Artigo

Há negros portugueses? Disputa por sentidos à história e cultura em Portugal

¿Hay negros portugueses? Disputa por sentidos a la historia y la cultura en Portugal

Are there Portuguese blacks? Dispute for meanings to history and culture in Portugal


Amilcar Araújo Pereira[i]

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro, RJ, Brasil

amilcarpereira1@gmail.com

https://orcid.org/0000-0001-7781-6882

Fernanda Nascimento Crespo[ii]

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro, RJ, Brasil

nandacrespo@gmail.com

https://orcid.org/0000-0003-2193-6660

Os autores contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.

Recebido em: 31/03/2022

Aceito em: 27/06/2022

Publicado em: 04/07/2022

Linhas Críticas | Periódico científico da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil

ISSN: 1516-4896 | e-ISSN: 1981-0431

Volume 28, 2022 (jan-dez).

http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas

Referência completa (APA):

Pereira, A. A., & Crespo, F. N. (2022). Há negros portugueses? Disputa por sentidos à história e cultura em Portugal. Linhas Críticas, 28, e42667. https://doi.org/10.26512/lc28202242667

Link alternativo:

https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/42667

Licença Creative Commons CC BY 4.0.


Resumo: Este artigo é resultado de uma pesquisa sobre as investidas, por parte de movimentos de luta antirracista, na reeducação da sociedade portuguesa para as relações étnico-raciais, através da produção de disputas narrativas sobre história, cultura e identidade, em Portugal. Como fontes para a análise, utilizaremos principalmente artigos e manifestos produzidos por militantes negros e publicados na imprensa portuguesa entre 2016 e 2019, momento em que ganha força uma importante discussão a esse respeito, envolvendo a criação de dois equipamentos culturais: o Museu das Descobertas e um memorial em homenagem às pessoas escravizadas.

Palavras-chave: Antirracismo. Educação. Imprensa. Portugal.

Resumen: Este artículo es el resultado de una investigación sobre las acciones de los movimientos antirracistas a la reeducación de la sociedad portuguesa hacia las relaciones étnico-raciales a través de la producción de disputas narrativas sobre historia, cultura e identidad en Portugal. Como fuentes para el análisis utilizaremos principalmente artículos y manifiestos producidos por militantes negros y publicados en la prensa portuguesa entre 2016 y 2019, momento en el que una discusión importante a este respecto cobra fuerza que implica la creación de dos equipos culturales: el Museo de los Descubrimientos y un memorial en honor a las personas esclavizadas.

Palabras clave: Antirracismo. Educación. Prensa. Portugal.

Abstract: This article is the result of a research on the investments by anti-racist movements on the re-education of Portuguese society towards ethnic-racial relations through the production of narrative disputes about history, culture and identity in Portugal. As sources for the analysis, we will mainly use articles and manifestos produced by black militants and published in the Portuguese press between 2016 and 2019 years, moment in which an important discussion in this respect gains force involving the creation of two cultural equipment: the Discoveries Museum and a memorial in honor of enslaved people.

Keywords: Anti-racism. Education. Press. Portugal.




Introdução

A frase que dá título a este artigo, Há negros portugueses?, é também o título de um artigo publicado por Regina Queiroz (2017) no jornal Público. Em seu artigo, a autora nos informa que “Tal como acontece com os imigrantes, quando as pessoas negras portuguesas são alvo de discriminação racial devem denunciá-la junto da Comissão para Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR)” (Queiroz, 2017, s.p.), uma comissão supervisionada pelo Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas (Acime) e coordenada pelo Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (Acidi). Queiroz (2017, s.p.) ressalta ainda o fato de que, em casos de racismo, “[...] independentemente do seu estatuto político (imigrante ou nacional), as pessoas negras portuguesas deverem dirigir-se a uma organização sob os auspícios do Comissariado da Imigração não é uma questão politicamente negligenciável”. Essa racialização da população negra promovida pelo Estado – ou “etnicização política dos negros, [...] vistos e tratados pelas instituições públicas como imigrantes e não como cidadãos portugueses” (Queiroz, 2017, s.p.) – nos leva ao debate sobre racismo e às lutas por direitos sociais realizadas por pessoas negras, em Portugal.

Nesse sentido, a imprensa tem sido um importante espaço para a circulação de ideias, mormente para os movimentos antirracistas, e utilizada também como um espaço de luta em torno dos sentidos e significados de ser português, bem como sobre a história e a cultura, em Portugal. Entre os anos de 2016 e 2019, diversas manifestações de ativistas e organizações negras tomaram as páginas de veículos midiáticos, protagonizando um debate sobre questão racial intensificado, sobretudo, devido ao projeto de construção do Museu das Descobertas, em Lisboa. Nesse ensejo, que aspectos da história, da cultura e da identidade em Portugal foram interpelados? Quais estratégias de disputa por sentidos atribuídos ao passado e ao presente daquela sociedade foram acionadas por essas vozes insurgentes? Sendo assim, artefatos da luta antirracista empreendida pela população negra, frente à negação de sua existência e cidadania e contra a negação do racismo como um dos pilares de sustentação da sociedade portuguesa; assim como seus artigos, manifestos e pronunciamentos foram por nós analisados como instrumentos de reeducação para as relações étnico-raciais (Gomes, 2017).

 

Racista é o outro

Dispositivo de poder forjado na modernidade atlântica para dar sustentação aos projetos coloniais (Quijano, 2005), o racismo deixou profundas marcas na formação da sociedade portuguesa, e uma das suas facetas mais eficazes é a institucional. Fundamentado no silencioso pacto da branquitude — ou seja, de uma racialidade branca não nomeada (Bento, 2002), compromissada com a proteção dos privilégios de seu grupo às custas da violação de direitos daqueles que subalternizam como outros —, o racismo institucional tem se manifestado por meio do papel conservador desempenhado por órgãos do Estado, mídia, escolas, universidades e museus, por exemplo, que historicamente se valem da negação do racismo em função da sua própria reprodução/atualização. Essa perspectiva, acionada por Maria Aparecida Bento (2002) para analisar a realidade brasileira, nos parece profícua para a investigação dos casos que seguem, relacionados ao contexto português.

Uma delegação constituída por representantes do Estado português foi recebida, no ano de 2016, em Genebra, por ocasião da 91ª Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, e em relatório afirmou ao Comitê das Nações Unidas para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (Cerd, com base na sigla em inglês) que a desigualdade racial não é problema de grande expressão em Portugal, mas sim um problema global, a ser tratado de maneira holística. Em resposta a esse posicionamento oficial, 22 organizações de luta antirracista portuguesas subscreveram uma carta aberta, enviada ao Cerd e divulgada pela imprensa e outras mídias (Afrolis et al., 2016), na qual registraram seu repúdio ao relatório e divulgaram dados que o contestavam, afirmando que africanos e afrodescendentes têm suas vidas marcadas pelas imposições do racismo – estrutural e estruturante – na sociedade portuguesa (Henriques, 2016).

Embora as pesquisas estatísticas em relação a essa questão sejam dificultadas, em Portugal, por não ser permitido o uso de variáveis como origem racial ou étnica, nos censos demográficos – cuja inclusão vem a ser uma das principais pautas dos movimentos negros e antirracistas portugueses, hoje –, evidências da situação a que a parcela negra da população está submetida em território português puderam ser apontadas a partir de pesquisas baseadas na chamada nacionalidade de origem (Henriques, 2016). E, desse modo, investigações sobre o tema, desenvolvidas junto a universidades portuguesas por nomes como Cristina Roldão, Marta Araújo, Silvia Maeso, Teresa Seabra, Sandra Mateus, Adriana Albuquerque, Graça Fonseca, dentre outros(as), fundamentaram as denúncias divulgadas na carta aberta. Por exemplo, aquelas reunindo dados referentes à moradia: os movimentos signatários expuseram que, em Portugal, “[...] não só estão 7 vezes mais em alojamentos ‘rudimentares’, como muitos afrodescendentes negros vivem em territórios segregados, designadamente em bairros de realojamento social na periferia dos centros urbanos” (Afrolis et al., 2016, s.p.). Denunciaram, também, que os números de encarceramento de pessoas de nacionalidade dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop), em Portugal, chegam a ser 15 vezes superiores aos de encarceramento de pessoas de nacionalidade portuguesa; que estão comumente submetidos a trabalhos sem vínculo empregatício; que estão 3 vezes mais em profissões pouco qualificadas e recebem em torno de 103 euros mensais a menos para executarem as mesmas tarefas. Além disso, os índices de desemprego da população africana e afrodescendente oriunda dos Palop, no mínimo, dobram, em face aos de nacionalidade portuguesa (Afrolis et al., 2016). Por outro lado, na mesma carta aberta, se expõe que “[...] há uma quase total ausência de afrodescendentes negros nos lugares de produção e reprodução de conhecimento, como professores e cientistas” (Afrolis et al., 2016, s.p.).

Nas últimas décadas do século XX, Portugal, até então muito marcado pela emigração, tornou-se destino de intensa imigração. Em um contexto de pós-derrocada do Estado Novo português, de implantação de um regime democrático e de inserção do país na Comunidade Econômica Europeia (CEE), houve uma intensificação do fluxo imigratório de africanos, principalmente oriundos de Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e outras regiões recém-libertas das imposições coloniais lusitanas, para Portugal (Santos & Faria, 2007). E é justamente nesse contexto de mudança expressiva no perfil demográfico português que a lei de nacionalidade instituída em 1959 sofre alterações, com o princípio do jus sanguinis (direito de sangue) se sobrepondo, desde 1981, ao jus soli (direito de solo). O crescimento da população negra em Portugal não foi acompanhado pela inserção de seus sujeitos nas dinâmicas da cidadania. E a ideia de uma identidade nacional fundamentada na vocação para a interculturalidade, que ainda hoje encontra grande capilaridade na sociedade portuguesa, ao sustentar o povo português como dotado de vocação para o relacionamento amistoso com outros povos[3], obstaculiza, a priori, o reconhecimento do racismo como um problema nacional.

Silvia Maeso (2016) afirma que tal narrativa é onipresente, sendo difundida pela mídia, pela academia e pelo turismo hegemônicos, o que, segundo a autora, produz, naquela sociedade, um looping pós-colonial, ao constantemente reatualizar o culto dos Descobrimentos (Maeso, 2016, p. 28), associando às investidas portuguesas no além-mar termos como aventura, exploração e vocação à interculturalidade (Maeso, 2016, p. 39); e silenciando sobre seu caráter violento e sobre as lutas e resistências ao projeto colonial. A exemplo disso, no ano de 2017, em visita oficial ao Senegal, o então presidente da república portuguesa Marcelo Rebelo de Sousa foi à ilha de Gorée, antigo entreposto do tráfico colonial de pessoas escravizadas, de onde declarou que Portugal aboliu a escravidão em 1761 em reconhecimento à dignidade humana, segundo cobertura jornalística (Lusa, 2017). Manifestação da narrativa histórica hegemônica, esse discurso corrobora a ideia de uma suposta excepcionalidade do colonialismo português, caracterizando-o por uma espécie de brandura e acentuado caráter humanístico, constantemente atualizada, especialmente diante de pressões internas e externas a respeito das desigualdades que acometem as pessoas racializadas, como negros e ciganos, em Portugal. E, mesmo ao abordar o empreendimento escravista português, o colonizador é apresentado como aquele que, ao fim e ao cabo, sobrepõe a razão à irracionalidade.

Mamadou Ba (2017), dirigente da associação SOS Racismo, em atividade desde 1990, em seu texto A fábula de um país racista sem racistas, expõe, no jornal Público, a falta de comprometimento do Estado com os projetos da Década dos Afrodescendentes (2015-2024), proclamada pela Organização das Nações Unidas ([ONU], 2013). Para o ativista, essa omissão, corroborada por agentes que ocupam espaços de poder na mídia e na academia, se deve à “[...] defesa de uma narrativa segundo a qual Portugal não é um país racista” (Ba, 2017, s.p.); o racismo se limita a uma questão moral atribuída a determinados indivíduos; e racistas são aqueles que insistem em trazer a questão racial para debate. Assim, quando:

António Barreto diz que ‘Portugal não é um país racista, mas há racistas’, entre eles ‘africanos e ciganos’, o que está em causa é uma tentativa de deslegitimar a luta contra o racismo e a afirmação ideológica de que Portugal não é um país racista. (Ba, 2017, s.p.)

Desse modo, compreendemos que a exaltação aos ditos descobrimentos e aos ideais do lusotropicalismo freyreano têm sido recorrentemente acionados pelo poder hegemônico, em Portugal, como subterfúgio, ou seja, como estratégia de atribuição do racismo ao outro.

 

Antirracismo e reeducação da sociedade

A hierarquização baseada na raça, posta em prática e realimentada, por séculos, através dos projetos de exploração de territórios e pessoas na África, Ásia e América, promoveu a fixação de identidades negativas em relação aos povos desses locais (Bhabha, 2003), bem como gerou tensões sociais que, como o fluxo das águas atlânticas, avançaram tanto sobre os territórios das ex-colônias como sobre o da antiga metrópole, de modo que a sociedade portuguesa se apresenta hoje como é, sim, devido ao histórico colonialista/escravista do país; mas, igualmente, devido às lutas e resistências anticoloniais, antiescravistas e antirracistas.

Amilcar Cabral (1974, p. 137), intelectual e líder revolucionário, fundador do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (Paigc), compreendia a luta política como um “fato cultural, mas também um fator de cultura”. No contexto dos movimentos contra o colonizador português, Cabral (1974) defendeu a própria luta como elemento de produção de significados e sentidos que poderiam levar à unidade entre os povos; ou seja, como fator de cultura. Nesse sentido, Amilcar Pereira e Paolo Vittoria (2012) reconhecem, nas lutas de libertação lideradas por Cabral, um marcante fator educativo, materializado nas centenas de escolas-piloto criadas por todo o território libertado para construir, junto à população, uma consciência política que a despertasse para a luta por independência e que estruturasse um sentimento de unidade no plano nacional e africano.

Já para Stuart Hall (1997), é a cultura que regula as práticas sociais e, por isso, aqueles que “[...] precisam ou desejam influenciar o que ocorre no mundo ou o modo como as coisas são feitas necessitarão [...] de alguma forma ter a ‘cultura’ em suas mãos, para moldá-la e regulá-la de algum modo ou em certo grau” (Hall, 1997, p. 40). Compreendendo a cultura como um elemento de grande relevância para a análise das mudanças históricas e a educação como um instrumento a serviço dessa regulação, o autor questiona:

Mas o que é a educação senão o processo através do qual a sociedade incute normas, padrões e valores – em resumo, a “cultura” – na geração seguinte na esperança e expectativa de que, desta forma, guiará, canalizará, influenciará e moldará as ações e as crenças das gerações futuras conforme os valores e normas de seus pais e do sistema de valores predominante da sociedade? (Hall, 1997, p. 40)

Essa regulação, todavia, é objeto de disputa constante. Mediante a centralidade da cultura para as transformações sociais, as lutas pelo poder têm crescentemente adquirido caráter discursivo e simbólico. Enquanto agentes do poder hegemônico buscam promover um monopólio discursivo e epistemológico a fim de fixar sentidos preferenciais que hierarquizam atores sociais racialmente, os movimentos que abordamos neste estudo têm promovido ranhuras em compartimentos aparentemente herméticos, veiculando suas perspectivas e demandas em relevantes meios de circulação de ideias como a imprensa, a academia e junto ao Estado e às organizações internacionais – tal qual evidenciamos neste artigo; e, assim, têm produzido a desestabilização de símbolos e significados naturalizados.

Nilma Gomes (2017), ao analisar as ações do histórico movimento negro brasileiro, também parte da compreensão de que este, bem como outros movimentos sociais, é sujeito político e de conhecimento; produtor e produto de experiências sociais plurais; e suas ações foram capazes de reconstruir identidades, suscitar novas indagações e ressignificar e politizar conceitos sobre si mesmo e sobre a realidade social em questão. Atuando como pedagogo nas relações políticas e sociais, esse movimento social é responsável por “[...] muito do que o Brasil sabe atualmente sobre a questão racial e africana […] em uma perspectiva crítica e emancipatória” (Gomes, 2017, p. 18) e pela construção e implementação, junto ao Estado, de políticas de promoção da igualdade racial. Essa percepção da autora a respeito dos movimentos sociais no Brasil nos orienta a pensar, levando em conta suas peculiaridades, as ações dos movimentos antirracistas em Portugal, nos últimos anos. Cabral (1974), Hall (1997) e Gomes (2017), que escrevem em contextos tão distintos, guiam nosso interesse pelas lutas e resistências da população africana e portuguesa afrodescendente em Portugal não apenas como produto, mas sobretudo como fator de cultura nessa sociedade. E é justo por isso que nos propomos a investigar o fator educativo, em relação à sociedade, presente nas lutas dos movimentos negros e antirracistas atuantes hoje em Portugal.

A construção e a mobilização do conhecimento histórico, em nossa perspectiva, têm papel muito expressivo no processo de despolitização da questão racial porque, enquanto nega o racismo, mantém hierarquias arraigadas e contribui para a naturalização das desigualdades raciais nas estruturas sociais portuguesas. Estas sendo continuamente naturalizadas nas escolas e na sociedade como um todo, garantem o gozo da cidadania a europeus brancos e seus descendentes, ao mesmo tempo que impõem obstáculos à inserção de africanos e europeus afrodescendentes em sua dinâmica político-social (Pereira & Araújo, 2017). No atual contexto português, Marta Araújo e Silvia Maeso (2013) ressaltam: “estabeleceu-se um consenso mais ou menos explícito que proclama a necessidade de manter uma visão ‘positiva’ da história nacional e europeia” (Araújo & Maeso, 2013, p. 5), destacando supostos aspectos positivos do colonialismo e da escravatura, despolitizando-os e amenizando seus efeitos.

Essas abordagens são por nós compreendidas como parte da sustentação do discurso da chamada modernidade eurocêntrica. Para Enrique Dussel (2005), as narrativas que emanam desse paradigma definem a modernidade como emancipação protagonizada pelo pronome nós, conquanto que referido aos europeus; e negligenciam a violência, também por eles protagonizada, exercida sobre aqueles a quem vão se referir como outros. A supressão da faceta violenta da modernidade se daria, segundo o autor, pela via narrativa de ordem mítico-sacrificial. Ou seja: “pelo caráter ‘civilizatório’ da ‘Modernidade’, interpretam-se como inevitáveis os sofrimentos ou sacrifícios (os custos) da ‘modernização’ dos outros povos ‘atrasados’ (imaturos), das outras raças escravizáveis […]” (Dussel, 2005, p. 30). Assim, em uma perspectiva crítica às narrativas hegemônicas, é enfatizada a colonialidade como o anverso da modernidade, afirmando-se razão e horror como partes constitutivas de um mesmo processo.

A própria ideia de colonialismo, todavia, tem sido esvaziada de seu conteúdo inerentemente irracional e vem sendo abordada, em Portugal, predominantemente sob um prisma triunfalista. No ano de 2016, em discurso oficial pela comemoração do Dia de Portugal, o presidente da república Marcelo Rebelo de Sousa declarou, no Terreiro do Paço, em Lisboa, que:

Podemos dizer que devemos aos acontecimentos ocorridos neste mesmo espaço o que somos hoje e o que fomos sendo desde o século XV. Aqui se misturaram gentes, culturas e produtos vindos por terra ou trazidos por naus e caravelas dos lugares mais longínquos que fomos descobrindo. O nosso cosmopolitismo, para não dizer o nosso universalismo, começou aqui […]. (Presidência da República Portuguesa, 2016, s.p.)

Tal perspectiva ainda é muito difundida na sociedade portuguesa e, em uma análise dos manuais didáticos utilizados na última década, Araújo e Maeso (2013) concluem, por exemplo, que o racismo é constantemente atribuído ao nazifascismo, mas não ao colonialismo. Este é recorrentemente sustentado como um empreendimento cosmopolita, e os portugueses, como grandes pioneiros da globalização e da interculturalidade.

O ensino de história em Portugal, hoje, é orientado, fundamentalmente, por políticas públicas elaboradas em fins da década de 1980 e início da década de 1990, as quais enfatizam a ideia de uma identidade nacional de origens europeias. As histórias de Portugal e da Europa são privilegiadas sob a justificativa da proximidade com as experiências dos estudantes; e se nutre uma abordagem nacionalista que dissocia a violência do projeto colonial português. Apesar de a preocupação com a “consideração e valorização dos diferentes saberes e culturas” constar na Lei de Bases do Sistema Educativo (Portugal, 1986), esses princípios orientadores não mobilizaram, de fato, impactos nos currículos, nas práticas docentes e na formação de professores. Ao longo das décadas de 1990 e 2000, diante de um Portugal muito diversificado etnicamente, ocorre a emergência da ideia de interculturalidade, nos debates em educação. Porém, longe de se travar um embate com o eurocentrismo, no ensino de história essa abordagem tem realizado alterações curriculares ínfimas, mantendo povos não europeus sob o tratamento de o outro que precisa ser incluído (Pereira & Araújo, 2017).

O currículo é assim entendido como um “[...] discurso produzido na interseção entre diferentes discursos sociais e culturais que ao mesmo tempo reitera sentidos postos por tais discursos e os recria” (Lopes & Macedo, 2011, p. 41). Ou seja, sendo oriundo da relação assimétrica entre poderes, o currículo atua na atribuição de significados, criando e enunciando sentidos e identidades tanto pelo que é abordado quanto pelo que é omitido, silenciado. Assim, as narrativas históricas elaboradas em espaços educativos diversos ou mesmo ao circularem na imprensa, ao atuarem como mediadoras “[...] entre a História (vivida) e a produção de um saber para a construção de sentido do mundo” (Gabriel & Monteiro, 2014, p. 34), são delineadas pelas sociedades em que são produzidas, mas são também produtoras de realidades. E se, por um lado, podem servir à manutenção de dinâmicas e estruturas sociais desiguais, podem ser exploradas em seu caráter potencialmente transformador. Um dos aspectos da colonialidade, segundo Walter Mignolo e Júlio Pinto (2015), é o controle e gerenciamento das subjetividades e da episteme, que marca as sociedades historicamente envolvidas em relações colonialistas mesmo após a derrocada das instituições coloniais. Entretanto, os autores sinalizam que é, justamente, no caráter discursivo da modernidade que residem as brechas para a sua contestação e para a elaboração de novas possibilidades de relações humanas (Mignolo & Pinto, 2015).

Amilcar Pereira e Marta Araújo (2017) analisam a marginalidade do ensino de história da África nos currículos brasileiros e portugueses não como uma ausência impensada, mas como um silenciamento consequente da abordagem eurocêntrica, que desqualifica as experiências e culturas africanas e afrodescendentes, naturalizando-as como irrelevantes política e cientificamente, e defendem que a luta pelo conhecimento é uma luta política. Segundo esses autores, em Portugal, a contestação às narrativas eurocêntricas predominantes na construção do conhecimento histórico tem ficado a cargo de movimentos sociais de base:

Praticamente sem recursos financeiros, pequenos coletivos têm promovido a dinamização de bibliotecas comunitárias, debates com alunos e professores em parceria com escolas públicas, atividades de formação e consciencialização política, entre outras. Essas iniciativas colocam em evidência como tem sido marginalizada a agenda antirracista por parte do Estado português e a sua indisponibilidade para repensar os cânones de conhecimento que continuam a pautar a história e o seu ensino. Fulcral nestas lutas tem sido a crítica à própria produção de conhecimento, colocando em evidência a ligação da história do colonialismo e da escravidão ao racismo institucional – uma abordagem marginal no contexto português onde, como noutros contextos, predomina uma abordagem presentista e despolitizadora ao racismo, tido como fruto de preconceitos e incompreensões mútuas. (Pereira & Araújo, 2017, p. 153)

Desse modo, nos dedicamos a uma breve análise das investidas, por parte de movimentos e iniciativas de luta antirracista hoje atuantes, no sentido de reeducar a sociedade através da promoção de disputas narrativas que tomaram a imprensa e outros espaços como arenas de embate e instrumentos de mobilização, difusão e circulação de novos referenciais acerca da história e da identidade portuguesas.

 

Dois equipamentos culturais e uma história em disputa

Desde 2017, duas propostas para construção de equipamentos culturais têm gerado intenso debate na sociedade portuguesa, no qual se destaca a atuação dos movimentos negros e antirracistas: de um lado, o projeto de construção do Museu das Descobertas e, de outro, a aprovação de um memorial dedicado às pessoas escravizadas no decurso de empreendimento colonial português pelo mundo. Fernando Medina (2019), presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), apresentou, naquele ano, como parte do programa político com o qual se candidatara ao cargo, a proposta de criação do Museu das Descobertas a fim de proporcionar “[...] uma reflexão sobre aquele período histórico nas suas múltiplas abordagens, de natureza económica, científica, cultural, nos seus aspetos mais e menos positivos, incluindo um núcleo dedicado à temática da escravatura” (Medina, 2019, p. 101). De imediato, movimentos antirracistas posicionaram-se publicamente contrários a esse projeto, através da imprensa, e divulgaram um manifesto subscrito por diversos de seus integrantes, em que afirmam que tal projeto atendia ao propósito de se dispor de mais um equipamento cultural a privilegiar uma história a serviço “[...] de um proselitismo político e ideológico para aguçar a ‘auto-estima’ nacional” (Amado et al., 2018, s.p.), às custas do silenciamento tanto da violência da escravidão e quanto das agências da população africana e afrodescendente. Assim se posicionaram em Não a um museu contra nós!” (Amado et al., 2018, s.p.):

Não aceitamos um Museu construído sobre os ombros do silenciamento da nossa História, com o dinheiro dos impostos de negras e negros deste país, que não respeita nem valoriza a evolução da própria historiografia e a revisão histórica já feita e em curso, da necessidade de reinterpretação e reconceptualização dos impérios coloniais e do colonialismo. Não em nosso nome! Porque este é um Museu contra nós, que pretende ser erigido ignorando as nossas demandas, o nosso contributo e a nossa resistência. Nós, negras e negros em Portugal, exigimos à CML uma aposta séria num Memorial de homenagem às pessoas escravizadas, num Museu do Colonialismo, da Escravatura ou da Resistência Negra, que descortine os aspetos essenciais e até aqui secundarizados daquilo que foram os reais impactos da empresa colonial de Portugal no mundo, suas consequências no presente e daquilo que foram os reais contributos das pessoas negras na resistência a esse sistema.

Ainda em 2017, a Djass, organização cujo nome significa africano, na língua crioula da Guiné-Bissau, e cuja data de fundação – 25 de maio de 2016 – coincide com o Dia da África, propôs a criação de um memorial em homenagem às pessoas escravizadas pelo projeto colonial português, quando da décima edição do Orçamento Participativo de Lisboa[4] e, pelo voto popular, alcançou aprovação junto à CML para que esta incluísse os custos desse empreendimento em seu orçamento de 2018.

A Djass apresenta como objetivos promover, aprofundar e expandir os debates sobre o racismo, principalmente o institucional, na sociedade portuguesa, tendo como meta a formação de uma massa crítica que pressione os órgãos governamentais a repensarem suas políticas públicas visando à desconstrução da ideia de subalternidade e inferioridade da população afrodescendente e à maior inserção de negros e negras naquela sociedade. E, nas discussões que vem promovendo, essa entidade tem pensado a produção do conhecimento histórico como uma relevante via de luta, o que pode ser notado no seguinte depoimento, exibido pela RTP África, emissora televisiva cuja programação se destina ao público dos Palop, às pessoas originárias desses países e residentes em Portugal e a seus descendentes.

Nós queremos olhar para os manuais escolares e propor uma versão que não seja aquela versão que é aí veiculada; uma versão que contemple o contributo dos negros na história universal que contemple o contributo dos negros na construção do conhecimento […] da cultura e da sociedade que […] mude este olhar, e que tire essa ideia de que África não existia enquanto civilização até os europeus e os colonos chegarem na África. Nós queremos desmontar, alterar esta ideia, dar um bocado de veracidade, não é? Porque nós sabemos que havia civilizações antiqüíssimas que resistiram ferozmente a sua conquista. Portanto é importante desmontar essa ideia […]. (Djass - Associação de Afrodescendentes, 2016, s.p.)

Em artigo escrito ao jornal Público, Dias (2018, s.p.) afirma que a construção de um memorial às pessoas escravizadas é uma proposta que emerge do seio da sociedade civil diante da omissão do Estado que, por sua vez, segue prolongando o “silêncio sobre este violento e longo capítulo da história do país”. Ela defende a construção de um monumento que desafie o “novelo histórico que nos leva da senzala esclavagista ao gueto suburbano, do chicote colonial ao bastão policial, do engenho de açúcar ao estaleiro de obra, da cozinha de ontem à cozinha de hoje”. Sustenta ainda que

Este memorial é um resgate da nossa história, evocada para despertar a memória coletiva do país e confrontar as narrativas que sempre a silenciaram. Queremos ocupar o espaço público com a nossa memória, bem no centro da cidade de Lisboa, a “capital do Império” que oprimiu tantos dos nossos antepassados […] Só assim poderemos superar os legados nocivos do passado, garantir uma efetiva igualdade de direitos e construir uma sociedade onde não haja lugar para a discriminação contra as negras e os negros. Este é o nosso país e nele deve caber a nossa história e o nosso futuro. (Dias, 2018, s.p.)

O acesso limitado da população negra aos espaços legitimados de produção de conhecimento, tal como denunciado na já mencionada carta aberta ao Cerd (Afrolis, 2016), sob nosso ponto de vista, é produto e também fator de assimetrias, na medida em que, tomadas hegemonicamente por paradigmas eurocêntricos, tais instituições de poder reproduzem, em looping, como afirmou Maeso (2016), a perspectiva do homem, branco, europeu, a respeito da história. Entretanto, ora propositivos diante das omissões do Estado, ora reativos às investidas, em reatualizações do lusotropicalismo, os movimentos negros e antirracistas têm ocupado os espaços públicos e tensionado o poder hegemônico em suas mais diversas formas (mídia, academia, Estado) a reconhecer a questão racial como um problema político estrutural e estruturante das desigualdades sociais e, por isso, como uma variável indispensável à produção de conhecimento sobre a história de Portugal.

Para Maeso (2016), a crítica antirracista às narrativas naturalizadas sobre a chamada Idade dos Descobrimentos deve agir no sentido de interromper seu ciclo e propor novas questões, a partir de outras perspectivas. E é desse modo que compreendemos as ações de movimentos sociais que assinam a carta aberta ao Cerd denunciando o racismo como um problema nacional (Afrolis et al., 2016); dos que subscrevem o manifesto contra a construção do Museu das Descobertas, acusando-o de reiterar o discurso pioneirístico e heroicizante dos descobrimentos (Amado et al., 2018); e daqueles que propõem a criação de um equipamento cultural que faça “[...] Portugal olhar de frente para o seu passado não tão glorioso e encará-lo de forma mais abrangente, justa e verdadeira” (Dias, 2018, s.p.).

Homens e mulheres afrodescendentes foram relegados à categoria de outros pelo paradigma da modernidade, em uma relação de poder estabelecida na interação entre europeus e não europeus, mas também na interação entre os próprios europeus. Porém, movimentos negros e antirracistas em Portugal têm tensionado ranhuras nesse discurso/projeto político imposto como natural e universal. Como analisam, especialmente a respeito dos africanos em diáspora, Mignolo e Pinto (2015, p. 396):

Assumindo a identidade social na qual, a despeito de toda a variedade de suas origens cosmológicas, culturais, linguísticas e étnicas, eles têm sido homogeneizados – “negro” –, os africanos da diáspora se têm engajado num processo de ressubjetivização no interior do discurso de modernidade, numa luta pelo reconhecimento de seus plenos direitos como cidadãos de estados-nações situados no ocidente ou reproduzidos em sua periferia.

Uma das pautas que também se destacam nos movimentos sociais comprometidos com a luta antirracista em Portugal atualmente diz respeito à disputa do que é ser europeu e, mais especificamente, do que é ser português. Afrodescendentes, a despeito do cumprimento das normas oficiais de cidadania atuais e ainda que jamais tenham vivido ou sequer visitado qualquer país na África, são comumente percebidos e abordados como imigrantes ou cidadãos de segunda categoria. Nesse sentido, dentre os propósitos da Djass - Associação de Afrodescendentes (2016) estão a promoção e publicização de discussões que rompam com a invisibilidade dos portugueses não-brancos e com a ideia de que Portugal é homogênea em sua formação fenotípica, contestando, desse modo, o imaginário racializado a respeito daquele país, da Europa e do mundo, forjado pelo discurso da modernidade eurocêntrica. Como afirma Paul Gilroy (2002, p. 34):

[…] todos os negros no Ocidente, permanecem entre (pelo menos) dois grandes grupos culturais, que têm se transformado ao longo da marcha do mundo moderno que os formou e assumiu novas configurações. No momento, eles permanecem simbioticamente fechados em uma relação antagônica demarcada pelo simbolismo de cores que se soma ao poder cultural explícito de sua dinâmica maniqueísta central – preto e branco. Essas cores sustentam uma retórica especial que passou a ser associada a um jargão de nacionalidade e filiação nacional, bem como aos jargões de “raça” e identidade étnica.

A negação da subjetividade, das agências históricas e da cidadania às populações afrodescendentes é por nós compreendida como parte de um mesmo discurso/projeto político de dominação ocidental, que afirma o ser negro e o ser europeu como identidades mutuamente excludentes. Gilroy (2002, pp. 33-34), à luz de Du Bois, sustenta que assumir o espaço híbrido, entre tais identidades, “ou tentar demonstrar sua continuidade tem sido encarado como um ato provocador ou mesmo opositor de insubordinação política.” Ao adotar posturas contestatórias em relação à autoridade de determinados símbolos em torno do que viria a ser a portugalidade, os movimentos sociais e sujeitos analisados apresentam-se como agentes de instabilidade/mudança cultural (Hall, 1997). Inspirados ainda em Amilcar Cabral (1974), o já citado intelectual e líder revolucionário africano que viveu e estudou em Portugal nos anos 1950, entendemos que ser negro e português é uma construção identitária, política e cultural, possível a partir da luta antirracista naquele país, que por sua vez consiste em um fato cultural que também produz cultura.

Segundo Boaventura de Souza Santos (2009), o pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal, com dois lados que se opõem e ao mesmo tempo são interdependentes. De um lado, há experiências constituídas como referenciais a partir de um suposto padrão de civilização, que se legitimam pela invisibilização de um outro lado, onde em tese não se produziria conhecimento. Esse outro lado da linha, onde se situam sujeitos e experiências desperdiçadas, já pôde ser localizado geograficamente pela chamada zona colonial; mas, atualmente, não podemos mais assim defini-lo. Um movimento que teria se iniciado nos anos 1970 e se estende aos dias atuais, ao qual Santos (2009) se refere como regresso do colonial e do colonizador, tem promovido o deslocamento das linhas globais, fazendo o outro lado avançar sobre aquele legitimado como referencial de modernidade, ameaçando a segurança das sociedades neste situadas. O autor define esse colonial como “[...] uma metáfora daqueles que entendem que suas experiências de vida ocorrem do outro lado da linha (abissal) – ainda que geograficamente ocupem os limites de um mesmo Estado Nacional – e se rebelam contra isso” (Santos, 2009, p. 33).

Assim, compreendemos as atuações dos movimentos negros e antirracistas, no contexto português da atualidade, como instrumentos de questionamento dos paradigmas abissais por parte desse dito colonial. E, nesse sentido, a sustentação de Beatriz Dias (2018), da Djass, a respeito da criação de um equipamento cultural que narre a história do colonialismo a partir da perspectiva daqueles que tiveram, e ainda têm, seus corpos violados e sua subjetividade negada, nos parece exemplar:

Confrontar e superar esta narrativa eurocêntrica, parcial e enviesada da História é uma tarefa por cumprir […]. Existe uma inabalável devoção a um passado glorioso que não admite contraditório. Aos seus críticos responde com acusações de anacronismo e ideologização, precisamente dois dos seus próprios elementos constitutivos. Nesta narrativa única, a escravização das africanas e africanos são uma gritante ausência ou, na melhor das hipóteses, um dano colateral relegado para as notas de rodapé da História de Portugal. […] Essa é uma das razões pelas quais um memorial dedicado às pessoas escravizadas é tão urgente. […] É altura de combatermos e denunciarmos o negacionismo histórico e o monopólio da memória que tem silenciado a história de tantas pessoas, tocadas pelo “universalismo” português. (Dias, 2018, s.p.)

Cristina Roldão (2019), mulher negra portuguesa, socióloga e professora universitária, uma voz importante no debate acadêmico e público sobre o racismo em Portugal, em seu artigo, no jornal Público, intitulado Feminismo negro em Portugal: falta contar-nos,  nos chama a atenção para as dificuldades enfrentadas hoje por mulheres negras intelectuais que atuem de forma crítica às questões coloniais em Portugal, apresentando-nos casos recentes de intelectuais que optaram por sair do país para melhor desenvolver seus trabalhos a esse respeito. Além disso, denuncia a naturalização da supressão de capítulos importantes da história, indispensáveis para a compreensão da sociedade portuguesa, abordando os recentes movimentos de mulheres negras e também deslocando-se temporalmente alguns séculos para trás, em busca de referenciais para essa luta. No ponto mais distante de sua viagem, Roldão (2019) encontra registros da existência de anônimas quituteiras e calhandreiras, parte da população de escravizados que, segundo suas pesquisas, chegou a configurar 10% da população total de Lisboa entre os séculos XVII e XVIII. São essas quituteiras que, em 1707, diante dos maus-tratos sofridos por autoridades no bairro do Rossio, enviaram ao rei uma petição através da qual reclamavam o direito de exercerem suas atividades naquele local; e, anônimas, também integraram, desde meados do século XV até o XIX, informalmente, confrarias de homens negros em Portugal.

Encontramos referência a mulheres negras, como é o caso de uma mulher negra mestiça, sardinheira eleita como rainha numa das confrarias negras de Lisboa sobre a qual existe um registo de 1597, mas sem que se saiba o nome. Em Elvas, em 1657, Isabel de Matos (descrita como “moça baça e solteira”) é admitida como rainha na irmandade negra desse território, e em 1659, uma mulher negra chamada Felónia é eleita rainha da irmandade, juntamente com o respectivo rei e os restantes membros da corte. Em 1863, Sebastiana Júlia, mulher negra com o título de princesa do Reino do Congo, preside uma peça teatral, em Lisboa, organizada pela confraria negra do mosteiro de Santa Joana, evento noticiado no Jornal do Comércio de Janeiro desse ano. (Roldão, 2019, s.p.)

Mulheres negras de diferentes origens e condições sociais teriam convivido, em Lisboa, em fins do século XIX: as que foram escravizadas em algum período de sua vida; as da aristocracia africana; ou as que compunham uma elite intermediária colonial. A autora nos apresenta, então, à figura de Georgina Ribas (1882-1951):

[…] nascida em Angola, mas que viveu em Portugal desde os 3 anos. Diplomou-se pelo Conservatório Nacional de Lisboa, como pianista e foi professora de música num espaço no Rossio. O periódico A Voz D’Africa dá-nos conta que, em 1929, ela estará envolvida na direcção da Liga das Mulheres Africanas, organização sobre a qual pouco mais sabemos do que ter feito parte do Partido Nacional Africano. (Roldão, 2019, s.p.)

A Liga das Mulheres Africanas; as mulheres que participavam do Grémio Ké-Aflikana dos Africanos; Andressa Nascimento Pina, também conhecida como Fernanda do Vale, “[...] personalidade da vida cultural e recreativa dos salões da cidade de Lisboa” (Roldão, 2019, s.p.), que teria vivido entre os anos de 1859 e 1927; Virginia Quaresima, “[...] negra e lésbica, primeira jornalista portuguesa e importante activista do movimento feminista português” (Roldão, 2019, s.p.), que viveu entre 1882 e 1973; o Centro de Estudos Africanos, que teria funcionado entre 1951 e 1953 na casa de Andreza Espírito Santo, nativista santomense; Alda do Espírito Santo e Noémia de Sousa, poetisas e escritoras que tiveram textos publicados na revista Mensagem, da Casa dos Estudantes do Império (1944-1965), em Lisboa, e que mantinham relações com lideranças dos movimentos por independência como Amilcar Cabral, Agostinho Neto ou Mário Pinto de Andrade: são todos exemplos, dentre outros, acionados por Cristina Roldão (2019), que, nas páginas de um dos jornais de maior circulação em Portugal, atualmente, faz emergir um quinhão silenciado da história da formação da sociedade portuguesa, desafiando a narrativa hegemônica de uma nação homogênea, historicamente, e fenotipicamente branca. Tais personagens e organizações nos conduzem a perspectivas que deslocam as lutas e resistências da população negra do papel de produto colateral da história portuguesa para a posição de produtoras de cultura, que marcarão estruturalmente tal sociedade e, dessa forma, contribuíram potencialmente para a superação do looping pós-colonial denunciado por Maeso (2016) e das narrativas homogeneizantes e cristalizadas sobre o que é ser português(a).

 

Conclusão

Apesar de incipiente, a inserção de pesquisadores(as) afrodescendentes, tais como Cristina Roldão, em instituições legitimadas como polos produtores de conhecimento; e os estudos, ainda que escassos, sobre a questão racial enquanto fator estruturante das relações sociais, no contexto português, especialmente nas duas últimas décadas, com o trabalho de investigadores(as) como Jorge Vala, Rosa Cabecinhas, Marta Araújo, Silvia Maeso, Miguel Vale de Almeida, Teresa Seabra, Sandra Mateus, Adriana Albuquerque, entre outros(as), têm também contribuído para o campo, alertando à importância de se refletir sobre tais assimetrias que são reproduzidas pelas instituições, incluindo a universidade, espaço onde tais vozes citadas se posicionam. Dados produzidos em universidades respaldam denúncias e reivindicações antirracistas como as que analisamos, publicizadas por meio da imprensa. Mas, ao mesmo tempo, as perspectivas investigativas adotadas pelos(as) pesquisadores(as) são também indícios de um processo de reeducação para a compreensão das relações étnico-raciais, promovido pelos tensionamentos dos movimentos negros, naquele contexto.

Nilma Gomes (2017, p. 21) afirmou, sobre o caso brasileiro, que o movimento negro, como educador da sociedade, construiu conhecimentos que questionaram a própria história do Brasil e da população afro-brasileira, ao acionar “[...] novos enunciados e instrumentos teóricos, ideológicos, políticos e analíticos para explicar como o racismo brasileiro opera não somente na estrutura do Estado, mas também na vida cotidiana das suas próprias vítimas”. Os movimentos negros e antirracistas em Portugal, ao denunciarem o apagamento das agências das populações não brancas pelas narrativas históricas de âmbito nacional, transnacional, continental ou mundial; e ao disputarem a noção e o imaginário acerca do ser português e do ser europeu, rompendo com a correlação exclusiva destes com a branquitude, dentro e fora dos espaços formais de educação, como vimos anteriormente, também através de seus artigos, manifestos e entrevistas publicados na imprensa, desvelam o caráter discursivo totalitário e a face violenta da modernidade, abalando pilares de sustentação do projeto de dominação cultural, econômica e política do autodenominado e autorreferente Ocidente.

Tais movimentos assumem assim um papel de destaque no âmbito de uma proposta de reeducação da sociedade portuguesa, que, segundo Cristina Roldão (2019, s.p.), precisa reconhecer Lisboa, a capital portuguesa, sobretudo a partir do pós-independências, “[...] como um lugar e um berço da população negra”. Por isso, consideramos importante compreender como, pondo-se nesse serviço, tais movimentos sociais exploram o potencial transformador dos processos educativos, disputando narrativas e a produção de conhecimento sobre o passado ­– e o presente – na imprensa e na sociedade como um todo, potencializando a circulação de novas ideias, sentidos e significados, produzindo cultura através da luta antirracista, em Portugal.

 

Referências

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[i] Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (2010). Professor Associado da Faculdade de Educação e dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Ensino de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

[ii] Mestre em Ensino de História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2016). Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

[3] A narrativa de excepcionalidade do colonialismo português tem suas bases no lusotropicalismo de Gilberto Freyre e foi apropriada pelas elites políticas portuguesas no contexto da intensificação de movimentos por independências na África, sustentando a ideia de que os portugueses eram colonizadores brandos e benevolentes (Pereira & Araújo, 2017).

[4] orçamento participativo (OP) é uma forma deliberativa de participação no governo da cidade de Lisboa, através da qual cidadãos apresentam propostas para a cidade, posteriormente transformadas em projetos pelos serviços técnicos da CML, e elegem aqueles que querem ver concretizados (Lisboa, s.d.).