Artigo
O conceito de
capital cultural sob a ótica da vigilância epistemológica
El concepto de capital cultural desde la
perspectiva de la vigilancia epistemológica
The concept of cultural capital from the perspective
of epistemological vigilance
Weslley Daniel Bueno Moraes[i]
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Porto Alegre, RS, Brasil
weslley.d.b.moraes@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0003-0269-7019
Recebido em: 04/04/2022
Aceito em: 06/06/2022
Publicado
em: 09/06/2022
Linhas
Críticas | Periódico científico
da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil
ISSN: 1516-4896 |
e-ISSN: 1981-0431
Volume 28, 2022
(jan-dez).
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas
Referência
completa (APA):
Moraes, W. D. B. (2022). O conceito de capital cultural sob a ótica
da vigilância epistemológica. Linhas Críticas, 28, 42738. https://doi.org/10.26512/lc28202242738
Link alternativo:
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/42738
Licença Creative Commons
CC BY 4.0.
Resumo: Este artigo consiste num estudo exploratório que
procura exercer a vigilância epistemológica sobre análises bourdieusianas
do capital cultural a partir de pesquisas empíricas do campo educacional
brasileiro. Para tanto, foi realizada uma revisão de literatura no portal de
periódicos Scientific Electronic Library Online. O exame dos trabalhos
identificou três tipos de instrumentalização do conceito: o dissociado do
conteúdo teórico, que desconsidera os fenômenos da cultura legítima na análise;
o mecânico, que pressupõe que os fatos da legitimidade cultural no Brasil são
homólogos aos da sociedade francesa; e o relacional, que se aproxima das orientações
da prática investigativa bourdieusiana.
Palavras-chave: Capital Cultural. Vigilância Epistemológica. Campo
Educacional.
Resumen: Este artículo consiste en un estudio exploratorio que
busca ejercer una vigilancia epistemológica sobre los análisis bourdieusianos
del capital cultural a partir de investigaciones empíricas en el campo
educativo brasileño. Para ello, se realizó una revisión bibliográfica en el
portal de revistas Scientific Electronic Library Online. El examen de
los trabajos identificó tres tipos de instrumentalización del concepto:
disociada del contenido teórico, que prescinde de los fenómenos de la cultura
legítima en el análisis; el mecánico, que asume que los hechos de legitimidad
cultural en Brasil son homólogos a los de la sociedad francesa; y lo relacional,
que se aproxima a las orientaciones de la práctica investigativa bourdieusiana.
Palabras
clave: Capital Cultural. Vigilancia Epistemológica. Campo Educativo.
Abstract: This article consists in an exploratory study that
seeks to exercise epistemological vigilance on Bourdieusian analyzes of
cultural capital based on empirical research in the Brazilian educational
field. To achieve this goal, a literature review was carried out on the
Scientific Electronic Library Online journal portal. The examination of the
works identified three types of instrumentalization of the concept: the
dissociated from the theoretical content, that disregards the phenomena of
legitimate culture in the analysis; the mechanic, which assumes that the facts
of cultural legitimacy in Brazil are homologous to those of French society, and
the relational, that approaches the orientations of the Bourdieusian
investigative practice.
Keywords: Cultural Capital. Epistemological Vigilance. Educational Field.
Introdução
A sociologia desenvolvida por Pierre
Bourdieu é reconhecida, entre várias razões, pelo seu projeto teórico sintético
e pela articulação entre dados empíricos e conhecimentos teóricos para a
investigação das instituições e das práticas culturais. O autor implementou, no
início de sua trajetória, os princípios conceituais que lhe permitiram
estabelecer análises relativas à ação prática dos indivíduos, enquanto a
posteridade de seu trabalho se concentrou no aperfeiçoamento do instrumental
utilizado. A partir de uma proposição da ação que tange subjetividade e
estrutura social, a sociologia bourdieusiana impactou seu ambiente
acadêmico contemporâneo e estende sua influência a pesquisas sociais da
atualidade (Joas & Knöbl, 2017).
O sociólogo francês fundamentou uma
vertente de investigação acerca das desigualdades escolares, entendidas como
desigualdades frente à cultura, que rompeu com a noção de diferenças naturais
intrínsecas aos sujeitos, sustentada por outros pesquisadores. Além do
rompimento com a ideologia do dom, a sua sociologia da educação contribuiu com
“um importante quadro macrossociológico de análise das relações entre o sistema
de ensino e a estrutura social” (Nogueira & Nogueira, 2002, p. 35). O ponto
de vista do autor compreende o investimento escolar e as diferentes atitudes em
relação à escola como um elemento dependente da quantidade de capital cultural
acumulada pelas famílias e transmitida na qualidade de herança cultural aos
estudantes. Desse modo, os membros das diversas classes se relacionam de
maneiras diferentes com a instituição escolar. Essa perspectiva de análise tem
forte influência nas investigações referentes à relação entre classe social,
cultura e desempenho escolar (Bertoncelo, 2016).
Em vista da influência da perspectiva de
Bourdieu e da relevância do conceito de capital cultural em seu referencial
sociológico para a pesquisa em Educação, o presente artigo apresenta um estudo
exploratório e analítico que pretende exercitar a vigilância epistemológica
sobre a instrumentalização de tal conceito bourdieusiano por pesquisas
empíricas recentes, do campo educacional brasileiro, com o objetivo de analisar
e avaliar o rigor teórico-metodológico de sua utilização, bem como fomentar o
debate crítico a respeito do conceito à guisa de contribuir com o estado do
conhecimento da área e com futuras investigações.
A vigilância epistemológica integra a
construção rigorosa do objeto sociológico mediante o questionamento sobre os
limites de aplicação e as necessidades de adaptação dos conceitos e técnicas
utilizados na pesquisa, de modo a evitar a transformação “dos preceitos do
método em receitas de cozinha científica” (Bourdieu et al., 2010, p. 14).
Dessarte, colocar a instrumentalização do capital cultural sob a ótica da
vigilância epistemológica é investigar a coerência na mobilização do conceito e
a adaptação realizada pelos pesquisadores para trabalhar com a empiria.
Portanto, este artigo não concerne a uma genealogia do capital cultural ou ao
processo de recepção e circulação da obra de Pierre Bourdieu na pesquisa
sociológica brasileira e no campo da Educação – em relação a este tópico é
possível consultar os trabalhos de Catani et al. (2001) e de Oliveira e Silva
(2021).
Isto posto, para a implementação desta
vigilância, foi realizada uma revisão de literatura durante o mês de setembro
de 2021 no portal de periódicos Scientific Electronic Library Online
(SciELO)[2].
A busca encontrou vinte resultados associados ao uso do capital cultural, destes,
foram considerados apenas periódicos com o Qualis A em Educação, pois foi
levado em conta o fator de impacto para a área e, por consequência dessa
delimitação, o número de trabalhos foi reduzido para doze. A seleção dos
artigos se deu mediante a leitura do resumo e da introdução, avaliando-se a
centralidade do conceito enquanto instrumento para a construção das
investigações.
Também se priorizou uma certa variedade entre pesquisas
quantitativas e qualitativas para que fosse possível explorar distintas
instrumentalizações do conceito na abordagem do nível empírico. Assim, foram
selecionados sete artigos para análise, sendo três quantitativos, três
qualitativos e um de métodos mistos. Destarte, a exposição deste estudo se
estrutura em três blocos: o primeiro expõe a estrutura teórica da sociologia da
prática bourdieusiana e a posição do capital cultural nessa estrutura;
no segundo se apresenta a vigilância epistemológica concernente ao conceito
investigado de forma crítica; e, por fim, o terceiro estabelece as
considerações finais.
A sociologia da prática de Pierre
Bourdieu e o conceito de capital cultural
O entendimento sobre a realidade social enquanto objetiva e
construída é um dos princípios do “construtivismo estruturalista” de Bourdieu,
que lhe permitiu estabelecer uma sociologia da ação que compreende a lógica da
prática, tendo como horizontes de investigação a dimensão simbólica da ordem
social, o peso determinante das estruturas objetivas nas disposições dos
agentes e, até mesmo, o papel da reflexividade no trabalho sociológico
(Corcuff, 2001, p. 46). A obra desenvolvida pelo autor abrange uma diversidade
de objetos e métodos a partir da articulação dos conceitos de habitus,
campos e capitais, o que demanda ao sujeito, que mobiliza este referencial, um
conhecimento rigoroso a respeito de suas possibilidades e impossibilidades de
aplicação. Nisso, a noção de vigilância epistemológica é um importante
procedimento que auxilia o pesquisador neste processo de apropriação dos
referenciais.
Essa noção elaborada por Bourdieu et al. (2010) constitui-se
como ferramenta essencial para realização do ofício sociológico, pois orienta o
cientista a uma prática de investigação reflexiva que questiona os limites e
condições de operacionalização dos referenciais com o intuito de evitar e
superar o erro científico a partir do reconhecimento do próprio erro. Exercitar
a vigilância epistemológica, associada à prática do pesquisador enquanto
prática de pesquisa, acerca da instrumentalização do capital cultural, no campo
educacional brasileiro, implica se apropriar de uma ótica crítica para examinar
como o conceito é utilizado tendo como horizonte sua formulação e aplicação
original. Por consequência, exige-se um movimento de clarificação conceitual do
modelo teórico de Bourdieu para que seja possível analisar as
instrumentalizações do capital cultural. Então, doravante, será efetivado esse
movimento de clarificação.
Na sociologia da prática bourdieusiana, o conceito de habitus
enquanto matriz geradora de representações, apreciações, classificações e ações
é desenvolvido na qualidade de uma solução sistemática contrária ao
subjetivismo e ao mecanicismo de algumas teorias da ação. Ele é entendido como
um complexo sistema de disposições interiorizadas e implícitas que são duráveis
e transponíveis, inculcadas no agente ao longo de sua exposição às estruturas
objetivas do mundo social. Esse sistema de disposições, ou seja, o ethos,
confere liberdade ao agir do indivíduo, não havendo respostas mecânicas ou
aglomerados de cálculos estratégicos para a realização da ação. O habitus,
na posição de instrumento sociológico, possibilita a explicação da prática
mediante a relação de suas condições de produção e o seu contexto de
operacionalização (Bourdieu, 2013). Portanto, ele “permite estabelecer uma
relação inteligível e necessária entre determinadas práticas e uma situação,
cujo sentido é produzido por ele em função de categorias de percepção e de
apreciação” (Bourdieu, 2017, p. 96).
Em
decorrência de uma relação de homologia, o ethos individual é uma
variante do habitus de classe, pois constitui-se pela “diversidade na
homogeneidade que reflete a diversidade na homogeneidade característica de suas
condições sociais de produção, que une os habitus singulares dos
diferentes membros de uma mesma classe” (Bourdieu, 2013, pp. 99-100). O habitus,
na qualidade de um “princípio de divisão em classes lógicas que organiza a
percepção do mundo social é, por sua vez, o produto da incorporação da divisão
em classes sociais” (Bourdieu, 2017, p. 164). O ethos do agente
interioriza as possibilidades associadas à determinada posição de classe
mediante a assimilação das probabilidades objetivas em esperanças subjetivas
integrantes do horizonte de possibilidades. Em vista disso, o indivíduo age em
relação a um porvir provável porque a posição de classe é um fator determinante
para a realização da ação (Bourdieu, 2013).
A classe social é uma categoria construída teoricamente a partir
do espaço social e das “diferenças reais que separam tanto as estruturas quanto
as disposições” (Bourdieu, 2011, p. 15). A ideia de diferença “está no
fundamento da própria noção de espaço, conjunto de posições distintas e
coexistentes, exteriores umas às outras, definidas umas em relação às outras
por sua exterioridade”, em suma, distanciamento e ordenação (Bourdieu, 2011, p.
18). A posição ocupada pelo indivíduo, no espaço social, pode ser apreendida
pela distribuição desigual dos diferentes tipos de capitais, os quais atuam
como princípios de diferenciação. Por meio do habitus as diferenças
constitutivas do espaço social (as práticas, os bens etc.) são transformadas em
signos de distinção, em diferenças que constroem os sistemas simbólicos da
ordem social e que garantem a existência da própria divisão (Bourdieu, 2011).
“O
espaço social como estrutura de posições diferenciadas, definidas, em cada
caso, pelo lugar que ocupam na distribuição de um tipo específico de capital”
(Bourdieu, 2011, p. 29) é um campo de disputas simbólicas “pela imposição da
visão legítima das divisões, do ponto de vista correto sobre o mundo social”
(Bourdieu, 2020, p. 112). O campo é uma construção arbitrária e artificial
decorrente de um longo processo de autonomização que o constituiu como espaço
de jogo, ou seja, um âmbito de lutas simbólicas (Bourdieu, 2013). Cada campo
produz e reproduz uma série de capitais que possuem valores e eficácias
associados ao funcionamento do próprio campo de produção, “a lógica específica
do campo, do que está em jogo e da espécie de capital necessário para
participar do mesmo, é que comanda as propriedades através das quais se
estabelece a relação entre a classe e a prática” (Bourdieu, 2017, p. 106).
Dentro do campo, as disputas simbólicas travadas entre os
agentes das diferentes classes pela imposição de uma visão tida como legítima
são disputas pela imposição do arbitrário cultural de uma classe sobre as
demais; embora cada classe tenha seu próprio arbítrio, a dinâmica de disputas
constitutivas do campo divide o espaço social entre dominantes e dominados
(Bourdieu, 2020). As relações de força entre os grupos sociais estabelecem como
superior o arbitrário cultural capaz de atender aos interesses materiais e
simbólicos dos grupos dominantes, e, em vista disso, a instituição escolar está
entre os poderes que contribuem para a estruturação do mundo social através da
imposição, de forma dissimulada, do arbitrário cultural dos dominantes enquanto
universal, o que faz da ação pedagógica um ato de violência simbólica, ou seja,
uma ação que impõe significações e significados na condição de legítimos,
ocultando as forças que estão no princípio dessa imposição (Bourdieu &
Passeron, 2014).
A
organização curricular, os saberes valorizados e os conhecimentos transmitidos
pela escola enquanto cultura legítima pertencem ao arbitrário cultural das
classes dominantes, no entanto, a instituição escolar oculta seu caráter
arbitrário a partir de uma aparência de independência e neutralidade que
garante a eficácia da imposição. Assim, a comunicação pedagógica que se
estabelece por meio da linguagem das classes superiores é um fundamento das
desigualdades de êxito escolar, pois o habitus que a ação pedagógica
tende a inculcar, em termos de erudição, exige o seu reconhecimento pelo ethos
dos alunos (Bourdieu & Passeron, 2014).
O
dialeto escolar é um código para o despertar dos herdeiros que demanda um
determinado nível de capital cultural para o seu deciframento, assim, o domínio
do código é parte da herança cultural inculcada no ethos dos filhos das
classes dominantes. O sistema de ensino não valoriza apenas a leitura, escrita
e oratória adequadas, mas também o conhecimento das obras da cultura erudita,
uma vez que a erudição escolar é a linguagem familiar dos herdeiros dominada
pelo habitus. O capital cultural é determinante para a explicação das
desigualdades escolares, que, na verdade são desigualdades frente à cultura,
que existe sob três estados, o incorporado, o objetivado e o institucionalizado
(Bourdieu, 2015a).
O estado incorporado é a forma fundamental do capital cultural,
ele se encontra no corpo do agente enquanto disposição durável integrante do ethos
e sua aquisição ocorre mediante um longo processo de inculcação; esse
estado pertencente ao domínio do habitus possibilita o reconhecimento
dos bens simbólicos, assim como a capacidade de apreciar diferentes estilos de
pintura. O estado objetivado diz respeito à dimensão material dos bens, por
exemplo, as obras de arte e os livros, todavia, mesmo que seja possível
adquirir uma pintura utilizando o capital econômico, somente se aprecia e se
reconhece o seu valor distintivo conforme há o capital incorporado necessário
para tanto. O estado institucionalizado é uma forma de objetivação que garante
ao seu possuidor um certificado de competência cultural, dessarte, o diploma escolar,
baseando-se na magia da crença coletiva, confere o reconhecimento institucional
ao capital cultural possuído pelo agente e pode lhe assegurar uma taxa de
convertibilidade desse capital em capital econômico (Bourdieu, 2015a).
Essa possibilidade de conversão existe porque o capital cultural
compõe o mercado de bens simbólicos e é assegurado por uma economia das
práticas, ou seja, a lógica de investimento e de retorno das ações dos membros
das diferentes classes dentro do espaço social (Bourdieu, 2015b). Neste sentido:
[…] o êxito escolar é função do capital cultural e da propensão a
investir no mercado escolar (tal propensão dependendo das chances objetivas de
êxito escolar) e, em consequência, as frações mais ricas em capital cultural e
mais dispostas a investir em trabalho e aplicação escolar são aquelas que
recebem a consagração e o reconhecimento da escola. […] a adesão de uma
categoria às sanções e às hierarquias da escola depende não somente da posição
que esta lhe concede em suas hierarquias mas também do grau em que seus
interesses estão vinculados à escola, ou seja, do grau em que seu valor
mercantil e sua posição social dependem (tanto no passado como no futuro) da
garantia escolar. (Bourdieu, 2015b, p. 331)
Assim, a sociologia da prática de Bourdieu pode ser assimilada
enquanto uma perspectiva de análise que permite a compreensão dos determinantes
da ação mediante a relação da posição social ocupada pelo agente e seu
patrimônio de capitais, a tornar perceptível os efeitos da distância e/ou proximidade
entre as classes sociais e o arbitrário cultural dominante. Dessa forma, o
conceito de capital cultural constitui para a pesquisa em Educação um
instrumento sociológico importante para compreender as desigualdades escolares,
sob a forma de desigualdades de acesso à cultura legítima, conforme o
conhecimento daquilo que é culturalmente legítimo num determinado contexto.
O capital cultural sob
a ótica da vigilância epistemológica
O empreendimento deste exercício de
vigilância epistemológica objetiva compreender a coerência e a consistência da
mobilização da perspectiva de análise do capital cultural nos trabalhos
selecionados pela revisão de literatura feita no SciELO, logo, busca-se
identificar exatidões e imprecisões na instrumentalização do conceito de
maneira a fomentar o debate crítico a seu respeito e contribuir com o estado do
conhecimento da área. Isto posto, inicia-se a realização deste exame
investigativo a partir da análise qualitativa estabelecida por Freire e
Fernandez (2015) tocante ao modo como dez professores de Química, de uma
universidade pública do estado do Paraná, percebem os diferentes agentes do
campo educacional e lidam com as tensões associadas ao começo da profissão.
Para construir a pesquisa, as autoras adotam o conceito de campo
operacionalizando o capital cultural e o simbólico enquanto fatores
explicativos para a dinâmica que os professores estabelecem entre si.
As pesquisadoras entendem o espaço social
específico ocupado pelos agentes na condição de subcampo da docência
universitária, o qual seria uma fração do campo da Educação. O capital cultural
é assimilado por elas como um acúmulo teórico e prático da área, esse
entendimento é posto como balizador das posições e das relações de poder. Em
vista disso, o docente experiente, aquele possuidor de uma posição de
dominância, determina a distribuição das aulas do modo que lhe convém. Ao mesmo
tempo, o docente novato, sem prestígio, reconhece o capital dos dominantes e
apenas consegue mudar sua posição mediante a aquisição de capital cultural e
simbólico.
Uma análise dos níveis de interação entre
o habitus e o campo, como pretendido pelas pesquisadoras, demandaria
constatar como o espaço hierarquizado se associa aos demais campos, realizar
uma topografia estrutural apreendendo a forma que as posições sociais estão
organizadas e analisar o agente em relação à sua trajetória biográfica
(Grenfell, 2018). Porém, Freire e Fernandez (2015) sequer detalham o que é o acúmulo
teórico e prático, não especificam o que seria o arbitrário dos dominantes e
nem o considerado na qualidade de legítimo dentro da referida fração do campo.
Ao invés de utilizar noções mais próximas dos dados apresentados, como o
capital informacional, ou, até mesmo, formular um tipo de capital associado à
dimensão da didática para abordar a maneira que os agentes disputam as formas
legítimas de autoridade, as autoras recaem numa instrumentalização do capital
cultural dissociada dos bens culturais que é deposta de sentido explicativo
quanto às posições ocupadas pelos agentes no espaço social e de suas relações
de poder, ignorando os fenômenos da legitimidade cultural.
Bertolin et al. (2019) também utilizam a
noção de capital cultural dissociando-a dos bens culturalmente legítimos em seu
artigo, que consiste em uma pesquisa quantitativa a partir de dados do Exame
Nacional de Desempenho dos Estudantes. O estudo almeja responder se os cursos
de graduação de Direito e Administração são capazes de compensar a falta de
capital cultural e de background dos estudantes advindos das classes
populares e, para tanto, os autores mobilizam o capital enquanto parte
integrante da noção de background formulada pelo Coleman Study.
Por efeito da conjectura de que os estudantes compartilham um perfil
socioeconômico e cultural homogêneo, eles são categorizados entre aqueles que
possuem desempenho inferior e superior, sendo estes os que obtêm resultados
acadêmicos além do esperado e, comumente, são oriundos das universidades públicas.
Isso leva à afirmação de que alguns cursos podem compensar a falta de capital
cultural.
Contudo, existe uma série de inconsistências associadas ao uso do
conceito que fragilizam as conclusões afirmadas, logo, pode-se questionar a
suposição de homogeneidade do perfil cultural, visto que há uma insuficiência
nos dados utilizados para apreender o capital, no caso, foi operacionalizado
apenas o indicador de escolaridade das mães. Para apreender a relação das
classes e de suas frações com a prática cultural, Bourdieu (2017) mobilizava múltiplos indicadores,
como: o consumo dos diferentes gêneros de filmes e músicas, o consumo de
programas televisivos e de rádio, a predileção por pintores e cantores, o tipo
de consumo literário etc. Deste modo, o capital cultural não era reduzido
apenas ao nível de escolaridade, por consequência, mesmo que o número de anos
de estudo fosse um bom indicador para medir o grau de exposição ao ensino
formal, é o diploma que permite medir as sanções sociais associadas à carreira escolar
e ao grau de convertibilidade do capital cultural institucionalizado em capital
econômico (Bourdieu, 2015a; 2020).
Em sociedades nas quais há uma relação de
influência entre a utilidade social do diploma e o mercado de trabalho,
juntamente de uma distribuição desigual dos títulos escolares que destinam os
agentes para posições sociais desiguais, maior é a transformação das
desigualdades sociais em desigualdades escolares (Dubet et al., 2012). No
Brasil, o fenômeno da expansão do ensino superior, acompanhado de um processo
de diversificação, promoveu uma estratificação horizontal entre os cursos e os
tipos de instituições em termos de classe, gênero e raça (Carvalhaes &
Ribeiro, 2019). Neste cenário, os diplomas dos diversos cursos e instituições
possuem valores distintivos, portanto, não basta apenas o indicador de
escolaridade, pois se faz necessário saber a qual diploma esta formação está
associada. No mais, a operacionalização do capital cultural apenas pela
escolaridade dos pais caracteriza-se como uma definição minimalista do
conceito, a tornar sua aplicação um tanto obscura (Draelants & Ballatore,
2021).
Em consequência da impossibilidade de
sustentar o argumento da homogeneidade dos perfis culturais, contesta-se a
afirmação de que o bom desempenho dos estudantes seja proveniente da capacidade
das melhores instituições em suprirem a carência de capital. Seria mais
plausível que os estudantes das classes populares que ingressam em instituições
de maior prestígio, as quais possuem um processo seletivo mais rigoroso, sejam
altamente selecionados e possuam as disposições necessárias tanto para passar
pelo processo de superseleção quanto para obter resultados, no mínimo,
equivalentes aos dos filhos das classes superiores. Inclusive, essa análise
estaria mais próxima dos resultados encontrados por Bourdieu e Passeron (2014)
na pesquisa realizada em A reprodução.
Esta instrumentalização, dissociada do
conteúdo teórico do conceito, também pode ser observada na exploração de
métodos mistos de Perosa e Dantas (2017) acerca do contexto de instalação de
escolas privadas em uma cidade do estado de São Paulo, com a intenção de
apreender os traços comuns e diferentes entre as famílias que matriculam os
seus filhos em instituições públicas ou privadas. As pesquisadoras identificam
que a demanda pelo ensino privado é fomentada por uma fração das classes
populares que busca um projeto educacional e profissional para os seus filhos.
Este grupo seria possuidor de um capital cultural mais elevado que foi acumulado
mediante a conclusão do ensino médio e o acesso ao ensino superior pela segunda
geração dessas famílias. A aquisição do capital cultural é assimilada
unicamente pelo indicador da escolaridade familiar, não fazendo menção à esfera
cultural da sociedade.
Por um ângulo similar, o texto de Orlando e Caiado (2014)
aproxima-se, em certa medida, deste tipo de instrumentalização. O estudo
qualitativo examina a trajetória de três professores universitários com
deficiência objetivando compreender as disposições associadas ao sucesso
escolar. Pois o alto grau de escolaridade formal dos docentes os diferencia das
demais pessoas com deficiência. As autoras consideram que a condescendência das
escolas em que os indivíduos estudaram, o ambiente familiar de valorização da
carreira escolar e o contato com o capital cultural objetivado, entendido pela
familiaridade com a leitura e a escrita, possibilitaram o desempenho escolar e
profissional distintivo. Embora a ideia de herança cultural seja central no
texto, não há um aprofundamento do exame no tocante ao conteúdo dessa herança e
nem de uma familiaridade dos interlocutores com, por exemplo, a cultura
literária.
Evidenciar que as famílias valorizavam a
instituição escolar e que ajudavam os interlocutores nas atividades escolares
devido à necessidade de auxílio não basta para definir um conjunto de práticas
em relação à cultura. E depois, o entendimento a respeito do capital cultural
objetivado está equivocado, uma vez que esse estado faz referência à dimensão
material e demanda do estado incorporado para sua apreciação adequada. Para que
a análise de Orlando e Caiado (2014) fosse mais consistente seria preciso
evidenciar a inculcação de uma atitude em relação à cultura por meio do
compartilhamento de práticas familiares culturais comuns. Aliás, o entendimento
da prática escrita e da leitura no ambiente familiar, enquanto capital
cultural, tem mais a ver com a operacionalização do conceito efetuada por
Lahire (1997) do que a estabelecida por Bourdieu. Dado que as pesquisadoras não
mencionam uma adaptação do conceito e nem indicam sua reapropriação atualizada,
não é factível cogitar que elas se referiam ao capital cultural nos moldes de
Lahire. Então, de fato, a não consideração dos bens culturais e dos fenômenos
da cultura legítima debilita o empreendimento de operacionalização do conceito.
Um outro tipo de instrumentalização da
noção de capital cultural pode ser notado na pesquisa qualitativa de Miranda e
Villardi (2020), que versa sobre um projeto social desenvolvido em uma comunidade
periférica da cidade do Rio de Janeiro com catorze estudantes do ensino médio
público que apresentavam baixo desempenho escolar e/ou defasagem idade-série. O
projeto parte do pressuposto que a condição escolar dos estudantes se dá pelo
seu baixo capital cultural e, com o objetivo de mudar essa situação, foi
realizada uma intervenção por meio de atividades culturais supostamente
valorizadas pela instituição escolar.
Tal intervenção consistia em visitas a
espaços culturais (museus, exposições etc.) e no desenvolvimento de atividades
pedagógicas semanais junto aos alunos, como o estudo de Literatura e
Matemática. Os encontros semanais tinham a finalidade de debater a respeito dos
conhecimentos adquiridos nos espaços culturais (entendidos enquanto capital
cultural) e ampliar esses saberes por meio de atividades de escrita e leitura,
também ocorrendo estudos relativos às disciplinas escolares em relação às quais
os estudantes tinham dificuldades; o projeto teve duração de dois anos e, ao
final, era integrado por dez jovens.
Um dos argumentos centrais do trabalho é
evidenciar como o projeto social conseguiu suprir a necessidade de capital
cultural necessário para a valorização da carreira escolar por parte dos
estudantes, o que não era efetivado pela instituição escolar. O aumento do
nível de capital cultural dos alunos do projeto é demonstrado principalmente
pelo caso de um jovem que decidiu procurar uma escola fora da comunidade para
ter acesso a uma educação de maior qualidade. No entanto, verifica-se uma insuficiência
nos dados apresentados para sustentar a consideração do aumento de capital,
pois são apresentados apenas relatos concernentes ao processo de reconhecimento
dos estudantes quanto à importância da escola e de um interesse por conteúdos
relacionados à história brasileira.
A estrutura teórica da sociologia bourdieusiana
entende que o sucesso escolar dos estudantes das classes populares somente é
possível na medida em que há uma ação eficaz de “aculturação”, ou seja, de
substituição do arbitrário cultural familiar pelo das classes dominantes
(Bourdieu & Passeron, 2014, p. 96). Para sustentar de fato o aumento de
capital dos jovens, isto é, o êxito da ação de aculturação, seria necessário
apresentar dados como a melhora do desempenho escolar, o ingresso em
instituições renomadas de ensino ou, no mínimo, o desenvolvimento da capacidade
de distinguir e apreciar um estilo artístico erudito em detrimento dos demais.
Os relatos apresentados se aproximam mais de um testemunho sobre o efeito de
reconhecimento da legitimidade cultural da cultura das classes superiores
(Bourdieu, 2017) do que a comprovação do sucesso da inculcação exercida pela
relação pedagógica, uma vez que reconhecer a posição de legitimidade de um
arbitrário não implica possuí-lo. Essa insuficiência dos dados evidencia uma
utilização imprecisa da perspectiva de análise do capital cultural.
Além dessa imprecisão, existe um outro problema associado à
escassez de bibliografias referenciadas para considerar que o capital cultural
valorizado no sistema de ensino brasileiro é o mesmo que do francês. Miranda e
Villardi (2020) compreendem que o sucesso escolar no Brasil está associado à
posse de um alto capital cultural, de maneira que o baixo capital atua na forma
de um impeditivo aos estudantes do sistema público de acessarem o ensino
superior. Essa avaliação está apoiada na consideração de que:
[…] a cultura escolar dominante brasileira é de matriz ocidental,
branca, masculina e judaico-cristã. Na escola, há um processo de valorização
dessa cultura em si, tanto quanto do seu consumo. E, na prática, aqueles que
têm acesso a essa cultura terão, em consequência, mais capital cultural e
acesso a outros recursos escassos. (Miranda & Villardi, 2020, p. 17)
Entre as referências do artigo para
abordar a instituição escolar brasileira está o trabalho de Almeida (2007), que
expõe como a comissão avaliadora dos vestibulares da Universidade Estadual de
Campinas realiza a correção da redação, da qual espera-se dos candidatos, além
do domínio das normas ortográficas, um amplo repertório literário e de
vocábulos. O principal intuito de Almeida é fomentar o debate relativo à
necessidade de investigações sobre o capital cultural no Brasil pela Sociologia
da Educação, portanto, não é um estudo tocante ao sistema de ensino como um
todo e às formas da legitimidade cultural. Também há referência à obra de
Barbosa (2009), que expõe a discussão acerca de como a qualidade da escola pode
reduzir, em parte, os efeitos da posição social e dos diferentes níveis de
capital cultural dos alunos sob o desempenho escolar. Todavia, o trabalho
referenciado não se constitui enquanto uma investigação a respeito das formas
de avaliação da instituição escolar e de sua relação com o arcabouço cultural
das diferentes classes sociais; não se trata de um texto que explore a relação
entre a cultura tida como legítima e a escola.
Miranda e Villardi (2020) não apresentam nenhum estudo que permita
considerar que a estrutura do capital cultural no Brasil corresponda igualmente
ao cenário pesquisado por Bourdieu. Assim sendo, o argumento das autoras
concernente à cultura escolar brasileira possuir matrizes ocidentais é
insuficiente para postular que os bens simbólicos e a legitimidade cultural no
Brasil se estruturaram da mesma maneira que na França. A pouquidade de
referenciais impossibilita justificar e afirmar que o estilo artístico X que se
introduziu na visitação ao museu seja a cultura legítima das classes superiores
brasileiras. Para Draelants e Ballatore (2021), a intelecção do capital
cultural unicamente pela ideia de cultura erudita se enquadra em uma definição
restrita e reducionista do conceito.
Segundo Weininger (2015, p. 98), as
proposições analíticas produzidas no contexto investigado por Bourdieu devem
ser utilizadas sem distorção do seu contexto de produção, assim, para sua
aplicação em outra realidade social é necessário “desmaranhar a substância
dessas proposições, separando-as das peculiaridades do contexto em que foram
aplicadas”. O sistema de ensino francês possui uma “preponderância quase
absoluta que ele outorga à transmissão oral e à manipulação das palavras em
detrimento de outras técnicas de inculcação ou de assimilação” (Bourdieu &
Passeron, 2014, p. 153), atribuindo valor eminente “à aptidão literária e, mais
precisamente, à aptidão de transformar em discurso literário toda experiência”
que é determinante ao seu funcionamento (Bourdieu & Passeron, 2014, p.
146). Como enfatiza Fabiani (2016, pp. 122-123, tradução nossa):
Através do
currículo, dos programas, da codificação das práticas e da homogeneidade social
e cultural do corpo docente, a escola atualiza constantemente o princípio da
legitimidade cultural. A teoria do sistema educacional elaborada em La
Reproduction é basicamente apenas uma aplicação particular dela. A natureza
massiva do dispositivo de inculcação […] facilita (especialmente para a
situação francesa) trazer à tona as afinidades estruturais entre os valores das
classes privilegiadas e os sistemas particulares dedicados à reprodução escolar
da cultura legítima.
Diante disso, uma utilização do capital
cultural que não o ajuste às singularidades do espaço social pesquisado e que
considere mediante uma relação de homologia instantânea que os fatos da
legitimidade cultural francesa e da realidade investigada são idênticos,
caracteriza-se como uma instrumentalização mecânica, tornando-se algo
problemático para o rigor teórico-metodológico da pesquisa devido à imprecisão
de se utilizar um modelo de análise na qualidade de receita de cozinha
científica, esquecendo-se do pressuposto epistemológico de que não é possível
obter conhecimento imediato do mundo real (Bourdieu et al., 2010). O capital
cultural, enquanto instrumento de “uma sociologia das desigualdades culturais e
das funções sociais da cultura dominante e, acima de tudo, da distinção
cultural” (Lahire, 2006, p. 37), implica a compreensão de o que é culturalmente
legítimo. Por consequência, de acordo com Bernard Lahire (2006, p. 39, grifo do
autor),
Os fatos de legitimidade cultural não podem ser pressupostos, mas
devem ser regularmente verificados por pesquisas sociológicas específicas.
Descrever atividades culturais ou bens culturais e estabelecer a probabilidade
de que grupos diferentes (segundo o tipo de recursos – econômicos, culturais,
etc. – de que dispõem) tenham acesso aos diferentes tipos de atividades ou de
bens culturais não permite ipso facto deduzir os graus de legitimidade
cultural das atividades e dos bens em questão. É preciso ainda dispor de
índices da relação que esses grupos mantêm com eles. […]. Só se pode falar de
legitimidade cultural se, e apenas se, um indivíduo, um grupo ou uma comunidade
crê na importância, e muitas vezes mesmo na superioridade, de certas atividades
e de certos bens culturais em relação a outros.
Desta forma, mobilizar mecanicamente o
capital cultural é utilizá-lo como um indicador ineficaz porque não se
classifica a realidade de maneira assertiva. A classificação adequada do espaço
social compõe uma parte essencial dos preceitos da sociologia bourdieusiana.
O processo de descobrir “os critérios que recortarão a realidade em função de
divisões preexistentes, que estão de alguma forma pontilhadas na realidade”
(Bourdieu, 2020, p. 42) é encontrar os critérios que dividem os grupos, ou
seja, de tentar entender as posições diferenciadas que os agentes ocupam em uma
estrutura de distribuição específica de capital mediante a ação investigativa.
Pierre Bourdieu elaborou uma obra assentada em uma prática sociológica
relacional (Fabiani, 2016), em razão disso, a operacionalização adequada do seu
referencial demanda levar em conta o tempo e o lugar que se pretende estudar,
ao contrário, a abdicação da ação de classificar enfraquece a solidez
teórico-metodológica da investigação.
Não obstante, a exploração quantitativa de Gonçalves e Ramos
(2019), que objetiva mapear as condições necessárias para o acesso ao
ensino superior no Brasil por meio dos dados socioeconômicos do Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM) de 2009, utilizando-se dos estados do capital cultural e
do capital econômico, se aproxima da instrumentalização mecânica em decorrência
de não especificar o funcionamento do mercado escolar brasileiro em um sentido
que permita sustentar a conjectura de similaridade com a cultura legítima
francesa. Os autores entendem o estado incorporado na condição de herdado pelo
indicador da escolaridade dos pais, o incorporado na condição de adquirido pela
frequência e tipo de leitura e o institucionalizado na condição de se o
estudante estudou em escola particular, reprovou no ensino médio e se
frequentou o turno noturno. Apoiando-se nesse entendimento, as conclusões
postulam que os estados do capital cultural atuam enquanto condicionantes para
o acesso ao ensino superior, mas que seria o capital econômico o fator de
impacto mais relevante.
Todavia, contando que, como visto,
considerar o capital cultural restrito à escolaridade familiar sem distinguir
os diplomas possuídos e o contexto de socialização dos agentes fragiliza a
utilização do conceito e as conclusões postuladas. Ademais, mesmo que em um
cenário hipotético, o fenômeno da legitimidade cultural brasileira e francesa
fosse supostamente idêntico, os dados utilizados como frequência de leitura
legítima não se adequam ao modelo bourdieusiano. Em razão de que os
pesquisadores consideram como menos legítima a leitura de quadrinhos, revistas
de humor etc. e a leitura de jornais, livros de ficção e não ficção como mais
legítima. Contudo, no cenário estudado por Bourdieu, um livro de fantasia não
possui o mesmo valor simbólico do que um de literatura clássica,
consequentemente, não seria plausível considerar ambos como indicadores de
consumo legítimo.
Gonçalves e Ramos (2019) afirmam que os
dados utilizados não são ideais para a análise proposta, mas, de toda forma,
sustentam as conclusões na qualidade de contribuição ao conhecimento da
realidade brasileira. Porquanto que os próprios pesquisadores compreendem o
limite da análise, é possível ponderar que o resultado acerca da relevância do
capital econômico, que é algo em consonância com a literatura especializada,
acrescenta ao referencial da área. Apesar disso, devido às inconsistências na
utilização da noção de capital cultural, é questionável a capacidade dos
resultados em verificar o impacto dos estados do capital cultural, portanto, as
considerações finais estariam melhor adequadas se evidenciassem a necessidade
de dados mais abrangentes para apreender a influência do conceito, tensionando,
então, a escassez de informações coletadas sobre a dimensão cultural dos alunos
pelo questionário socioeconômico do ENEM.
De maneira distante, o estudo
quantitativo de Caprara (2020), que busca compreender o impacto da condição de
classe dos estudantes da educação básica quanto ao desempenho em Matemática e
em Língua Portuguesa, a partir dos dados advindos do Sistema de Avaliação da
Educação Básica de 2013, apresenta um outro tipo de instrumentalização. O
indicador de condição de classe é construído a partir do capital econômico e do
cultural, dessarte, são definidos quatro volumes de capital (muito baixo,
baixo, médio e alto). O pesquisador assimila o capital cultural por meio dos
dados de escolaridade da mãe, se o estudante lê livros e se lê livros de
literatura; sua assimilação está apoiada na acepção de Soares e Collares (2006)
de que, no Brasil, a mobilização das dimensões culturais é mais apropriada
mediante os meios de aquisição dos saberes escolares. Baseando-se nisso,
Caprara (2020) evidencia a persistência dos efeitos da classe social no
desempenho escolar dos estudantes e a presença de outras variáveis impactantes
como a trajetória individual.
O texto do autor possui um limite referente aos dados utilizados
para a construção do indicador de capital cultural que enfraquece a
consistência metodológica, mas, como se percebe, este problema está conectado
ao desprovimento de informações disponíveis acerca da dimensão cultural dos
alunos nos questionários coletados pelo poder público. Mesmo com essa
debilidade, é possível categorizar a instrumentalização do conceito enquanto
relacional, pois o autor tentou, em certa medida, adaptar o capital cultural
para aplicação na realidade brasileira, o que converge com as orientações bourdieusianas
de uma prática sociológica relacional. Embora o trabalho possua poucos
referenciais para cercear este debate, é factível encontrar uma similaridade
entre a tentativa de adaptação do conceito ao que Draelants e Ballatore (2021)
identificam como definição ampla do capital cultural, a qual consiste nas
práticas educacionais, como leitura e escrita, que conferem vantagens escolares
aos seus praticantes.
Devido às inconsistências do artigo, as
conclusões se tornam extenuadas, inversamente, se houvesse mais indicadores
para operacionalização do capital cultural (por exemplo, a frequência de
leitura e escrita dos alunos e o seu compartilhamento pelo núcleo familiar, a
diferenciação entre os diplomas dos pais etc.) e um maior referencial
bibliográfico para adaptação do conceito, seria factível afirmar o elevado
rigor teórico-metodológico da pesquisa. Porém, é inegável a virtude do texto
pela sua aproximação com uma prática sociológica relacional, afastando-se dos
demais tipos de instrumentalização do capital cultural que são menos rigorosos
na mobilização da sociologia da prática de Bourdieu.
Embora a produção de Caprara (2020)
possua maior rigor, todos os artigos examinados possuem o mérito de mobilizar
um instrumental produzido em outro contexto, o que implica desafios impostos
tanto pela pouquidade de referências norteadoras, quanto pela falta de dados
para produzir indicadores específicos como o de capital cultural,
principalmente no caso das pesquisas quantitativas que partem de informações
secundárias. Justamente por isto que o exercício da vigilância epistemológica
se faz importante, visto que, pela análise das contribuições ao estado do
conhecimento da área, é possível tensionar os limites da abordagem bourdieusiana,
suas necessidades de adequação e os meios para uma adaptação mais rigorosa.
Portanto, os tipos de instrumentalização (Figura 1) não buscam desvalidar as
contribuições examinadas, mas sim contribuir com o campo educacional a partir
de uma ótica crítica.
Figura 1
Tipos
de instrumentalização do capital cultural
Fonte: o autor.
Considerações
finais
Este estudo exploratório e analítico, ao
empreender o exercício da vigilância epistemológica sobre a instrumentalização
do capital cultural bourdieusiano por pesquisas recentes do campo
educacional brasileiro, apropria-se de uma ótica crítica para examinar o rigor
teórico-metodológico da mobilização do conceito tendo como horizonte o modelo
teórico bourdieusiano. Assim, um dos objetivos deste artigo foi
registrar e discutir criticamente a instrumentalização do conceito de modo a
fomentar o debate acerca da operacionalização da sociologia da prática de
Pierre Bourdieu pela área da Educação brasileira.
Dessarte, inserindo-se no esforço de evitar a transformação do
método em receita de cozinha científica e de contribuir com futuras pesquisas,
este artigo se empenhou em categorizar as imprecisões e exatidões identificadas
no uso do capital cultural por meio da formulação de tipos de
instrumentalização, a saber: 1) a instrumentalização dissociada do
conteúdo teórico, que consiste na desconsideração dos bens culturais e/ou dos
fenômenos da cultura legítima; 2) a instrumentalização mecânica, que pressupõe
uma relação de homologia entre a legitimidade cultural no Brasil e do contexto investigado pelo
sociólogo francês; e 3) a instrumentalização relacional, que tenta adaptar o
conceito para aplicação, o que se aproxima das orientações da prática
sociológica bourdieusiana. Em razão da
centralidade do referencial conceitual do autor, se faz importante o
prolongamento desta discussão a respeito das possibilidades de aplicação e de
atualização da noção de capital cultural com vistas a contribuir com o estado
do conhecimento da área.
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Pierre Bourdieu. Em E. O. Wright (Org.). Análise de classe: abordagens
(pp. 97-132). Vozes.
[i] Graduando em Ciências Sociais
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
[2] Os termos de busca foram: “capital cultural” AND
(educação OR escola OR estudantes OR alunos OR “desempenho
escolar” OR “desigualdades escolares”). Foram aplicados os filtros:
Português, Ciências Humanas, Educational, Education e Sociologia.
Delimitou-se o período de 2010 a 2020 porque o objetivo é analisar a produção
recente da área.