medidas de cuidados para evitar a propagação
do vírus, recomendadas pela World Health Organization (WHO, 2020), acarretaram o distanciamento
físico/social e, consequentemente, a impossibilidade de as escolas manterem
suas atividades presenciais. Na Educação Básica, em todas as etapas e níveis de
ensino, as aulas presenciais foram canceladas. As escolas foram desafiadas a
ensinar remotamente e a criar formas de ensino não presenciais. Nesse sentido,
ações colaborativas (Terra, 2004; Godoi et al., 2020) têm fortalecido o
coletivo docente, frente às dificuldades do cotidiano escolar, o que nos
provoca a olhar para o saber construído no período da pandemia e para as
estratégias adotadas nas escolas, para dar continuidade às aulas.
Uma dessas estratégias a que se recorreu foi a
busca de apoio nas tecnologias digitais. Sibilia
(2012) tem destacado o fato de elas estarem incorporadas à vida dos alunos,
nativos digitais, e questiona como a escola tem discutido seu papel na
sociedade atual. A autora salienta que, na sociedade da informação, é preciso
rever a escola como projeto da modernidade, disciplinadora de corpos, e olhar
para as novas subjetividades que se constituem, mas, atentos à velocidade e à
intensidade dos fluxos que conspiram contra a produção e a coagulação de
significados.
Contudo, a autora acima não poderia vislumbrar
uma pandemia na qual o ensino presencial seria impossibilitado. Nesse contexto,
mesmo os mais resistentes às tecnologias digitais tiveram que revisar suas
concepções. O uso das tecnologias digitais e de dispositivos móveis como o
celular foram alternativas para a continuidade do ensino. As práticas
pedagógicas desenvolvidas durante o período pandêmico no Rio Grande do Sul
(RS), Brasil, Estado onde a presente pesquisa foi realizada, foram denominadas
de ensino remoto emergencial (ERE). Esse termo, de acordo com Santana e Sales
(2020, p. 81), não era contemplado na legislação brasileira vigente como
tipologia ou modalidade de ensino, mas passou a ser utilizado na “tentativa de
nomear as ações pedagógicas criadas para atender às regulamentações
emergenciais emitidas pelos órgãos públicos no que se refere à educação escolar
em tempos de pandemia”.
A Educação Física (EF), componente curricular que
tem sua especificidade no movimentar-se, também teve que reinventar-se e aderir
ao ensino remoto. Santos et al. (2021), ao realizarem um diagnóstico no RS
quanto à forma como os professores desenvolveram as suas aulas no período da
pandemia, constataram que foram realizadas atividades teóricas e práticas. No
Ensino Fundamental, o principal suporte pedagógico foi o material impresso e,
no Ensino Médio, o ambiente virtual de aprendizagem. A mediação, em ambos os
níveis de ensino, ocorreu através do aplicativo WhatsApp. A principal
dificuldade relatada foi a falta de acesso à Internet pelos alunos.
Evidencia-se também que, na EF, nas aulas
remotas, o trabalho de troca, de aprendizagens coletivas foi substituído por
atividades individuais. “A espontaneidade do contato docente e discente foi
substituída pela edição de vídeos. A voz do professor, pela leitura solitária
dos textos” (Machado et al. 2020, pp. 12-13). Assim, o ensino da EF, que se dá
pela interação com o outro, foi fragilizado no ERE.
Em relação aos alunos, Silva e Silva (2022)
trazem que a pandemia ocasionou a diminuição da prática de exercícios físicos.
As condições físicas e materiais para realizar as aulas de EF em casa não eram
adequadas, por causa da falta de estrutura no ambiente domiciliar. Quanto aos
aspectos psicológicos e sociais, a virtualização do ensino afetou as interações
sociais. O distanciamento social ocasionou inseguranças, sobrecarga de trabalho,
ansiedade, sedentarismo e aumento da desigualdade educacional e social.
Nesse contexto, em que o ensino da EF passou a
ser remoto e, predominantemente, mediado pelas tecnologias digitais, essa
pesquisa[4] analisou percepções de docentes e gestores sobre
o processo de continuidade do ensino da Educação Física Escolar (EFE), no
período de pandemia causada pelo novo coronavírus e de retorno à
presencialidade. O estudo delimita-se ao componente EF nos Anos Finais do
Ensino Fundamental. A opção pelo componente EF deve-se ao fato de a
experimentação corporal ser a base para a construção de aprendizagens
(Hildebrandt-Stramann, 2009), fundamento que foi
afetado com as medidas de isolamento social. Por isso, nos indagamos: Como as
aulas de EF foram desenvolvidas? Os professores utilizaram tecnologias digitais
nas aulas? Se, sim, quais? Que uso fizeram delas? E, nesse momento de retorno à
presencialidade, quais aspectos os professores percebem que precisam ser
retomados ou que não foram contemplados satisfatoriamente no ERE?
Entendemos que, no tocante ao ERE, a pretensão de
compreender como se deu o movimento de continuidade das aulas de EF e de
conhecer práticas pedagógicas experimentadas possibilita pensar sobre a escola
que queremos construir no retorno à presencialidade e olhar para a
especificidade da EF, rever ou reforçar o seu lugar na formação dos alunos.
Procedimentos Metodológicos
Esta pesquisa é qualitativa, que, conforme Bogdan e Biklen (1994, p. 13),
“[…] envolve a detenção de dados descritivos, obtidos no contato direto do
pesquisador com a situação estudada, enfatiza mais o processo do que o produto
e se preocupa em retratar a perspectiva dos participantes”. Essa abordagem de
pesquisa possibilita ao investigador a descrição do fenômeno tal como ele se
apresenta em toda a sua complexidade e em seu contexto natural, no caso desta
pesquisa, na escola.
O lócus
do estudo foi uma rede municipal de ensino do Vale do Taquari, RS, Brasil. A
rede é constituída de 13 escolas, onde atuam oito professores de EF, nos Anos
Finais do Ensino Fundamental. A pesquisa ocorreu em duas escolas, definidas a
partir de diálogo dos pesquisadores com a Secretaria de Educação do município,
tendo como critérios de escolha, a necessidade de os professores de EF terem
atuado em 2020 e se manterem em 2021 nas funções, bem como disponibilidade e
interesse em participar da pesquisa. Foram excluídos da investigação
professores de EF que não atuaram com os Anos Finais do Ensino Fundamental em
2020 ou 2021 e gestores que não exerceram a função administrativa desde o
início da pandemia. Dessa forma, habilitaram-se oito participantes: a direção e
a coordenação pedagógica de cada escola e quatro professores de EF dos Anos
Finais do Ensino Fundamental, dois de cada escola. Todos aderiram
voluntariamente à pesquisa.
A coleta de informações ocorreu através de
entrevistas semiestruturadas (Bogdan & Biklen, 1994), desenvolvidas de forma presencial, com
agendamento prévio, em sala reservada na escola. As questões norteadoras
relacionaram-se aos objetivos do estudo, tais como: alternativas
didático-pedagógicas a partir do impedimento de aulas presenciais; uso de
tecnologias digitais; tomada de decisões no contexto escolar, frente ao ERE; a
forma como ocorreram as aulas de EF; os primeiros movimentos de retorno à
presencialidade. As entrevistas ocorreram no mês de junho de 2021, período em
que as escolas estavam retornando às aulas presenciais de forma escalonada, ou
seja, metade de cada turma vinha para a aula presencial e a outra metade
permanecia em casa, realizando atividades impressas disponibilizadas pelos
professores. As entrevistas foram gravadas, transcritas e encaminhadas para o e-mail de cada uma das escolas, que
disponibilizaram o texto para os entrevistados revisarem, ratificarem ou
fazerem algum ajuste que julgassem necessário. Após esses trâmites, as
informações foram utilizadas na pesquisa.
Quanto à análise das informações, optou-se pela
análise textual discursiva (Moraes & Galiazzi,
2016), que é um processo de desconstrução e reconstrução de novos textos a
partir da interpretação de enunciados discursivos, com o objetivo de atingir
uma compreensão mais elaborada dos discursos no interior dos quais foram
produzidos. O material submetido à análise (corpus) foram as entrevistas
realizadas com os professores e gestores. A partir da análise textual, foram
identificadas unidades de análise relacionadas aos objetivos da pesquisa, das
quais emergiram três categorias, sendo elas: desafios, incertezas e primeiros
movimentos, frente à pandemia; aprendendo no peito, na raça e na coletividade;
retorno à presencialidade: a importância da EFE.
Quanto aos cuidados éticos, a pesquisa não foi submetida ao Comitê
de Ética. Contudo, todos os cuidados para preservar a confidencialidade das
informações foram tomados, bem como foram esclarecidos os possíveis riscos,
desconfortos e benefícios. A Secretaria de Educação do município autorizou o
estudo mediante a assinatura da Carta de Anuência. Os membros da equipe
diretiva e professores de EF autorizaram o uso das informações mediante a
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Na divulgação dos
resultados, os nomes das escolas, dos membros da equipe diretiva e dos
professores não são divulgados. Utilizamos os seguintes termos para nomeá-los:
direção da escola A; coordenação pedagógica da escola A; direção da escola B;
coordenação pedagógica da escola B; professor 1 e professor 2, para os que
atuam na escola A; professor 3 e professor 4, para os que atuam na escola B.
Desafios, incertezas e primeiros movimentos,
frente à pandemia
A pandemia da covid-19 surpreendeu todo o mundo e
não foi diferente no contexto escolar. Incertezas, medo, dúvidas acerca do que
fazer foram os primeiros sentimentos. Não se tinha ideia da dimensão, nem
previsão de quanto tempo ela poderia durar. Por essa razão, a direção da escola
A menciona que as aulas foram suspensas no dia 19 de março de 2020 e, até 23 de
abril, a escola ficou aguardando para ver o que aconteceria. Contudo, “[…]
ninguém esperava que ficasse tanto tempo sem aula presencial, sem o retorno dos
alunos”. A coordenação pedagógica da escola B acrescenta que foi “tudo muito
assustador e não se sabia, pensou-se que ficando 15 dias se retornaria”.
O grande desafio apontado pelas equipes diretivas
foi pensar numa forma de ensino que não seria mais presencial, que não
ocorreria na escola enquanto local de aprendizagem, de trocas, “[…] não era
mais o físico, não eram mais as quatro paredes […] isso envolveu semanas,
assim, até o município conseguir se organizar dentro de um sistema para
retornar aos poucos às aulas no ensino remoto” (coordenação pedagógica, escola
A).
Sibilia (2012), antecipadamente, na obra Redes ou Paredes, discute a escola
frente ao avanço das tecnologias digitais, destacando que as paredes escolares
já estavam sendo corroídas há mais tempo, desde a exploração da imagem pela
televisão. Dessa forma, ela ressalta que a escola precisa redefinir o seu papel
na sociedade da informação, olhar para a presença das tecnologias digitais na
vida dos alunos, não apenas como elementos de dispersão, mas ensiná-los a
aprender, a partir do acesso às informações disponíveis em rede. Nesse sentido,
entendemos que, se esse processo estivesse acontecendo, as escolas do estudo
não sentiriam a brusca migração do ensino presencial para o remoto.
À medida que se percebia que a pandemia
continuaria e junto com ela as restrições ao ensino presencial, inicia-se o
processo de estruturação de uma proposta de continuidade das aulas, porém, com
algumas dificuldades. “A Administração Municipal, junto com a Secretaria de
Educação, começaram a pensar num modelo para voltarmos a ter aula de uma forma
ou de outra […] encontros virtuais, aulas on-line
[…] famílias que não têm acesso à Internet”
(direção, escola A). A realidade das famílias em relação ao acesso à Internet
é apontada como um entrave que mereceu a atenção das escolas:
É,
a gente se deparou, assim, com famílias com Internet, com condições
tranquilas de acompanhar as aulas on-line, outras sem Internet,
outras, assim, 85% das nossas famílias só tinham um celular em casa, daí tinha
família com dois, três filhos […]. (direção, escola A)
Outrossim, também se “deparou com situações que o
professor nem tinha notebook […]
Então, assim, foram um monte de impasses, né, a gente teve que se adaptar”
(direção, escola A).
A pandemia, de acordo com Cunha et al. (2020), desvelou a realidade
brasileira, mostrando um país altamente desigual, com graves problemas a serem
enfrentados, como a erradicação do analfabetismo e/ou a elevação do nível de
escolaridade da população brasileira, a melhoria no processo formativo do
professor da Educação Básica e a diminuição da pobreza. Além disso, não podemos
deixar de destacar que as disparidades de condições de acesso às tecnologias
digitais, em tempos de pandemia, dificultam aos estudantes, a participação às
aulas e, consequentemente, o acesso ao conhecimento. Godoi et al. (2020, p. 99)
também mencionam que a precariedade de condições para o uso da tecnologia e a
conectividade com a Internet “podem
gerar ainda mais desigualdade em termos de desempenho escolar entre alunos de
escolas particulares e de escolas públicas, ou mesmo entre alunos de escolas
públicas que têm acesso às TDICs e aqueles que não
têm”.
Contudo, o uso das tecnologias digitais foi o
caminho escolhido. As escolas optaram pelos recursos do Google for Education, principalmente o Google Classroom,
como ambiente virtual de aprendizagem e, gradativamente, foi incorporando Meets virtuais.
E, […] às famílias que não tinham acesso à Internet,
eram oferecidas atividades impressas” (direção, escola A). A opção por
tecnologias digitais ocorreu em todas as áreas de conhecimento, não sendo
diferente em outros Estados brasileiros. Por outro lado, o tipo de tecnologia
digital utilizada difere. Por exemplo, na região Norte do Brasil, diferente do
presente estudo, o uso do WhatsApp foi a alternativa possível para a
continuidade do ensino, conforme foi constatado por Negrão e Neuenfeldt (2022), que investigaram como ocorreram as aulas
do primeiro ano do Ensino Fundamental, numa Escola Pública Municipal em
Santana, no Amapá.
Questionados a respeito do uso do aplicativo WhatsApp,
os professores informaram que não o utilizaram. Somente a equipe diretiva o
utilizou como recurso para contatar as famílias, a fim de evitar sobrecarga de
atividades para o professor:
A
gente decidiu aqui só pela direção usar, porque o professor, ele tem muitas
turmas e ele tem que dar conta do Classroom, do planejamento coletivo, mais daquele aluno que
tá no remoto, que tá entregando as atividades, então o WhatsApp é mais a direção que tem contato com as famílias e, se o
professor precisa, a direção encaminha um recado então para as famílias.
(coordenação, escola A)
Moran et al. (2013) ressaltam que, na última
década, potencializou-se o uso das tecnologias digitais, tais como os ambientes
virtuais de aprendizagem (AVA), a exemplo do Moodle, e as tecnologias abertas, como os blogs, podcasts, wikis…, no ensino, seja na Educação a
Distância (EaD) ou em modelos híbridos, que mesclam o
presencial e EaD. Porém, na Educação Básica, foi
durante a pandemia que o uso das tecnologias digitais se acentuou, pois foi a
alternativa escolhida e recomendada para manter uma relação mais próxima com os
alunos, bem como para proteger-se do risco iminente de contágio do coronavírus,
através da interação física com outras pessoas.
Direção, professores, alunos e familiares
mantiveram-se conectados, predominantemente, através das tecnologias digitais,
o que demandou a formação da equipe diretiva e dos professores, proporcionada
pela Secretaria de Educação, como menciona a direção da escola A:
A
gente teve que dar apoio às famílias, para tudo, para eles era, assim,
sinceramente, assim, isso era grego, né […] Logar,
ter um e-mail, então, sabe, todo aquele trabalho, assim, de criar e-mails, para
todos os alunos, até que chegava até as famílias.
A coordenação pedagógica dessa escola reforça a
necessidade permanente de a escola auxiliar as famílias em relação ao acesso
aos ambientes virtuais: “Tem algumas famílias agora [2021] ainda pedindo: ‘qual
é o e-mail do meu filho’; né, que a
gente tá há um ano, né, trabalhando com […]” (coordenação pedagógica, escola
A).
Barros e Vieira (2021) comentam que as escolas
tiveram que reinventar seus métodos de ensinar, aderindo integralmente aos
meios digitais, o que, para muitos, além de envolver questões de aprendizagem,
trouxe empecilhos emocionais. Houve a necessidade de pais e professores
disporem e acessarem as plataformas digitais, para que os filhos e alunos
acompanhassem as aulas e realizassem as atividades propostas.
Ainda, no tocante à forma como a escola se
movimentou com relação às restrições da pandemia, a rede de ensino investigada fez
planejamentos coletivos por área de conhecimento, compartilhando o planejamento
das aulas e as experiências vividas pelos professores nas práticas pedagógicas.
Na próxima categoria, aborda-se a forma como ocorreu o desenvolvimento das
aulas de EF.
Aprendendo no peito, na raça e na coletividade
A crise provocada pela pandemia, num primeiro
momento, assustou, uma vez que a sensação era de estarmos de mãos atadas frente
a algo para o que não se vislumbrava uma solução a curto prazo. Santos (2020,
p. 1) menciona que, “no sentido etimológico, a crise é, por natureza,
excepcional e passageira e constitui a oportunidade para ser superada e dar
origem a um melhor estado de coisas”. Não entendemos que a pandemia seja um
fato positivo; contudo, há de se olhar para o contexto escolar no sentido de
perceber o que foi construído em cada escola para dar continuidade ao ensino.
O uso das tecnologias digitais no contexto
educacional brasileiro, tais como AVA, já tem uma caminhada na educação
brasileira, mas é a realidade do Ensino Superior, a partir da crescente
expansão do Ensino a Distância. Na Educação Básica, o ensino é presencial. As
tecnologias digitais vêm sendo experimentadas, mas ainda são vistas com certo
preconceito pelo fato de “dispersarem” os alunos da aula, conforme menciona Sibilia (2012).
Todavia, quando foram suspensas as aulas
presenciais em função da pandemia, passou-se a ter um outro olhar para as
tecnologias digitais, que não faziam parte da rotina pedagógica dos professores
de EF, uma vez que esse componente trabalha com práticas corporais e prima pela
experimentação corporal. Quanto à presença do uso das tecnologias digitais na
formação inicial, o professor 1 menciona: “não lembro de ter tido na graduação
alguma aula que me mostrasse caminhos ou que trabalhasse a questão da
tecnologia dentro da EF, não lembro”.
Assim, quando as escolas optaram pela adoção do Classroom, foi
necessária uma formação continuada, promovida pela Secretaria de Educação, para
os professores aprenderem a “como usar a plataforma, porque era tudo novo, pelo
menos para a grande maioria. Então, o maior auxílio que recebemos foi como
utilizar essa ferramenta para as aulas” (professor 1). Porém, o professor 4 pondera
que ainda foi necessário buscar conhecimentos por conta própria, experimentar
as tecnologias: “muita coisa a gente teve que ir atrás, na raça, no peito, a
gente foi se ligando, vai procurando, procurando vídeos no Google, vai fazendo, ‘mas como eu faço isso?’ A gente virou youtuber, tinha que gravar vídeo…”, “na
cara e na coragem”, reforça o professor 3. Gradativamente, em razão de os
professores sentirem falta de estarem mais próximos dos alunos, encontros
virtuais síncronos pelo Google Meet
foram incorporados, mas eles ocorriam “duas vezes no máximo, por mês, conforme
a turma” (professor 2).
Cabe destacar nas falas dos professores as
expressões na raça, no peito, na cara e na coragem,
pois expressam o enfrentamento das condições adversas ao ensino, no tocante à
EFE, entre elas, a formação inicial, que não contemplou o uso de tecnologias
digitais nas aulas e a necessidade de apropriar-se delas, além de ser um
componente curricular, cujo objetivo, conforme a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC), é tematizar as práticas corporais da cultura corporal do movimento,
entendidas como manifestações das possibilidades expressivas dos sujeitos,
produzidas por diversos grupos sociais, no decorrer da história (Brasil, 2017).
Pesquisa realizada por Godoi et al. (2020), com
professores de EF, sobre o tema ERE, também evidenciou como desafios ter que
lidar com sentimentos de medo, angústia, ansiedade e a necessidade de superar-se
em relação à nova forma de ensino, bem como a adaptação às aulas on-line, o domínio das ferramentas
tecnológicas para o ensino e a dificuldade em encontrar atividades adequadas
para o ensino remoto.
Na presente investigação, em cenário muito
similar ao apontado pelos autores acima, os professores de EF foram
resilientes. A resiliência, conforme Antunes (2003, p. 13):
[…]
representa a capacidade de resistência a condições duríssimas e persistentes e,
dessa forma, diz respeito à capacidade de pessoas, grupos ou comunidades não só
de resistirem às adversidades, mas também utilizá-las em seus processos de
desenvolvimento pessoal e crescimento social.
Quanto ao uso dos recursos, semanalmente, eram
enviadas atividades através da plataforma do Classroom,
as quais os alunos realizavam em casa e as postavam semanalmente, sendo a
postagem feita “através de fotos, pequenos vídeos, ou, se era uma atividade
mais descritiva, às vezes, eles encaminhavam também, ou faziam e nos entregavam
depois, no retorno” (professor 2). As unidades temáticas eram definidas no
planejamento coletivo e seguiam a BNCC (brincadeiras e jogos, esportes,
ginásticas, danças, lutas e esportes de aventura). Quanto à metodologia, de
acordo com os professores, por exemplo, eram encaminhados textos com informações
sobre determinada prática corporal e uma proposta de vivência, que poderia ser
a experimentação ou um desafio corporal que envolvesse alguma habilidade, tal
como equilíbrio, coordenação motora, buscando incentivar a adesão dos alunos
por meio de frases motivadoras, tais como: Vamos ver quem consegue fazer?
O uso de imagens e de vídeos foi uma estratégia
didático-pedagógica para suprir a falta da demonstração corporal que ocorre na
presencialidade, bem como para compensar a necessidade de explicação das atividades:
O
que eu achei mais difícil era tudo que eu falo, a gente fala muito na EF, eu
tinha que transpor para o papel. Era muito difícil, em uma brincadeira eu
explicar, um toque no vôlei eu vou lá e demonstro, explico,
então eu tinha que descrever passo a passo, e daí a gente procurava vídeos e
adaptações. (professor 4)
As adaptações a que o professor acima se refere
dizem respeito aos espaços e materiais que os estudantes tinham em casa, conforme
eles mencionavam: “‘Ah, mas eu não tenho bola, profe!’
Então a gente vai ter que ver com balão, almofada, tudo a gente teve que ir
adaptando” (professor 4). O professor 3 acrescenta que os alunos relatavam
dificuldades como: “profe, esse eu não consigo fazer
porque não tem espaço”, “esse eu não consigo fazer porque não tenho esse
material”. Então, a orientação era usar outro material ou espaço, isto é, usar
o que tinham disponível em casa.
Apesar das dificuldades, os professores
demonstraram autoria e autonomia na prática pedagógica, fazendo as adaptações
necessárias para que os alunos conseguissem realizar as atividades propostas.
Entende-se que o professor de EF deve ser um sujeito capaz de “[…] (re)construir, reinventar sua prática com referência em
ações/experiências e em reflexões/teorias” (Caparroz
& Bracht, 2007, p. 27).
Quanto ao encaminhamento de atividades
conceituais, tais como pesquisas sobre algum tema, os professores relataram que
“algumas coisas foram feitas,
sim. Mas, não foi para frente […] a gente podia botar ‘pesquisem lá as regras
do handebol’, mas a gente via que eles iam lá, olhavam duas, três regras e deu,
sabe, cansavam […]” (professor 3). Além disso, “na pesquisa é o copiar e colar,
porque eles já estavam ali naquela parte virtual… a gente preferiu dar um
resumo e perguntar alguma coisa que demonstrasse o que aprenderam do que eles
fizeram. Aqui na nossa frente é diferente” (professor 4).
Referente aos relatos, Sibilia
(2012) discute as novas subjetividades das crianças atuais, que crescem num
contexto no qual predomina o valor das imagens. Ela destaca que escrever um
texto é uma atividade solitária e não faz mais sentido para as crianças da
atualidade, pois o tempo delas é da exploração da imagem, da exposição ao
público, da exploração da potencialidade dos recursos digitais. Por essa razão,
a opção dos professores em solicitar fotos e vídeos em vez de um texto escrito
vai ao encontro do perfil do aluno atual, que prefere a linguagem visual, que
faz mais sentido para ele.
Constatou-se também que o planejamento coletivo
desempenhou um papel extremamente importante para apoiar o professor de EF, na
retomada e na continuidade das aulas. Questões do tipo “o que” e “como fazer”,
que estão na base da didática, voltam a ter lugar de destaque. Nesse sentido,
como nos dizem Caparroz e Bracht
(2007, p. 30), “[…] falar no tempo e lugar de uma didática da Educação Física
passa a ter sentido quando o professor se percebe como sujeito autônomo e com
autoridade para desenvolver sua prática pedagógica, que é fruto da sua autoria
docente”. Acrescentamos à fala dos autores, uma autoria docente sustentada em
decisões coletivas.
Nas escolas do estudo, de acordo com os
professores, eram feitos três planejamentos, um até o 2º ano, um do 3º ao 5º
ano e um do 6º ao 9º ano. O planejamento partia de algum professor e, na
sequência, era compartilhado com os demais colegas para análise, discussão e
complementação, conforme se constata na fala do professor 2: “[…] sempre que
era necessário alterar, modificar, acrescentar alguma coisa, todos estavam
livres para poder complementar esse planejamento que ia então para todas as
escolas do município” (professor 2). O professor 1 acrescenta:
[…]
nós fazíamos dessa forma, discutíamos “vamos fazer tal coisa”, “vamos”. Daí eu
montava o planejamento, mandava para os meus colegas e eles comentavam,
acrescentavam, se queriam modificar e daí era enviado esse planejamento, mas
era assim, discutido em grupo. (professor 1)
Percebe-se que o diálogo, a troca de opiniões e o
compartilhamento do planejamento foram fundamentais para, ao longo da pandemia,
os professores se sentirem amparados na coletividade. Godoi et al. (2020)
também identificaram que, no período de ensino remoto, entre professores de EF,
intensificou-se a colaboração entre colegas. Essa interação auxiliou na adaptação
das estratégias metodológicas, sustentada num movimento de ampliação do estudo
e de pesquisas, necessários para a elaboração do planejamento do ensino.
De acordo com Terra (2004, p. 162), “para os
professores, o trabalho coletivo na escola é uma experiência interessante pelo
fato de poderem planejar com um grupo pequeno e discutir coisas mais
específicas de seu entorno”. Além disso, em relação à experiência na formação
continuada de professores, a autora destaca:
O
fato de compartilhar a maneira de dar aula, como as preparavam, como tomavam
decisões frente aos alunos a partir de uma determinada atitude, como avaliavam,
e até mesmo como reagiam frente a algumas questões político-administrativas
possibilitou a vários grupos, organizados coletivamente nas escolas, construir
sua identidade profissional, as diferentes maneiras de olhar a profissão, o
ensino e eles mesmos, ampliando assim sua inserção, imersão e compromisso no
mundo educacional. (Terra, 2004, 162)
Os professores destacam que o planejamento coletivo
possibilitou aprender, conhecer e construir novas propostas com os colegas,
para o ensino da EF e assim aperfeiçoaram os planejamentos. O professor 1
menciona: “A experiência que eu
tive, eu achei incrível o quanto eu aprendi, o quanto eu mudei minha visão de
determinadas coisas por causa desse planejamento coletivo”. O professor 2
reforça: “A gente sempre
comentava ‘ah, o que será que o professor da outra escola está trabalhando,
como ele trabalha?’ e agora, nesse momento, a gente teve essa oportunidade”.
Terra (2004) destaca que, no processo de trabalho
coletivo, deve-se estabelecer um processo de diálogo com a participação de
todas as pessoas, que apresentam seus argumentos para chegar a um acordo. Para
que isso aconteça, o querer é fundamental e pode ser um processo de
aprendizagem social. Nesse sentido, a pandemia gerou o contexto para a
aproximação dos professores, enquanto a proposta do planejamento coletivo emerge
da Secretaria de Educação, ao orientar que cada área de conhecimento discutisse
o melhor caminho para esse cenário.
Dessa forma, um coletivo, como menciona Terra
(2004, p. 166), busca, “através de suas reflexões e intervenções, validar suas
ações, mas estas somente podem ser validadas e entendidas como coletivas sempre
que os acordos não sejam coercitivos”. Não se compreende que houve coerção,
pois deu-se autonomia para o planejamento. Em 2021, período de retorno às aulas
presenciais, o planejamento coletivo continuou, porém, atendendo as
particularidades de cada escola. O professor 3 comenta: “a gente pôde botar a
parte da escola, como se diz o diferencial, a gente fez no coletivo o plano de
trabalho e depois cada um colocou aquilo que achava ser diferencial da sua
escola”.
A busca dos professores por alternativas num
momento de dificuldades e de restrições, aliada ao trabalho coletivo,
possibilitou que novas possibilidades didático-pedagógicas surgissem. No
momento da pesquisa, a escola estava retomando parcialmente as aulas
presenciais, com todos os cuidados necessários para a segurança de alunos e
professores em relação à covid-19.
O retorno à presencialidade: a importância da
Educação Física escolar
No início, o retorno dos alunos ocorreu de forma
gradativa em relação à quantidade, isto é, não vinham todos ao mesmo tempo para
a escola, para que se respeitassem as normas de distanciamento social. A
coordenação pedagógica da escola B esclarece como se deu esse processo:
Desde
o dia 28 de abril [2021] nós estamos no escalonado, uma semana eles vêm
presencialmente e, por exemplo, amanhã, na sexta-feira, a turma que está aqui
50% leva atividade impressa e vai fazer em casa na próxima semana, quando está
remoto […]. Este ano só tem o material impresso […]. Não usamos mais Meet, encontros virtuais, então esse
aluno que está totalmente no remoto, ele só tem a atividade impressa.
Portanto, ao retornar à presencialidade, não há
mais aulas on-line.
Além disso, a “plataforma hoje existe, para material de apoio, se o professor
quiser colocar lá um texto, um link,
alguma coisa” (direção, escola A).
Nesse contexto, as aulas de EF também retornam à
presencialidade com 50% da turma e com restrições em relação ao contato
corporal e ao compartilhamento de materiais. Uma das dificuldades sentidas
pelos professores diz respeito ao distanciamento do aluno em função das aulas
remotas, um distanciamento não apenas de espaço, mas também da falta de uma
relação mais próxima e da construção de laços afetivos: “A gente não conseguia
chegar neles com um papel, atingir eles com um documento no Word, eles lendo e fazendo atividades”
(professor 3). Essa dificuldade foi ainda maior com os alunos que realizaram as
atividades impressas, pois não houve, como mencionado, nenhum contato com o
professor, nem mesmo virtualmente.
Em pesquisa realizada com professores de EF no
período da pandemia, Machado et al. (2020) também constataram ser um desafio
ensinar sem a interação e o contato direto com o aluno. Os professores de EF,
inicialmente, deram preferência a aulas conceituais, voltadas à história dos
esportes, a conhecimentos sobre o corpo e a questões teóricas envolvendo
atividades físicas e saúde. À medida que foram se apropriando de estratégias de
ensino para as aulas remotas, passaram a ministrar aulas práticas, incentivando
os alunos a se movimentarem, a partir de informações e de orientações que os
conduziam a realizar práticas de esportes, movimentos de ginástica, brincadeiras
ou jogos, entre outras atividades físicas. Contudo, “o que é da ordem da
socialização, da convivência com o outro, da compreensão de limites – do que a
escola, como a conhecemos, tem se encarregado –, parece não ter lugar neste
momento” (Machado et al., 2020, p. 10).
O retorno à presencialidade com 50% da turma
permitiu ao professor retomar os laços afetivos. “Eles falam o que sentem, o
que sentiram depois que a gente descobre o que aconteceu na pandemia”
(professor 4). O professor 3 complementa:
Eu
nunca aprendi a conhecer tanto o aluno como esse ano, porque sempre tu tinhas
28, agora tu tens 10, tu tens 12, eu nunca cheguei tão perto deles quanto esse
ano e entre eles também, eles também estão se conhecendo mais.
Nesse momento de retorno à escola, é importante
que o professor lembre o ensinamento de Freire (2016): ensinar exige saber
escutar. “O educador que escuta aprende a difícil lição de transformar o seu
discurso, às vezes necessário, ao aluno, em uma fala com ele” (Freire, 2016, p.
11). Escutar vai além da possibilidade auditiva de cada um, diz respeito à
disponibilidade do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao
gesto, às diferenças, nos diz o autor.
Dessa forma, a partir da escuta, o professor de
EF pode pensar suas aulas olhando para as necessidades dos alunos que
permaneceram mais de um ano sem estar na escola e com restrições em relação ao
tipo de atividades que podiam ser realizadas na EF, quer pela ausência de
colegas para fazer atividades coletivas, quer pela indisponibilidade de acesso
a espaços e materiais adequados. Nesse sentido, entende-se que novos estudos
são necessários para compreender se o isolamento social tem provocado mudanças
na prática pedagógica da EF, no retorno às aulas presenciais.
Nesse estudo, no retorno às aulas presenciais, os professores
percebem a necessidade de trabalhar a socialização, a aptidão física voltada à
saúde e de resgatar a EF enquanto prática, cuja essência é a experimentação
corporal.
Em relação à socialização, conforme os
professores 1 e 3:
Tu
trabalha [sic] mais no dia a dia de forma presencial, então acredito que esse
aluno a distância tu não consegue, são coisas que ficaram para trás, tu não
consegue trabalhar com eles porque tu não tem eles perto de ti. (professor 1)
Tem
muitos que consideram – Ah!, EF não reprova, tu não precisa fazer nada-, sabe,
aquela coisa, mas se for ver o outro lado, da socialização, da amizade, da
saúde, realmente, assim, esse lado que a gente tenta passar para eles, para
enxergarem isso, acho realmente muito importante. (professor 3)
Nas primeiras aulas desenvolvidas na escola, os
professores constataram uma reduzida aptidão física dos alunos, conforme
expressa o professor 3, reproduzindo falas dos alunos: “profe, eu não aguento”; qualquer caminhada
era “profe, eu não aguento, eu não fiz nada durante a
epidemia”, mais de um ano parados. Silva e Silva (2022) destacam que o
distanciamento social teve como tendência a diminuição da prática de atividade
física e esportiva, o que pode ocasionar o sedentarismo e, consequentemente,
problemas cardiovasculares e distúrbios psíquicos, como estresse, ansiedade e
distúrbio do sono. Contudo, não compete apenas à EF tematizar e buscar soluções
para o sedentarismo e a falta de interação social, problemas sociais
acarretados pela pandemia.
Durante a pandemia, o isolamento/distanciamento
social, as restrições de acesso a espaços públicos como praças e parques e o
aumento do uso das tecnologias digitais podem ter contribuído para o que foi
evidenciado pelos professores nas primeiras aulas em relação à reduzida aptidão
física dos alunos. Por outro lado, a preocupação com o desenvolvimento da
aptidão física na EFE nos leva a questionar se estamos conseguindo avançar na
construção de uma nova identidade. González e Fensterseifer
(2009) fizeram uma provocação ao afirmarem que a EFE encontra-se entre o “não
mais” e o “ainda não”. Em outras palavras, afirmam que rompemos com o paradigma
da aptidão física e do esporte de rendimento que a legitimava, mas questionam
se consolidamos uma EFE crítica tal como se almejou, engajada com a
transformação social.
Ao analisar as falas dos professores de EF,
percebemos que o paradigma da aptidão física ainda é uma perspectiva forte para
legitimar a importância desse componente curricular na escola: “Nós somos
estimuladores do movimento e a gente precisa desse aluno aqui na escola para
estimular ele a ter esse hábito da prática, do movimento, da atividade física”
(professor 1). Na escola “tem mais motivação, mais estímulo, tem os colegas, o
professor, então eles estão em movimento” (professor 2).
Ainda perguntamos aos professores o que poderia
ser incorporado às aulas presenciais, em termos de uso didático-pedagógico das
tecnologias digitais, cujo potencial é reconhecido, principalmente, na
complementação do ensino por meio de vídeos: “Na parte da tecnologia, é mais a
parte visual para eles, eu acredito assim, que a gente consegue chegar neles.
Às vezes, tu queres mostrar um jogo, uma regra, alguma coisa assim que tu pode
[sic] mandar um vídeo antes no grupo” (professor 4). Contudo, entende-se que a
essência é o movimento: “Ela ainda é a aula mais
esperada, isso eu vou dizer para vocês […] não adianta, a tecnologia pode ter o
vídeo, pode ter o Meet, eles querem a
gente aqui e a prática é o correr” (professor 4).
Professores e equipe diretiva também manifestam
sua satisfação pelo fato de retornarem às aulas presenciais na escola: “Ano
passado, a gente sentiu, assim, uma
tristeza muito grande, com todo esse espaço, a escola como um todo […] o
presencial é vida para nós, é vida na escola” (direção, escola B); “A gente tá
feliz que a gente voltou” (professor 4); “Então, esse ano, quando chamaram,
parece que tirou um peso da gente. Voltar para a escola, não tem coisa melhor”
(professor 3).
Quanto à EF e seu papel no retorno às aulas
presenciais, a coordenação pedagógica da escola B reforça sua importância, ao
afirmar que:
[…] é um dos componentes curriculares mais amados
do 6º ao 9º, isso não há dúvidas, então o que a gente percebeu agora no
retorno, desde abril [2021] quando os alunos voltaram: a vida na escola voltou
a se manifestar principalmente nas aulas de EF.
Aqui podemos nos reportar ao questionamento de Sibilia (2012): para que precisamos da escola hoje, se
vivemos numa sociedade na qual a informação está disponível, acessível, na Internet? Após a experiência do ERE, um
ensino mediado pelas tecnologias digitais nunca experimentado antes, temos mais
subsídios para refletirmos sobre essa questão. A virtualização do ensino não
consegue abarcar todas as necessidades de formação e desenvolvimento dos
estudantes, uma vez que a escola é mais que o ensino de um rol de temas e conteúdos.
Considerações finais
Constatou-se que a pandemia desafiou as escolas a
encontrarem novos caminhos para ensinar, exigindo qualificação dos professores
em relação ao uso das tecnologias digitais, entre elas, os recursos do Google for Education,
especialmente, o Classroom
e o Meet. Para os alunos sem acesso à
Internet, as atividades foram
disponibilizadas de forma impressa. O WhatsApp
foi utilizado apenas pela equipe diretiva das escolas, para auxiliar na
comunicação com alunos e familiares.
A rede de ensino investigada realizou
planejamentos coletivos por área de conhecimento, possibilitando o compartilhamento
das experiências vividas pelos professores nas práticas pedagógicas, durante a
pandemia. Assim, houve o fortalecimento da coletividade, do diálogo entre
professores e a retomada de discussões acerca dos temas planejamento e
didática, pois o novo contexto pedagógico exigiu pensar em metodologias de
ensino mediadas pelas tecnologias digitais.
Em relação às aulas de EF, os professores citaram
a dificuldade de acompanhar o envolvimento dos alunos, principalmente dos que
retiravam as atividades impressas na escola, pois faltou o contato direto com
eles. O uso de vídeos já disponíveis em plataformas, tal como o YouTube, relacionados aos objetos de
ensino da EF ou à produção de novos por parte de professores e alunos foi
destacado como recurso que possibilitou acompanhar melhor a aprendizagem.
Contudo, o distanciamento físico/social fragilizou o desenvolvimento da
socialização e da aptidão física, aspectos necessários à saúde dos alunos, os
quais, os professores entendem que precisam ser reforçados no retorno às aulas
presenciais.
Para além da aptidão física e da socialização,
também há necessidade de acentuar outras finalidades para a EFE. A pandemia
sinaliza a importância de discutir o papel da EF na escola, o seu compromisso
de criar um contexto de experimentação da diversidade das práticas corporais,
de construir saberes que se dão no corpo e a sua responsabilidade na formação
de alunos críticos do seu contexto social, tendo em vista a transformação
social. Como ressalta Mauro Vago (2022), “[…] não existe ‘Educação Física’ no
vazio, no abstrato: existe uma prática de ensino em Educação Física que só
acontece em presença de seus sujeitos, professores/as e estudantes, com suas
histórias e experiências em seus corpos”.
Portanto, há de se pensar, nesse momento de
retorno à presencialidade, sobre o que aprendemos no período de aulas remotas,
olhar para a potencialidade das tecnologias digitais e para a relação dos
alunos com as linguagens contemporâneas, entre elas, a produção de imagens e
vídeos. Contudo, também é preciso reafirmar posições importantes, entre elas,
para a EF, que não há como substituir a experiência corporal, pois ela é uma
construção própria de cada um, como afirma Hildebrandt-Stramann
(2009, p. 28): “a experiência distingue-se pela ligação com o próprio agir”.
Além do mais, criar condições didático-pedagógicas para os alunos construírem e
ampliarem suas experiências compete à escola.
Necessitamos, também, criar espaços de diálogo e
de escuta para alunos e professores. Contudo, são atitudes que devem ser
permanentes por parte de quem acredita numa escola construída por professores,
alunos e familiares e crê que o trabalho colaborativo da gestão escolar e dos
professores a fortalece enquanto instituição na qual se aprende e se exercita a
democracia.
Por fim, o estudo apresenta como limitação o fato
de a análise ter se dado a partir das entrevistas realizadas com os professores
de EF e gestores. O acesso ao AVA utilizado pelos professores, o acompanhamento
de aulas realizadas no Google Meet e a escuta dos estudantes teria contribuído
para ampliar a compreensão de como ocorreu o ERE nas escolas investigadas e
como está se dando o retorno presencial. Por essa razão, sugere-se, como
continuidade, investigar as percepções de alunos no Ensino Fundamental em relação
às aulas que tiveram no ensino remoto e como está ocorrendo o retorno à escola.
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[i] Doutor em Ambiente e
Desenvolvimento pela Universidade do Vale do Taquari (Univates)
(2016). Professor dos cursos de graduação em Educação Física e do Programa de
Pós-Graduação em Ensino da Univates.
[ii] Mestre em Administração com
ênfase em Recursos Humanos pela Universidad
de Ciencias Empresariales y
Sociales (2016). Mestranda do Programa de
Pós-Graduação em Ensino da Univates.
[iii] Acadêmico de Psicologia da Univates.
[4] A pesquisa contou
com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande
do Sul (FAPERGS).