Artigo

Escola centrada n’A criança: ainda é possível aos alunos identificar-se com professores?

Escuela centrada en El niño: ¿pueden los alumnos identificarse con los profesores?

Child-centered school: is it still possible for students to identify with teachers?


Douglas Emiliano Batista[i]

Universidade de São Paulo

São Paulo, SP, Brasil

douglasemiliano@usp.br

https://orcid.org/0000-0001-5345-1575

Recebido em: 16/04/2022

Aceito em: 12/07/2022

Publicado em: 20/07/2022

Linhas Críticas | Periódico científico da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil

ISSN: 1516-4896 | e-ISSN: 1981-0431

Volume 28, 2022 (jan-dez).

http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas

Referência completa (APA):

Batista, D. E. (2022). Escola centrada n’A criança: ainda é possível aos alunos identificar-se com professores? Linhas Críticas, 28, e42949. https://doi.org/10.26512/lc28202242949

Link alternativo:

https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/42949

Licença Creative Commons CC BY 4.0.


Resumo: O artigo problematiza a emancipação política das crianças. Tendo esta sido concebida sob a inspiração essencialista da psicologia, ela centrou a escola em A criança. O artigo se inscreve no campo Psicanálise e Educação e tem, como conceitos centrais, sujeito do inconsciente; transferência; (des)identificação; e trabalho via di porre. Sustenta-se que a emancipação dos alunos não ocorre sem que, transferencialmente, eles se identifiquem aos professores, posicionando-os no lugar de Ideal-do-eu. Conclui-se que, graças à identificação, os alunos adquirem traços simbólicos que enriquecem seu Ideal-do-eu, assim como, graças à desidentificação ao mestre, os alunos subjetivam os conhecimentos escolares.

Palavras-chave: Psicanálise e Educação. Sujeito do inconsciente. Transferência. Transmissão simbólica. Identificação.

Resumen: El artículo problematiza la emancipación política de los niños. Habiendo sido concebida esta bajo la inspiración de la psicología, ella centró a la escuela en El niño. El artículo se inscribe en el campo Psicoanálisis y Educación y tiene como conceptos: sujeto del inconsciente; transferencia; (des)identificación; y trabajo via di porre. Se sostiene que la emancipación de los alumnos no ocurre sin que ellos se identifiquen con profesores, poniéndolos en el lugar de Ideal-del-yo. Se concluye que, gracias a la identificación, los alumnos adquieren rasgos simbólicos que enriquecen su Ideal-del-yo, así como, gracias a la desidentificación al maestro, los alumnos subjetivan los conocimientos escolares.

Palabras clave: Psicoanálisis y Educación. Sujeto del inconsciente. Transferencia. Transmisión simbólica. Identificación.

Abstract: The article problematizes the political emancipation of children. Having been conceived under the essentialist inspiration of psychology, it focused the school on The Child. The article is inserted in Psychoanalysis and Education and has as concepts: subject of the unconscious; transference; (dis)identification; and work via di porre. It is argued that the emancipation of students does not occur without transferential identification with teachers, positioning them in the place of the ego-ideal. It is concluded that thankful to this, students acquire symbolic traits that enrich their ego-Ideal, just as, grateful to the disidentification with the master, students subjectivize school knowledge.

Keywords: Psychoanalysis and Education. Subject of the unconscious. Transference. Symbolic transmission. Identification.




Introdução

Não parece haver lugar para muitas dúvidas, em nossos dias, a respeito do estatuto que a infância adquiriu há cerca de cem anos. Desde aproximadamente os anos vinte do século XX, o reconhecimento da infância enquanto tal teria finalmente sido logrado e, portanto, a existência mesma das crianças, em sua mais absoluta especificidade, passara a ser admitida como nunca o fora antes. Em outros termos, a chamada invisibilidade histórica da infância teria dado lugar, há um século, a uma visibilidade resplandecente (Voltolini, 2021, p. 418). Ou ainda: tendo deixado definitivamente para trás a alegada condição de não sujeito, os pequenos começaram então a supostamente usufruir com plenitude da condição de sujeito universal. Em síntese, como pontua o autor: “As crianças, certamente, sempre existiram; mas agora possuem um estatuto político: a infância. Esta emancipação política da infância mereceria ser parcimoniosamente analisada […]” (Voltolini, 2021, p. 418).

Nesses termos, a chamada emancipação política das crianças coincidiu com o que teria sido o deciframento cientificista e psicologizante da essência da infância nas primeiras décadas do século passado. Isto é, a infância maior (Gallo & Limongelli, 2021) –pretensamente emancipada dos adultos – teria sido impulsionada mediante o desvelamento psicológico da dita natureza universal da criança. Graças a isto é que a criança em si ou a criança universal – e não mais o adulto em miniatura de outrora – acabou por se tornar o centro mesmo de toda educação. Logo, foi aproximadamente desde a segunda década do século XX que, por exemplo, o dispositivo escolar foi centrado na chamada criança universal, ou seja, em A criança autônoma. E, mediante tal centramento, a minoria infantil começou a ser libertada da maioria adulta em nome da plena autorrealização das novas crianças emancipadas[2].

Ora, como é notório, a Pedagogia foi primordialmente o campo de estudos incumbido da responsabilidade de consolidar essa imagem ideal e até mesmo total d’A criança autônoma. Servindo-se de saberes provenientes de campos científicos específicos como a Psicologia da Educação, a Sociologia da Educação etc. –as assim designadas Ciências da Educação –, a Pedagogia pretendeu poder representar a criança como um todo graças à fusão de tais saberes específicos, o que lhe permitiria intervir com maior eficácia sobre este objeto tão visado e precioso (Voltolini, 2021). Entretanto, ao se deparar com a miragem da infância em si –da infância em sua totalidade, universalidade, objetividade e independência –, restou então à Pedagogia, colonizada como nunca pelo cientificismo psi, fazer dessa criança universal o próprio centro do universo educacional. E é óbvio que, em termos escolares, isto implicou tornar o aluno e seu aprendizado tão centrais quanto viriam a se tornar marginais o professor e seu ensino. Se a criança passou assim a ocupar o centro da cena escolar, ou, em outras palavras, se ela se tornou a protagonista de tal cena, ao professor coube aí o lugar de mero coadjuvante (a saber: o lugar de facilitador, animador, tutor etc.). Ou em termos mais contemporâneos: se o aluno foi, desta forma, empoderado no interior do dispositivo escolar, ao professor restou fundamentalmente a desautorização, a deslegitimação e o descrédito. E isto pelo fato da docência ter sido indevidamente associada ao exercício – concebido aí como necessário e não como contingente – da opressão e persecução aos alunos, ao que ainda se somaria a dita presunção ou arrogância magistral em termos acadêmico-institucionais, além da alegada veiculação aos discentes de conhecimentos pretensamente mortos, petrificados, obsoletos e inúteis. A propósito, é muito provavelmente com base nesse tipo de caricatura que se difundiu o clichê segundo o qual a escola seria uma instituição do século XIX; o professor, um profissional do século XX; e o aluno, uma criatura do século XXI. Evidentemente, o que um lugar-comum como este acaba veiculando é a concepção de que o professor devidamente atualizado seria aquele que se eclipsaria de saída – renunciando com isso à autoridade docente – para então tornar sua intervenção educativa pretensamente adequada (isto é, complementar) à dita psicologia ou à chamada realidade do aluno (Lajonquière, 1999), o que colocaria finalmente o discente no centro de um dispositivo escolar tomado assim como inovador.

Pois bem: é justamente tendo em vista essas mutações tão profundas em torno da noção de infância, as quais foram se hegemonizando desde os anos vinte do século passado, que este artigo, pautando-se teoricamente no campo da Psicanálise e Educação, se propõe a analisar alguns efeitos da pseudo-emancipação infantil que incidiram particularmente sobre a escola e sobre a relação – ou melhor, sobre o laço transferencial – entre professores e alunos. Nesse sentido, busca-se realizar aqui uma investigação teórica e bibliográfica, isto é, uma indagação reflexiva pautada em textos e fontes. E, logo, a perspectiva teórico-conceitual do campo da Psicanálise e Educação será particularmente importante na medida em que permite sustentar a concepção de que a efetiva emancipação dos alunos não tem lugar na escola sem que, pela via da transferência[3], eles primeiramente mergulhem no mundo dos adultos para, assim, se identificarem com alguns dentre estes últimos – muito particularmente, é claro, com determinados professores. Afinal, tal identificação a certos mestres é mesmo a condição de possibilidade para que os alunos possam, mais tarde, emergir subjetivamente singularizados –em outras palavras, para que possam, posteriormente, se desidentificar de seus mestres em nome do estabelecimento de uma relação singular com as tradições epistêmicas, éticas ou estéticas veiculadas na e pela escola. Ademais, é estritamente em meio à transmissão intergeracional de cultura que tal identificação e tal desidentificação podem vir a produzir seus efeitos mais frutíferos em termos formativos (Batista, 2022).

Em vista disto, o que se pretende expor aqui é fundamentalmente a tese de que a emancipação ou separação dos alunos pressupõe – ao contrário de repelir – uma identificação ou alienação aos professores e, logo, aos traços culturais e simbólicos veiculados por estes na escola. Tal identificação, por sua vez, opera no âmbito escolar a partir justamente do campo transferencial inconscientemente sustentado por um aluno em face de certo professor. Em síntese: não é de modo algum sem o outro docente, e muito menos sem o grande Outro (a linguagem simbólica), que a possibilidade sempre inassegurável a priori de emancipação dos alunos pode vir eventualmente a ter lugar na vida escolar.

 

Transmissão de traços ou procedimento via di porre

Com base no que foi brevemente exposto acima, talvez já se disponha de alguns elementos para começar a legitimar o argumento de que, quando o professor agencia o discurso pedagógico centrado em A criança – discurso o qual, além de ter começado a se difundir há cem anos, é constituído de traços cientificistas de teor psi –, tal professor se marginaliza, assume um papel secundário e se desautoriza diante de seus alunos, da escola e da educação de um modo mais geral. Isto é, ao agenciar esse discurso psicologizado, o professor então se demite do ato educativo (Lajonquière, 1999). Sob o efeito do discurso pedagógico centrado n’A criança, o professor mal se dá conta de levar a cabo uma espécie de auto-exclusão docente, a qual tende a ser mais invisível do que as diversas modalidades de exclusão que acometem os alunos.

De fato, em face do centramento psicologizante do dispositivo escolar nos aprendizes – centramento que é o objeto de análise por excelência desta reflexão –, a atenção do mundo adulto à exclusão discente tende a ser muito maior e mais efetiva do que a atenção à exclusão que acomete os professores mesmos, razão pela qual, quando se pensa em exclusão escolar, raramente esta última costuma dizer respeito à posição docente no interior de um dispositivo que, tendo se centrado no aluno e em sua psicologia individual, empurrou para as sombras a transmissão cultural escolar (Blais et al., 2014, p. 105). A propósito disso, e como bem observam Blais et al., a transmissão intergeracional de cultura é de fato estrutural e, logo, não pode a rigor deixar de ocorrer (o que quer dizer que o laço social é simplesmente inviável sem tal transmissão). Contudo, e ainda que seja “irredutivelmente primeira” (Blais et al., 2014, p. 104), a referida transmissão intergeracional de cultura pode, sim, vir a sofrer uma degradação de sua eficácia simbólica em virtude de contingências históricas ou discursivas. Tal é o caso, por exemplo, do que ocorre quando o discurso pedagógico que é hegemônico em certo contexto histórico impele os alunos, tanto quanto possível, a aprenderem por si mesmos, individualmente e, de preferência, “na prática” (o que se dá, é claro, em detrimento do aprendizado que emerge do e no laço transferencial com o professor). Ora, este é o caso, exatamente, do discurso pedagógico centrado n’A criança autônoma, como Arendt bem o demonstrou. É que na escola, cujo centro é O aluno, o professor tem de abrir mão de seu ensino a fim de meramente demonstrar como o conhecimento é produzido (Arendt, 2005, pp. 229-234), de modo então que o aluno possa, com isso, produzir por si mesmo o conhecimento, ou seja, de modo que o aluno possa aprender por si e não a partir do que o professor ensina.

O discurso pedagógico centrado n’A criança, o qual goza de uma já centenária hegemonia no âmbito da educação escolar, lança o professor que o agencia à renúncia ao ato educativo. Ou, em outras palavras, este discurso tem o condão de fazer os docentes renunciarem àquilo que, na Psicanálise, recebe, desde Freud, a designação de procedimento via di porre – expressão que foi extraída pelo psicanalista da obra de Leonardo da Vinci (Freud, 2016, pp. 336-337).

Ora, o trabalho per via di porre é próprio ao ofício do pintor e consiste essencialmente em acrescentar traços a uma dada superfície, tal como ocorre no caso dos pigmentos de tinta depositados em um muro, em uma tela etc. Em termos escolares, o trabalho via di porre é tal que propicia a transmissão – por parte do docente aos alunos – de traços simbólicos ou identificatórios, traços estes que, fundamentalmente, são veiculados de modo inconsciente[4]. Desta forma, tal transmissão de traços ou marcas opera no avesso daquilo que é deliberadamente ensinado por um docente. Ou seja, a transmissão de traços simbólicos transcorre em negativo ao ensino mesmo de conteúdos (Lajonquière, 1999), de modo, portanto, que tal transmissão é latente enquanto o ensino é sempre manifesto. Nesse sentido, e em termos exclusivamente metafóricos, o ensino e a transmissão são como que dois lados da mesmíssima moeda. Ou, em termos mais rigorosos, transmissão e ensino compõem a mesmíssima banda de Moebius, o que quer dizer que não há entre eles uma relação de exterioridade e interioridade, mas, antes, de extimidade, ou seja, de uma exterioridade íntima[5]. Eis, portanto, que o ensino e a transmissão se pressupõem mutuamente. Entretanto, a transmissão e o ensino não se sobrepõem, de forma alguma, um ao outro, e isto em virtude de cada qual contar com uma eficácia e uma legalidade próprias (Lajonquière, 1999).

Na esteira disso, se ensinar é ensignar e se trata de, conscientemente, colocar ou as letras, ou a matemática, ou as leis da física e da química etc. em signos, já no que concerne à transmissão, trata-se antes de, inconscientemente, colocar aquelas em significantes. E se, justamente, é o caso do ensigno excluir de cena o sujeito que ensina na medida mesma em que a biunivocidade própria ao signo – isto é, própria ao significado (conceito) e ao significante (imagem acústica) que o compõem –encontra-se dada de antemão; no tocante à perspectiva psicanalítica acerca do significante, a primazia recai sobre a própria cadeia (de significantes) bem como sobre o efeito de significado que tal cadeia suscita disruptivamente. Logo, a primazia dos significantes articulados entre si – ou seja, da cadeia simbólica – sobre o imaginário-binário do signo (a referida biunivocidade entre significado e significante) abre uma brecha para o sujeito que ensina entrar aí com sua interpretação, a qual se torna possível ao passo em que os significantes, uma vez combinados e recombinados entre si, subvertem a referida biunivocidade sígnica, suscitando, dessa maneira, o equívoco ou a polissemia que são inerentes à linguagem simbólica[6]. Daí, então, que se o aluno recebe passivamente marcas que, em princípio, são transmitidas pelo outro (o docente), o qual se encontra assujeitado inconscientemente ao Outro (a linguagem simbólica, plurívoca), o mesmíssimo aluno, no après-coup, posiciona-se ativamente em relação a estas marcas, o que coloca em funcionamento uma espécie de dialetização – primordialmente inconsciente, uma vez mais – entre passividade e atividade. Esta dialetização que implica uma apropriação simbólica –aquisição plurívoca, polissêmica – por parte do aluno. Trata-se, em suma, da subjetivação do que lhe foi transmitido.

Essa dialetização (que é sem síntese, vale dizer) entre atividade e passividade ressoa algo do raciocínio de Bondía (2002) a respeito da noção de experiência e de sujeito da experiência. A experiência, segundo o autor, não concerne meramente a algo que ocorre, acontece ou se sucede objetivamente, mas antes àquilo que ocorre, acontece ou se sucede para alguém; ela não é, portanto, apenas aquilo que chega factualmente, mas é, antes, aquilo que nos chega, isto é, que chega para um ou mais sujeitos. Logo, o sujeito da experiência é como que um espaço no qual tem lugar aquilo que acontece, ocorre ou se sucede; ele é um ponto de chegada de tudo o que lhe chega. Ele é, pois, um “território de passagem” em que aquilo que acontece “inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios” (Bondía, 2002, p. 24). Contudo, o sujeito é, mais ainda, “como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lugar” (Bondía, 2002, p. 24). Eis, portanto, que, ao dar lugar aos traços que lhe chegam, o sujeito então se posiciona acerca deles e, logo, não se deixa reduzir a um objeto deste acréscimo de traços. Ora, mas ocorre que, no caso do sujeito de aprender, é preciso, em nome da possibilidade de que a experiência formativa venha a lhe ocorrer, que ele esteja disponível, aberto ou susceptível ao que lhe chega vindo do outro docente (logo, vindo do Outro que assujeita inconscientemente esse outro). Pois, se não for assim, as condições para que a experiência escolar possa acontecer ao aluno se tornam muito improváveis, justamente pelo fato de que para alguém fazer uma experiência é preciso que venha a perder poderes (Bondía, 2002, p. 25). Portanto, o aluno empoderado, central e sempre ativo se coloca em uma posição bem pouco propícia para que o trabalho via di porre por parte do professor venha a surtir efeitos simbólicos, formativos e subjetivantes para o próprio aluno. Ou seja, em tais condições, o narcisismo do discente como que o blinda o quanto possível em face da possibilidade de haver uma experiência escolar na qual esteja em jogo verdadeiramente a alteridade que é própria aos traços simbólicos, aos traços do Outro. Por sinal, tal alteridade simbólica é tão fecunda que não apenas o aluno, mas o professor mesmo pode aprender enquanto ensigna. Isto em função de a subversão dos signos pela cadeia significante ser tal que, ao professor, é dado surpreender-se com a própria fala (ou com a fala dos alunos, é claro). Assim, o aprender implica se surpreender com certas equivocações que o dizer provoca em face do já dito, do instituído, do consumado etc. Na mesma direção, Giuliano (2020, p. 138, tradução nossa) nos lembra então que o professor que “se situa no coração do impossível é capaz de suportar – no sentido de dar suporte – uma traição enquanto uma tradução ou enquanto uma transgressão a que seu ensino é capaz de convidar”. De fato, o mestre referido a esse impossível transmite a possibilidade da transgressão de seu ensino pelos alunos.

 

Transferência: poder docente e identificação discente

Como foi brevemente assinalado acima, o trabalho via di porre pressupõe a transferência por parte do aluno ao professor. E, na transferência, o aluno inconscientemente toma este ou aquele professor como um sucessor fantasmático do(s) pai(s) da primeira infância. De forma mais específica, pode-se afirmar que, na transferência, o aluno inintencionalmente coloca o professor no lugar do Ideal-do-eu. E, segundo Millot (1992, p. 128), o Ideal-do-eu:

[…] é produto da identificação primitiva ao pai (ou a quem cumpre, para a criança, o papel deste), que se vê reforçada no complexo de Édipo. Essa identificação constitui o núcleo, que será enriquecido pelas identificações posteriores, às pessoas que forem levadas a ocupar esse lugar de Ideal-do-eu, como os mestres e educadores.

Com respeito ao Ideal-do-eu e sua gênese, importa ressaltar que tal instância psíquica, sendo simbólica, se distingue do Eu-ideal, que é imaginário, bem como que o primeiro está para as recombinações da cadeia significante assim como o segundo está para a biunivocidade fechada do signo (Lajonquière, 1993, p. 239). Isto é, se, no tocante à subjetivação de uma criança, o protótipo de seu Eu se forma à medida que tal criança é biunivocamente alienada à imagem de criança ideal que o Outro materno veicula, o que inscreve assim o Eu-ideal no psiquismo daquela, a posterior ruptura com tal imagem ideal dependerá, por outro lado, da interpelação simbólica do Outro paterno, o qual, ao representar a Lei de interdição ao incesto (a Lei da linguagem simbólica), propiciará a inscrição do Ideal-do-eu no psiquismo infantil. Em outras palavras, é tão somente em face dessa inscrição simbólica que a criança deixará de tomar a imagem de si mesma como sendo a ideal, o que então permite a ela passar a perseguir agora um ideal cujo estofo é constituído de palavra e de linguagem, ideal este que, portanto, é estruturalmente inalcançável posto que abstrato, polissêmico, plurívoco etc. Pois bem, é por ser da ordem do inatingível que o Ideal-do-eu causa no sujeito o desejo de seguir desejando, o que permite a esse sujeito, por exemplo, gozar de certos objetos de satisfação sem com isso deixar, é claro, de desejar (isto é, sem deixar, por exemplo, de seguir deslizando pela cadeia de significantes a fim de produzir o gozo de um sentido derradeiro, sentido o qual, todavia, nunca advém e tampouco pode advir justamente por ser da ordem do impossível). Trata-se, assim, de gozar; mas não sem desejar[7].

Bem, é na medida em que, na transferência, o aluno coloca inconscientemente o professor no lugar do Ideal-do-eu que o mestre passa, assim, a dispor de um poder de sugestão sobre o aluno. E este poder de sugestão, por seu turno, é o que confere eficácia simbólica à transmissão de traços. Ou seja, é a sugestão transferencial que proporciona pregnância ao procedimento via di porre. Entretanto, ao agenciar o discurso pedagógico centrado n’A criança, o professor abdica de tal poder sobre o aluno sob a ilusão de que o discente estaria assim sendo emancipado. Diante disso, o professor abre mão de um exercício ético do poder a favor de que o aluno seja ele mesmo empoderado e, portanto, para que este se torne de saída o protagonista da cena escolar. Entretanto, tal como lembram Corso e Corso (1997), o problema aí aninhado é exatamente o de que os professores renunciam ao lugar de “possíveis modelos identificatórios” (Corso & Corso, 1997, p. 91) para seus alunos. Sob o empuxo que o discurso pedagógico centrado n’A criança fornece, o professor se vê em meio a grandes dificuldades para se manter em um “lugar propiciatório às identificações” (Corso & Corso, 1997, p. 92) discentes. E se, em um cenário como este, a identificação dos alunos aos professores não chega a se tornar completamente impraticável, ela, no entanto, se torna um fato de difícil acontecimento. Portanto, tal renúncia docente torna psiquicamente mais onerosa, para os aprendizes, a identificação junto aos ideais simbólicos (provenientes do Outro) e aos ideais públicos que são, ou deveriam ser, veiculados pelos professores na escola. Em outras palavras, este cenário acirra as vicissitudes que são inerentes ao acréscimo de traços no Ideal-do-eu do discente. Em suma, o que está em questão é uma espécie de dessimbolização do psiquismo dos discentes em decorrência da pregnância e da hegemonia de um discurso pedagógico que, pretendendo emancipar precocemente os aprendizes, entrega-os de saída a uma espécie de orfandade simbólica. É que como assevera Millot (1992, p. 128):

O processo educacional […] requer que o educador assuma o lugar do Ideal-do-eu, de sorte que o educando se submeta a suas exigências, e, por outro lado, a fim de que o próprio Ideal-do-eu do educando, pela absorção de certos traços do educador, sofra sua influência.

A propósito de tal orfandade simbólica e do empobrecimento no acréscimo de traços no Ideal-do-eu dos alunos, o que decorre da dificuldade por parte destes de se identificar a seus mestres, talvez seja oportuno trazer à baila aqui uma hipótese concernente aos recorrentes casos de jovens – ou eventualmente até de crianças – que se automutilam, isto é, que se fazem marcas corpóreas tais como cicatrizes, cortes, escarificações etc. Cabe aqui indagar se esses jovens ou até crianças não estariam, mediante isto, denunciando inconscientemente a hegemônica renúncia adulta à educação (renúncia que teve sua gênese discursiva e sobretudo institucional, tal como afirmado, por volta dos anos vinte do século passado, e que viria a se intensificar expressivamente em nossos tempos neoliberais). Não estariam aqueles denunciando a renúncia prevalente por parte dos adultos em se colocar numa posição mais propícia à aquisição de traços identificatórios pelos mais novos? Afinal, é na medida em que os adultos abdicam da transmissão de marcas simbólicas na educação a favor de uma emancipação precoce das crianças e dos jovens que, então, esses adultos acabam por obrigar os mais novos a serem livres (Millot, 1992, 149). E isto como se as crianças e os jovens pudessem ou devessem se fazer por si mesmos, como se fossem self-made men, self-made women. Millot observa ainda, e com astúcia, que obrigar as crianças e os jovens a se emanciparem dos adultos o quanto antes, tal como se aqueles pudessem ou devessem se autoengendrar, corresponde com exatidão a obrigá-los a desejar (Millot, 1992, 149), sendo ainda que, por óbvio, a obrigatoriedade do desejo só pode condená-los à exclusão. Nesse sentido, as crianças e jovens estariam denunciando com suas marcas no real da carne o fato de as vicissitudes inerentes ao acesso simbólico ao desejo terem sido acirradas por um imaginário educacional cuja origem, tal como se propõe aqui, é centenária.

Todavia, importa ainda frisar que, mediante tal hipótese, não se pretende subestimar a variedade e complexidade das causas que estão em jogo quando um jovem se automutila. Talvez tal hipótese opere como um pano de fundo muito frequente atualmente, mas que, nem por isso, exclui especificidades etiológicas de difícil compreensão em sua concretude. De toda forma, e a exemplo do que afirmam Blais et al. (2014, p. 83), “quanto menos os adultos transmitem, mais as crianças se submetem à tirania do grupo”. Ou, mais ainda, com o declínio mesmo da transmissão (Batista, 2012), as crianças ficam então submetidas, talvez como jamais o foram antes, aos imperativos do mercado, e isto sobretudo no contexto do ultraliberalismo (Dufour, 2005), contexto que, por sinal, cooptou com extraordinária facilidade, em termos “educacionais”, o ideário cientificista, psicologizado e naturalizado da escola centrada em A criança emancipada. A propósito, tal cooptação constitui mesmo uma linha de continuidade da presente pesquisa, no sentido de que a escola centrada em A criança parece ter antecipado a racionalidade pragmática e individualista (Arendt, 2005) organizada em torno do princípio do rendimento, das competências e do produtivismo (Giuliano, 2020, p. 131), racionalidade que, nas últimas décadas, culminou na escola do capitalismo total, a qual é marcada pelo furor gestionário e pela (com)pulsão de avaliar (Giuliano, 2020, p. 127).

Ora, mas além do fato da pseudoemancipação das crianças posicioná-las tal como se elas, em suma, fossem adultos em miniatura (Arendt, 2005, p. 237), posto que elas são obrigadas a tomarem decisões por si mesmas tal como se já estivessem prontas para um vida pública propriamente dita, por outro lado, os professores, mediante a renúncia a educar, dão a ver ademais o fato de que já não querem interferir nos processos dos alunos, como se tornou comum dizer. Tudo se passa como se os professores já não fossem capazes de desejar mais nada em nome de seus alunos. Ou, em suma, é como se os docentes apenas e tão somente quisessem agora que os alunos se determinassem por conta própria o mais cedo possível.

A partir de tal quadro é inevitável inferir que aquilo que – sobretudo inconscientemente – o adulto postula é uma espécie de neutralidade, a qual não é de forma alguma do mesmo teor da suposta neutralidade própria ao paradigma tecnicista de educação. No contexto em tela, trata-se antes de uma pseudoneutralidade proveniente de um campo de concepções educacionais e pedagógicas que se compreende como progressista. Entretanto, como bem lembra Millot (1992, p. 152) acerca dessa problemática, tal postulado é evidentemente um contrassenso na medida mesmo em que pais e professores não são – nem tampouco podem ser – neutros na educação, uma vez que eles são fundamentais na constituição e no adensamento (acréscimo de traços) do Ideal-do-eu das crianças em âmbito familiar e dos alunos em âmbito escolar. De certa forma, tudo se passa então como se os pais e os professores atravessados pelo discurso centrado n’A criança estivessem se confundindo com analistas, como observa Millot. Afinal:

Se na transferência o analista ocupa o lugar do Ideal-do-eu, deve aí fazer-se de morto (eis um dos aspectos do que se denomina neutralidade do analista); diversamente do educador, ele não deve enunciar desse lugar exigência nenhuma, para não bloquear o processo psicanalítico. (Millot, 1992, p. 132)

Já na educação, contudo, não deve ser assim – nem tampouco é assim –, e isso porque em tal âmbito se “opera pela modelagem do Ideal-do-eu a partir do fornecimento de traços identificatórios” (Millot, 1992, p. 130), o que exclui a possibilidade de pais e professores se fazerem de mortos, não influenciando os “processos” de seus filhos ou de seus alunos, abstenção que pais e professores supõem poder sustentar a favor da pretensa autonomia e emancipação dos mais novos, ou seja, a favor de uma infância maior (Gallo & Limongelli, 2021).

 

Considerações finais

Se o procedimento via di porre é afinal característico do ofício do pintor e, por outro lado, também do professor, o procedimento via di levare é característico do ofício do escultor e, também, do analista (Freud, 2016, pp. 336-337). Enquanto o primeiro é definido pelo depósito ou acréscimo de traços, o segundo o é pela supressão deles, a exemplo dos traços que devem ser retirados do mármore, da madeira etc. pelo escultor a fim de que uma escultura possa vir ao mundo. Ora, tal como expõe com clareza Millot (1992), enquanto na educação escolar inevitavelmente estão em questão certos ideais públicos, sociais etc. a que os alunos devem inicialmente se alienar graças às intervenções dos professores, bem como à transferência dos alunos a tais professores, no caso da análise não se trata de forma alguma de se propor quaisquer ideais a que o analisante devesse se alienar e que seriam veiculados pelo analista de plantão. Ou, nos termos de Mannoni (1977, p. 45, destaques nossos): “A situação analítica é associal mas a pedagogia, por seu lado, é obrigada a se definir em relação a determinada sociedade; toda a pedagogia depende de uma escolha ideológica ou política”. Nesse sentido, o analista não se vale da transferência para então suscitar a identificação do analisante a determinado ideário; ao contrário: o analista opera aí como o escultor, o que então lhe permite suprimir traços aos quais o analisante previamente se alienou ao longo de sua educação e no transcorrer de sua vida no mundo adulto (experiências essas que necessariamente o neurotizaram, vale acrescentar). Decerto que, como discutido acima com base em Bondía (2002), o analista opera como um escultor a fim de que o analisando possa, conforme deseje, fazer ele mesmo a experiência de suprimir certos traços a que se alienou, experiência que, no entanto, não ocorre fora da análise e ou sem o analista-escultor. De todo modo, trata-se aí da suspensão do recalque do analisante ao contrário da consumação do recalque das pulsões em nome da possibilidade de vida na civilização, isto é, da existência de um mundo em comum ou da esfera pública etc. Em síntese, a supressão de traços consumada pelo analista e pelo analisante suscita que a separação psíquica – ou desidentificação – possa ter lugar, e, assim sendo, o analisante pode, por meio da análise, se confrontar com a emergência do desejo inconsciente que o habita (desejo o qual, como afirmado, foi recalcado exatamente em nome da possibilidade de existência de um laço social, isto é, da vida em comum na civilização).

Sendo assim, para Millot, a educação e a análise se opõem mútua e radicalmente, posto que a primeira pretende ou pretendeu um dia acrescer traços nos alunos (o que necessariamente os neurotiza), enquanto a segunda pretende suprimi-los nos analisantes (em nome de sua desneurotização). E, em vista disso, para a autora, não há qualquer possibilidade de dialetização (mesmo que sem síntese, vale destacar) entre análise e educação. Contudo, talvez as coisas não sejam, quanto a isso, tão estanques assim, ainda que, de fato, não se deva de forma alguma pretender fundir incestuosamente a psicanálise e a educação, posto que tal relação incestuosa inevitavelmente destruiria de uma única vez as duas.

Tomando-se o devido cuidado de reconhecer a mútua irredutibilidade desses distintos campos, bem como seus modos fundamentais – mas, talvez, nem tão exclusivos, como se verá de operação (acréscimo ou supressão de traços), podem-se entrever, por outro lado, certos liames entre eles. Sendo assim, eis que não se propõe aqui algo como um paralelismo clássico entre Psicanálise e Educação. Tanto é assim que, com Mannoni (1977, p. 47), pode-se mesmo aventar que haveria, na educação, algo do trabalho via di levare (o qual é inerente à análise): “O método de Rousseau tem pontos em comum com o método analítico, na medida em que se descortina nele [em Rousseau] uma vontade de supressão, de retraimento [por parte do mestre]”. É que, afinal, também o professor se suprime a certa altura de sua transmissão e de seu ensino (sem que isso implique, é claro, negligenciar uma ou outro). Isto é, o professor, em dado momento da educação de seus alunos, se retrai, se eclipsa – ainda que não o faça de saída, tal como propõem os defensores da pseudoemancipação precoce das crianças. Ao se suprimir a certa altura, o professor vislumbra, com isso, sobretudo inconscientemente, dar lugar à emergência do sujeito do desejo no aluno. Dito de outro modo, o professor visa à desidentificação ou, simplesmente, visa à apropriação subjetiva por parte dos discentes no tocante aos traços, conhecimentos, valores públicos, valores estéticos etc. que foram transmitidos na escola. Dessa maneira, a identificação dos alunos a determinados professores costuma ser seguida de uma desidentificação que suscita aos primeiros realizar uma experiência escolar propriamente dita, isto é, uma experiência na qual tais alunos, enquanto sujeitos de aprender, dão lugar ao que lhes chega da parte dos professores e da escola. Mais ainda, sob tal dialética sem síntese – a qual poderia ser designada de (des)identificação – o aluno não fica abandonado a uma espécie de vácuo existencial ou a uma deriva angustiante, tal como em princípio ocorre quando ele é entregue a si mesmo sob o pressuposto de que deveria ser tratado como se de fato fosse adulto ou cidadão já formado (Arendt, 2005, p. 237).

É importante, de todo modo, repisar aqui a ideia de que tal eclipse docente não se confunde de forma alguma com a renúncia à educação, que é inerente ao discurso pedagógico centrado em A criança. Da mesmíssima forma, a referida dialética de (des)identificação por parte dos alunos é antípoda da concepção de desenvolvimento natural que se tornou hegemônica na pedagogia desde há cem anos. É que, segundo tal concepção, haveria uma suposta essência infantil ou uma pretensa natureza universal das crianças que se encontraria enquistada em estado potencial no organismo dos pequenos e à espera de atualização por meio de estímulos ditos naturalmente adequados a essa capacidade maturacional inata (Lajonquière, 1993). Ora, muito ao contrário disso, a (des)identificação por parte dos alunos é uma operação linguageira que suscita o advento da “variedade da verdade nas crianças” (Voltolini, 2021, p. 218), que releva o real da pluralidade dos pequenos, ao contrário de fazer desabrochar – sob pressupostos cientificistas e psicologizados – o pseudouniversal d’A criança em si mesma e autônoma[8]. Por fim, o eclipse docente aqui referido nada tem a ver com a marginalização do professor no dispositivo escolar centrado em O aluno, bem como não atribui um papel coadjuvante ao mestre, nem tampouco desautoriza este último. O eclipse docente a posteriori, bem ao contrário disso, faculta ao aluno assassinar simbolicamente seu professor (mas isto, porém, tão somente após o professor ter dado lugar a efeitos simbólicos de acréscimo – e, depois, de supressão, por que não? – de traços no aprendiz). Ora, tal acréscimo e supressão de traços, como afirmado, retira a presente perspectiva de um paralelismo entre a Psicanálise e a Educação, dando lugar assim a uma interface entre os campos.

Eis que tal supressão de traços em âmbito educativo guarda algo em comum com a supressão que uma análise vislumbra, razão pela qual Freud, em sua obra, tal como nos lembra Millot, deu a entender que:

[…] uma educação acabada, isto é, bem-sucedida, deveria permitir a superação da dependência do sujeito para com as figuras parentais. O educador – bem como o analista – deveria visar, através da resolução do complexo de Édipo, à sua própria diluição como figura ideal. (Millot, 1992, p. 132)

Entretanto, nem por isso a transferência pode ser – quando se trata do eclipse do professor – “cabalmente” dissolvida tal como ocorre no setting analítico (além do fato de qual tal dissolução analítica da transferência sequer é visada pelo professor ou pela escola, por óbvio). É que o mestre, ao contrário do analista, não pode renunciar ao poder de sugestão que a transferência lhe confere (a menos que ele renuncie também à educação, tal como se procurou mostrar acima). Contudo, o eclipse a posteriori por parte do mestre talvez colabore para dissolver a transferência do aluno especificamente com esse mesmo mestre (e não com outros mestres, portanto). Tal modalidade de dissolução da transferência suscita, por um lado, a emergência do desejo (de saber) por parte do aluno nos termos de uma subjetivação do que lhe foi transmitido, ao mesmo tempo em que, por outro lado, enseja que novas transferências ocorram para esse aluno dentro e fora do âmbito educacional, o que propicia assim que mais traços possam vir a ser acrescidos em seu Ideal-do-eu pela via das identificações que ainda lhe ocorrerão. Já no caso da análise, como é notório, o procedimento de supressão de marcas impõe ao analista a renúncia ao poder de sugestão proporcionado a ele pela transferência (e cujo eixo, obviamente, vai do analisante ao analista). Ademais, por meio da travessia do fantasma do analisante, a dissolução da transferência ocorrerá, na análise, em um sentido muito mais estrito e até mesmo estrutural ou “definitivo”, efeito este que de modo algum está – ou deve estar – em pauta, é claro, para professores, coordenadores, diretores escolares etc. Ou, como assevera Millot (1992, p. 132):

O analista busca sua própria destituição do Ideal-do-eu de seu paciente. A análise da transferência, correspondente a resolução do complexo edípico, solapa, além disso, qualquer possibilidade de transferência posterior, e libera o analisante de sua dependência infantil para com a instância do Ideal-do-eu.

Dessa forma, talvez caiba então concluir, ao menos até onde é possível avançar neste artigo, que, pautada sobretudo – mas não exclusivamente – na identificação ao mestre e, logo, no acréscimo de traços no Ideal-do-eu do aluno, a educação escolar está às voltas então, de um ponto de vista mais estrutural[9], com uma identificação não toda dos alunos aos professores. E, assim, a educação também colabora na resolução do complexo edípico dos alunos no sentido de autorizá-los, ao fim e ao cabo, a aprender de acordo com o desejo que os habita – desejo que, desse modo, eleva o aprender a um apre(e)nder (Lajonquière, 1999), isto é, que faz do aprender uma experiência (Bondía, 2002). Logo, nem só de recalque vive a escola, muito embora ela não possa de modo algum renunciar a recalcar as pulsões dos alunos, e isso sobretudo em nome da vida em comum na polis.

Porém, afirmar que nem só de recalque vive a escola não significa propor que ela propriamente suspenda o recalque dos alunos, tal como ocorre aos analisantes em suas análises (desneurotização). Tal afirmação implica, antes, que, na inevitável busca educacional por um caminho possível “entre a Cila da não interferência e o Caríbdis da frustração” (Freud, 2010, p. 311), o Caríbdis da frustração está para o recalque nos alunos assim como a Cila da não interferência está para a possibilidade de irrupção do desejo neles. Ou seja, a Cila da não interferência diz respeito à espontaneidade das formações do inconsciente concebido aí como lugar do Outro no psiquismo humano e, logo, como lugar da divisão psíquica que nos assujeita (concepção que não se confunde, portanto, com a da espontaneidade do desenvolvimento dito natural de uma essência infantil, a qual habitaria o aluno compreendido aí como um indivíduo, isto é, como indiviso).

Por fim, talvez caiba também acrescentar mais uma reflexão aqui, mesmo que brevíssima, tendo em vista o ar do tempo: é que, se em termos educacionais, o campo progressista, tal como foi aludido acima, frequentemente se vê às voltas com a demissão do ato educativo por parte do docente em virtude da imperante renúncia ao trabalho via di porre (acréscimo de traços no aluno), renúncia esta que o discurso pedagógico centrado em A criança autônoma implica, por sua vez o campo do reacionarismo contemporâneo, no tocante igualmente à educação, vê-se às voltas com uma modalidade de renúncia que implica outra sorte de consequências problemáticas para a educação. Trata-se aí da renúncia docente ao trabalho via di levare (supressão de traços no aluno). É que, nesse caso, e tal como é bem conhecido, as ilusões costumam ser as mais clássicas: tipicamente ortopédicas. E, assim sendo, a defesa de escolas cívico-militares, bem como, por exemplo, a ideia de um suposto retorno aos tempos da autoridade docente – autoridade que remete em tal caso ao exercício da mais severa autocracia –encontram-se ambas tomadas pelo voto imaginário segundo o qual não deveria jamais haver limites para a identificação dos alunos aos professores e aos ideais veiculados pela escola. Ora, tal imaginarização da educação só pode fazer com que as vicissitudes próprias ao advento do sujeito do desejo nos alunos também sejam severamente acirradas (e ainda que tal acirramento se dê, nesse caso, por uma via distinta e até oposta ao da via progressista, é claro). Trata-se, assim, da recusa à desidentificação graças à qual a imprevisível, incontrolável e sempre heterogênea disrupção do sujeito do inconsciente pode ter lugar para os alunos na educação escolar. Bem, nesses termos, constitui então um limite deste estudo – mas também uma linha de investigação futura – a fusão de Cila e Caríbdis “em uma grande besta que permite para frustrar e frustra para permitir” (Giuliano, 2020, p. 128). É que, por vezes, a renúncia à via di porre na educação progressiva é apenas aparente, dando lugar a um feroz proselitismo político por parte do adulto (permitir para frustrar). E a renúncia à via di levare pelo reacionarismo visa, por vezes, promover um furor liberal e individualista nos alunos, inclusive culpabilizando-os pelo “fracasso” escolar (frustrar para permitir).

Entretanto, e muito distintamente disso, quando o que se pretende no âmbito da educação é conferir algum abrigo à inassegurável emergência do desejo em alunos e em professores, então, não será o caso de recuar nem do procedimento via di porre, nem do procedimento via di levare. E essa coragem dos adultos implicados subjetivamente com a educação escolar talvez corresponda, assim, à busca do referido “caminho entre a Cila da não interferência e o Caríbdis da frustração” (Freud, 2010, p. 311), caminho este sempre incerto, inseguro e que somente pode ser percorrido de forma singular. Por fim, tal caminho, enquanto um eixo ético por excelência na educação, é aquele que pode vir a livrar o professor, em termos formativos, tanto da omissão quanto também da opressão pseudoeducacionais.

 

Referências

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[i] Doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP) (2013). Professor doutor da USP.

[2] Desde os primórdios da Modernidade – começando com Juan Luis Vives, passando por Comênio e chegando a Rousseau – esteve em questão a pretensão de identificar a chamada natureza imanente à infância. Todavia, foi no século XX que a psicologização da educação colocou tal fastasmagoria – o universal A criança e, logo, a pretensa última palavra sobre a infância – no centro da escola.

[3] É graças à transferência que, inconscientemente, o aluno se equivoca ao tomar o professor (isto é, uma pessoa estranha) como um familiar, ou seja, como um sucessor fantasístico dos pais idealizados da primeira infância, os quais supostamente usufruíram da potestade de salvaguardar plenamente a criança em face do desamparo.

[4] Traços, aqui, são fonemas constitutivos de significantes. Afinal, um fonema é definido “pelos traços [sonoros] diferenciais que entretém com os outros [fonemas]” (Dufour, 2005, p. 125). E como o patrimônio de um povo é uma “herança cumulativa de traços” (Blais et al., 2014, p. 53), ele não pode ser transmitido ou adquirido intacto. Logo, sua transmissão é subjetivante.

[5] Até mesmo o que há de mais íntimo para os humanos se encontra, a um só tempo, fora de nós. Isto é, o próprio inconsciente, enquanto lugar do Outro, é êxtimo aos humanos, ou seja, é externo e íntimo ao mesmo tempo. Logo, a oposição entre interior e exterior não dá conta da relação do sujeito do inconsciente com o Outro e tampouco da transmissão com o ensino.

[6] A biunivocidade sígnica é subvertida pela cadeia significante. E, assim, um “charuto” é às vezes só um “charuto”, enquanto outras vezes, não. É que há uma biunivocidade entre “charuto” e “rolo de folhas de tabaco”. Porém, basta articular tal significante a outros e ocorrem equivocações: “Isto não é um charuto” – enunciado o qual alude a “Isto não é um cachimbo”, de Magritte (1929).

[7] Em suma, enquanto o Eu-ideal concerne à ilusão imaginária do Eu em torno de sua suposta indivisibilidade psíquica, a inscrição do Ideal-do-eu remete o sujeito à divisão psíquica que lhe é estrutural (castração simbólica), posto que a partir do reconhecimento inconsciente desta última o Eu não pode jamais coincidir com o ideal, o que, desse modo, causa no sujeito o seu desejo.

[8] A concepção psicanalítica de constituição do sujeito do inconsciente implica que este não se desenvolve naturalmente a partir de uma realidade germinal. Ou seja, a concepção de constituição do sujeito é antípoda da concepção – hegemônica na psicologia e pedagogia – de desenvolvimento de uma interioridade (essência) imanente ao indivíduo (Lajonquière, 1993, pp. 150-162).

[9] Já quando se pensa nas contingências históricas (isto é, no discurso social hegemônico, ou seja, no laço social), e não no estrutural da linguagem (Simbólico), o que salta aos olhos é, como já referido, o incremento das vicissitudes inerentes à identificação dos alunos aos professores em função da centenária hegemonia do discurso pedagógico centrado n’A criança.