Ensaio
Epistemologia
da prática no campo educativo: desafios, possibilidades e perspectivas
Epistemología de la práctica en el campo educativo:
desafíos, posibilidades y perspectivas
Epistemology of practice in the field of education:
challenges, possibilities and perspectives
Luiz Gustavo Bonatto Rufino[i]
Prefeitura Municipal de Paulínia
Paulínia, SP, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-2567-9104
Samuel de Souza Neto[ii]
Universidade Estadual Paulista
Rio Claro, SP, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-8991-7039
Os
autores contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.
Recebido em: 24/01/2022
Aceito em: 22/06/2022
Publicado
em: 27/06/2022
Linhas
Críticas | Periódico científico
da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil
ISSN: 1516-4896 |
e-ISSN: 1981-0431
Volume 28, 2022
(jan-dez).
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas
Referência
completa (APA):
Rufino, L. G. B., & Souza Neto, S. de. (2022). Epistemologia da
prática no campo educativo: desafios, possibilidades e perspectivas. Linhas
Críticas, 28, e41650. https://doi.org/10.26512/lc28202241650
Link alternativo:
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/41650/version/42639
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CC BY 4.0.
Resumo: Este trabalho teve como objetivo analisar
algumas das potencialidades, limitações, desafios e perspectivas relacionadas
ao conceito de epistemologia da prática no campo educativo. Buscou-se, por meio
de um ensaio teórico, fundamentar as compreensões de prática nas ciências
sociais de modo geral e as representações ligadas ao conceito de epistemologia
da prática, perpassando parte de suas origens, críticas e perspectivas atuais.
Conclui-se que é necessário fomentar o desenvolvimento de pesquisas sobre o
conceito de epistemologia da prática, cujo paradigma analítico apresenta
potenciais de contribuição para o desenvolvimento da prática pedagógica e da
produção de saberes no campo educativo.
Palavras-chave: Epistemologia. Prática. Profissionalização. Ensino.
Epistemologia da Prática.
Resumen: Este trabajo tuvo como objetivo analizar algunas de
las potencialidades, limitaciones, desafíos y perspectivas relacionadas con el
concepto de epistemología de la práctica en el campo educativo. Buscamos, a
través de un ensayo teórico, fundamentar la comprensión de la práctica en las
ciencias sociales en general y las representaciones vinculadas al concepto de
epistemología de la práctica, recorriendo parte de sus orígenes, críticas y
perspectivas actuales. Se concluye que es necesario incentivar el desarrollo de
investigaciones sobre el concepto de epistemología de la práctica, cuyo
paradigma analítico tiene potencialidades para contribuir al desarrollo de la
práctica pedagógica y la producción de conocimiento en el campo educativo.
Palabras
clave: Epistemología. Práctica. Profesionalización. Enseñanza. Epistemología
de la práctica.
Abstract: This study aimed to analyze some of the
potentialities, limitations, challenges and perspectives related to the concept
of epistemology of practice in the educational field. We sought, through a
theoretical essay, to substantiate the understanding of practice in the social
sciences in general and the representations linked to the concept of
epistemology of practice, traversing part of its origins, criticisms and
current perspectives. It is concluded that it is necessary to encourage the
development of research on the concept of epistemology of practice, whose
analytical paradigm has potential to contribute to the development of
pedagogical practice and the production of knowledge in the educational field.
Keywords: Epistemology.
Practice. Professionalization. Teaching. Epistemology
of Practice.
Introdução
Este
trabalho fundamenta-se na busca por compreensões acerca do conceito de
epistemologia da prática, o qual tem sido empregado em diversos campos, a
exemplo do contexto educativo, sobretudo nos últimos anos. Eivado em tradições
específicas e fundamentações próprias, uma série de questionamentos incide
sobre tal conceito. Analisar esse processo de desenvolvimento do constructo
conceitual e das principais ideias que perpassaram as representações
pedagógicas sobre a epistemologia da prática é nossa intenção com o estudo.
Com
efeito, podemos afirmar que o campo educativo, em linhas gerais, abrange
extensa magnitude de conceitos e terminologias que, muitas vezes, acabam sendo
utilizadas sem muita atenção aos seus pressupostos teóricos e conceituais. Nesse
sentido, expressões como “epistemologia” e, mais especificamente,
“epistemologia da prática” acabam sendo usadas em alguns contextos com
significados distintos daqueles historicamente construídos e presentes em
outros campos, a exemplo da filosofia, sociologia, história, antropologia,
entre outros.
O
emprego equivocado ou pouco fundamentado de conceitos específicos a outros
campos dentro do contexto educativo não é um fenômeno recente e tem sido alvo
de análise de uma série de autores e estudos, a exemplo de Tardif e Moscoso
(2018). Portanto, tecer análises que busquem elucidar o desenvolvimento e a
construção de conceitos dentro do campo educativo possibilita direcionamentos
mais articulados com os sentidos semânticos e as conjecturas contextuais que
envolvem diferentes conceitos utilizados. Para isso, neste estudo, optamos pelo
viés metodológico do ensaio teórico, possibilitando a análise argumentativa e a
discussão epistêmica sobre o objeto investigado, em nosso caso, o conceito de
epistemologia da prática no campo educativo.
Dada a
representatividade do campo educativo e sua importância social, refletir sobre
os fundamentos e processos de construção teórico-conceitual pode favorecer dois
movimentos: o primeiro relaciona-se com a advertência de usos por vezes
equivocados ou parcialmente corretos, que acabam sendo propagados em muitos
contextos; o segundo, por sua vez, relaciona-se com a importância de se
estabelecer critérios, consensos e estruturas semânticas partilhadas de modo
mais ou menos congruente pelos diversos atores envolvidos no campo educativo, a
exemplo de professores, gestores, fazedores de políticas públicas, etc.
Sendo
assim, embora o conceito de epistemologia da prática tenha ganhado projeção nas
últimas décadas, não se têm ainda muitos estudos que procuraram inventariar e
analisar as formas com as quais tal constructo tem sido compreendido e nem
quais os possíveis encaminhamentos para ele. Dessa forma, a partir desse
recorte investigativo, o objetivo do presente estudo, em caráter de ensaio
teórico, foi analisar o processo de constituição do constructo teórico da
epistemologia da prática, sobretudo a partir de suas relações com o campo
educativo. Buscou-se, desse modo, perspectivar as potencialidades e implicações
desse conceito, seus desafios atuais e os possíveis direcionamentos, tendo em
vista sua consolidação.
Epistemologia e Epistemologia da
Prática: os múltiplos conceitos de epistemologia e as implicações do
“pantanoso” terreno da prática profissional
Inicialmente,
é fundamental compreender, ainda que em linhas gerais, algumas conceituações
acerca do termo “epistemologia”, cerne da análise circunscrita. Dentro do
transcurso etimológico, o conceito de epistemologia agrega diferentes
conotações, cada qual com significações distintas. De acordo com Sánchez Gamboa
(2014, pp. 250-251), o conceito de epistemologia costuma ser empregado para se
compreender o polo de análise sobre “técnicas, métodos e teorias e que se
refere às concepções de ciência, aos critérios de validade e de rigor […] que
se identifica, também, com os pressupostos epistemológicos que definem e
diferenciam as diversas abordagens teórico-metodológicas utilizadas na
pesquisa”. Portanto, a epistemologia congrega forte vinculação com as formas nas
quais os conhecimentos científicos foram sendo produzidos, manifestados e
validados historicamente.
Japiassu
(1991) assevera que o conceito de epistemologia se vincula ao campo da
filosofia da ciência, sendo a área dedicada ao estudo sobre a ciência e suas
implicações. Segundo o autor, as investigações devem ser estabelecidas a partir
de constructos metódicos e reflexivos sobre o saber e suas formas de
manifestação, bem como sua organização, formação, desenvolvimento e
funcionamento. Nesse sentido, pode-se considerar que há certa ambiguidade no
estatuto da epistemologia, uma vez que ela encontra no campo filosófico seus
princípios elementares, embora seu objeto esteja vinculado ao campo científico.
Entretanto,
segundo Tardif (2012), a visão de epistemologia vinculada à teoria e ao estudo
da ciência e do conhecimento científico foi se modificando historicamente, afastando-se
da demarcação entre o que é ou não ciência e se aproximando dos estudos
relacionados aos conhecimentos comuns oriundos da etnometodologia, do
interacionismo simbólico, da sociologia cognitiva, entre outros campos. Para o
autor, desde a década de 1960, houve o esfacelamento das concepções mais
ortodoxas sobre o conceito de epistemologia, a partir da abertura das
compreensões que o relacionavam aos saberes cotidianos, vinculados ao senso
comum. Nesse sentido, foi ganhando cada vez mais proeminência a constituição
epistemológica dos conhecimentos presentes no interior das atividades profissionais,
ou seja, relacionados ao desenvolvimento da prática dos profissionais de
diferentes áreas de atuação. É dentro desse paradigma que o conceito de epistemologia
da prática se insere.
Portanto,
a ideia de se refletir sobre a epistemologia da prática foi sendo sedimentada
historicamente à luz do conhecimento profissional e dos processos de
profissionalização, sobretudo das profissões mais estudadas e reconhecidas
socialmente, a exemplo da medicina, do direito e das engenharias. Partindo-se
dessa consideração, nas últimas décadas do século XX houve um interesse cada
vez maior em se analisar como os profissionais desenvolvem saberes e práticas
no transcurso de suas ações.
Essa
reflexão acerca dos profissionais e suas ações laborais está assentada em dois
vieses que estruturam a análise sobre epistemologia da prática: o primeiro está
relacionado ao interesse pela compreensão sobre como as profissões podem contribuir
com o desenvolvimento do mundo, uma vez que seu papel passou a ser cada vez
mais questionado, a exemplo do que Tardif (2012) denomina de crise da expertise
profissional. O segundo se vale do reconhecimento de que processos formativos não
são capazes de suprir um determinado profissional com os recursos cognitivos e
os saberes integralmente utilizados no exercício da atividade laboral. Tem-se,
nessa configuração, uma das maiores críticas ao paradigma científico
cartesiano: até então, concebia-se que um profissional competente era aquele
que aplicava conhecimentos e teorias em seu exercício profissional. Um exame
mais aprofundado sobre as profissões demonstra uma inversão dessa ideia, isto
é, que um profissional não é um aplicador de conhecimentos adquiridos em outros
contextos, mas, sobretudo, produtor/construtor/mobilizador de um determinado
conjunto de saberes que advêm de sua própria prática.
Esse
questionamento foi ampliado por Donal Schön (1983; 1987; 2000), o qual, baseado
em diversos autores, a exemplo da corrente do pragmatismo de John Dewey,
constatou, por meio da análise crítica sobre o conhecimento científico
cartesiano, que as representações sobre as ideias de profissão estavam
substancialmente equivocadas por meio de um paradigma arraigado à racionalidade
técnica, da qual outra ideia de epistemologia era signatária. Propor outra
compreensão de racionalidade e vinculá-la à ideia de epistemologia da prática
fez com que outros caminhos, tanto para a pesquisa e produção de conhecimento
quanto para o desenvolvimento das ações práticas profissionais, fossem possíveis.
Nesse
sentido, Schön (2000), ao analisar a prática profissional, faz uma analogia
pertinente: para o autor, trata-se de um “terreno pantanoso”, pois, embora as
dificuldades mais superficiais possam apresentar respostas oferecidas pelos
conhecimentos de ordem científica, os problemas mais profundos são caóticos e
confusos e requerem outras estruturas analíticas para sua resolução, que
escapam dos cânones da racionalidade técnico-científica.
Dessa
forma, a análise da prática profissional deve ser composta por aquilo que o
autor denomina de racionalidade prática, apresentada como um outro paradigma,
em oposição à racionalidade técnica. Nessa perspectiva, a prática pode ser
compreendida como um complexo contexto de formação, construção e reflexão de
saberes, a partir da competência, do talento artístico e da capacidade de
reflexão. Inseridas em um processo de certa maneira artístico e intuitivo
composto pelo “hábil fazer” do praticante, as compreensões científicas
tornam-se muito limitadas quando dentro de instáveis contextos de incerteza,
singularidade e conflito de valores (Schön, 2000). Para o autor:
Essas zonas indeterminadas da prática
– a incerteza, a singularidade e os conflitos de valores – escapam aos cânones
da racionalidade técnica. Quando uma situação problemática é incerta, a solução
técnica de problemas depende da construção anterior de um problema
bem-delineado, o que não é, em si, uma tarefa técnica. Quando um profissional
reconhece uma situação como única não pode lidar com ela apenas aplicando
técnicas derivadas de sua bagagem de conhecimento profissional. E, em situações
de conflito de valores, não há fins claros que sejam consistentes em si e que
possam guiar a seleção técnica dos meios. (Schön, 2000, p. 17)
A
partir dessa perspectiva, novos contornos ao conceito de epistemologia podem
ser arrolados. Por isso, houve uma ampliação na utilização do conceito de
epistemologia da prática nas mais diversas áreas. Tais acepções passaram a ser
cada vez mais encontradas, a exemplo dos apontamentos de Lira e Sarmento
(2016), as quais consideram que conceitos como de “profissional reflexivo” e de
“epistemologia da prática” têm sido cada vez mais empregados. Para as autoras,
ao analisarem obras que tangenciam tais conceituações, essas perspectivas não
buscam esvaziar ou desprezar o conhecimento teórico, mas atrelá-lo à relação
entre teoria e prática e suas inter-relações na produção de saberes (Lira &
Sarmento, 2016).
A virada da prática nas ciências
sociais e suas implicações ao campo educativo
Como
visto anteriormente, em linhas gerais, a ideia de se investigar as práticas
profissionais e as condutas de grupos específicos, como é o caso dos
professores, não se deu de modo espontâneo ou foi objeto do acaso dentro do
campo científico. Apesar de por muito tempo a prática ter seu lugar de pouco
destaque e reconhecimento, ela foi paulatinamente galgando importância em
diversas correntes teóricas e perspectivas investigativas. Proceder a uma
análise sobre isso pode corroborar a elucidação dessa fundamentação, que gestou
o nascimento do conceito de epistemologia da prática.
Schatzki
et al. (2001), ao tecerem uma análise do ponto de vista sociológico sobre a
prática, apontam que é por meio da ação e da interação com as práticas que a
mente, a racionalidade e o conhecimento são constituídos e a vida social é
organizada, reproduzida e transformada. Apesar disso, para os autores, a teoria
da prática esteve oposta aos modelos proeminentes de pensamento, como o
individualismo, o intelectualismo, a teoria sistêmica e muitas outras correntes
do humanismo e pós-estruturalismo. Em síntese, compreender a prática revestida
de especificidades epistêmicas não parece ser uma tendência apresentada pela
ciência e, ainda menos, dentro do campo educativo. Ainda mais evidente: a
representação da prática como lócus de produção, mobilização e
construção de saberes, e não apenas como aplicação de técnicas e teorias, foi,
por muito tempo, uma ideia negligenciada e pouco afeita às investigações
científicas.
O aumento
no interesse em se compreender a prática se deu a partir de um conjunto
diversificado de autores e correntes teóricas consolidados ao longo do século
XX. Tal influência se deu em diferentes campos sociais, a exemplo da corrente
pragmática iniciada por John Dewey, o qual influenciou consideravelmente a
gênese do conceito de epistemologia da prática. Todavia, outros autores também
objetivaram tal reconhecimento da prática, a exemplo das ideias de Pierre
Bourdieu com o conceito de habitus, por exemplo, e todo um conjunto de
sociólogos, tais como Norbert Elias. Outros autores merecem destaque, sobretudo
com a ideia de cotidiano, que também pode ser arrolada, a exemplo de Michel de
Certeau, os conceitos de Marcel Mauss, entre muitos outros.
Podemos
denominar tal movimento de valorização da prática como objeto de análise
científica, segundo Schatzki et al. (2001, p. 9) de “virada da prática” nas
ciências sociais. Esse movimento pode ser resumido pelo aumento da compreensão
de que a prática (o que é realizado repetidamente em um dado contexto social)
tem um papel causal na vida social, muito mais do que simplesmente ser
consequência dos discursos sociais, narrativos ou interpretação voluntária dos
agentes.
Apesar
de não haver uma única abordagem para se compreender a prática, muitos teóricos
a concebem como um arranjo mais ou menos ordenado de atividades. Todavia, as
próprias concepções sobre atividade variam consideravelmente. Além disso,
alguns definem prática como conjunto de habilidades, ou conhecimentos tácitos e
pressuposições que sustentam as atividades. Outros autores, a maior parte
filósofos e cientistas sociais, a concebem como arranjos de atividades humanas.
Há ainda uma minoria de acadêmicos de corrente pós-humanista que incluem não
apenas as atividades humanas, mas também aquelas realizadas por máquinas (Schatzki
et al., 2001).
Kemmis
e Wilkinson (2002) estabelecem que existem cinco diferentes aspectos
relacionados às investigações sobre as práticas: análise dos desempenhos
individuais; compreensões sobre as condições e interações sociais e materiais
que as constituem; intenções, significados e valores que as compõem;
linguagens, discursos e tradições alicerçadas na prática; e pesquisas sobre as
mudanças e evoluções das práticas. Para os autores, as análises sobre as
práticas e as pesquisas relacionadas devem conceber duas tradições: a primeira
vincula-se à prática como comportamento individual a ser estudado objetivamente;
a segunda estabelece a prática como comportamento ou ritual de um grupo a ser analisado
coletivamente. Uma compreensão crítica sobre a prática pedagógica dos
professores deve levar em consideração estas duas características, investigando
tanto sua manifestação individual (ligada ao sujeito que a realiza), quanto
coletiva (vinculada às ações sociais advindas de um determinado grupo de
agentes específicos inseridos dentro de algum campo).
Embora
haja inúmeras divergências, Schatzki et al. (2001) destacam que o campo das
práticas, no geral, comporta algumas aproximações entre si. Nesse sentido, para
os autores, conceitos sociológicos e fenômenos tais como “conhecimento”,
“significado”, “atividade humana”, “ciência”, “poder”, “linguagem”,
“instituições sociais” e “transformações históricas” ocorrem no interior das
práticas e/ou são seus aspectos e principais componentes (Schatzki et al.,
2001, p. 9, tradução nossa).
Na
análise de Schatzki et al. (2001, p. 11), o “campo das práticas” é então o nexo
de interconexão das atividades humanas. Dessa forma, duas compreensões emergem
com relação à “abordagem da prática”: a análise de campos de práticas ou algum
de seus subdomínios (exemplo: ciência); ou o lugar de estudo da natureza e
transformação de seus conteúdos. Em ambas as perspectivas, a noção de “campo de
práticas” é o elemento chave da abordagem da prática (Schatzki et al., 2001, p.
11, tradução nossa).
Outro
elemento central de convergências entre os pensadores da prática está em
concebê-la como conceito de “incorporação”, ou seja, “arranjos de atividades
humanas materializadas e mediadas, sendo centralmente organizadas entre
compreensões de prática compartilhada” (Schatzki et al., 2001, p. 11, tradução
nossa). Portanto, nessa perspectiva, as práticas medeiam os contextos nos quais
as propriedades corporais cruciais para a vida social são formadas, não apenas
no que se refere às habilidades e atividades, mas às experiências corporais,
representações e até mesmo às estruturas físicas.
As
práticas não são necessariamente e exclusivamente individuais, mas agregam um
conjunto de representações sociais. As esferas micro e macro se subvencionam na
análise das práticas. Na perspectiva micro, é possível analisar a prática de um
ou mais sujeitos inseridos no mundo social, tais como seus movimentos, ações,
representações, enfim, formas de incorporação da cultura que trazem,
invariavelmente, aspectos sociais. Na perspectiva macro, por sua vez, a teoria
da prática analisa comunidades, sociedades, culturas, assim como governos,
corporações (tais como as profissões), bem como suas formas de dominação e
coerção instituídas por meio das práticas (Schatzki et al., 2001). É dentro
desse quadro analítico que procuramos consolidar a compreensão de epistemologia
da prática.
O conceito de epistemologia da
prática: estruturando um novo paradigma, suas críticas e potencialidades
Embora
não seja possível precisar a gênese do conceito, a fundamentação teórica de
epistemologia da prática teve origem com Schön (1983; 1987), que o cunhou ao
analisar como profissionais reflexivos apresentam um processo de reflexão
durante suas ações, opondo-se à ideia de epistemologia arraigada ao paradigma
da racionalidade técnica. O autor buscou oferecer uma abordagem baseada no
estudo detalhado sobre o que alguns profissionais realmente fazem quando estão
desenvolvendo suas ações, propondo um paradigma alternativo no qual o
conhecimento inerente à prática deve ser entendido como um hábil fazer (Schön,
1983).
Dessa
forma, em oposição ao paradigma positivista da racionalidade técnica, Schön
(1983) propõe uma nova visão de epistemologia da prática, a qual, por sua vez,
está implícita no processo artístico e intuitivo no qual alguns profissionais
realizam suas ações nas situações de incerteza, instabilidade, singularidade e
conflito de valores. Para que isso fosse possível, seria fundamental formar
profissionais reflexivos que pudessem analisar suas próprias práticas e
refletir antes, durante e depois das ações, tendo em vista transformá-las. O
processo de reconhecimento das ações e a reflexão sistemática e periódica foram
os meios apresentados pelo autor para que se pudesse desenvolver esse olhar
crítico e reflexivo.
Nesse
sentido, cabe destaque à intrínseca relação entre os conceitos de
“epistemologia da prática” e de “profissional reflexivo” para Schön. De acordo
com Schön (1983), o conceito de profissional reflexivo é fundamental dentro de
seu quadro analítico, tendo sido inclusive um dos que tomou maior proporção na
literatura, ao compreender que um profissional que reflete sobre sua própria
prática antes, durante e após suas ações profissionais tende a desenvolver
saberes atrelados a ela de modo muito mais consistente do que aquele que, em
linguagem metafórica, opera em “piloto automático”. No entanto, essa
compreensão de reflexividade, fundamental nas análises de Schön, só é possível
porque ela está centrada em uma outra perspectiva epistemológica, justamente a
epistemologia da prática. Nesse sentido, podemos compreender que é dentro do
paradigma da epistemologia da prática que se tornam possíveis ações reflexivas
que levam professores (e demais profissionais) a refletirem sobre o que fazem e
a produzirem conhecimentos e saberes a partir disso. As fundamentações que
compreendem a ideia de “professor pesquisador”, via de regra, são desenvolvidas
dentro dessa mesma perspectiva teórico-conceitual.
Essa
proposição de epistemologia da prática apresentou diversas implicações na
literatura, tendo mobilizado debates acerca do tema da profissionalização do
ensino e da formação profissional, além da própria valorização da prática para
o desenvolvimento de profissionais reflexivos. Como em todo campo teórico, uma
série de críticas passou a ser feita, tendo em vista analisar suas
potencialidades e limitações.
Uma
das análises sobre essa concepção é apresentada por Whitehead (2000), que
critica a construção da epistemologia da prática baseada na resposta à pergunta
“Como eu posso melhorar a minha prática?”. Para o autor, a criação e legitimação da epistemologia da
prática deveria ser viabilizada por meio de processos coletivos de interação
social, nos quais os questionamentos devem incluir conjuntos de pessoas, ou
seja, os professores enquanto grupo social, por exemplo, ao invés de
simplesmente responderem ao questionamento de um ou outro indivíduo.
Pimenta
(2002) corrobora a crítica ao individualismo presente nessa perspectiva e
acrescenta ainda a ausência de critérios que potencializem uma reflexão
crítica, a excessiva ênfase nas práticas, as dificuldades no que corresponde às
investigações nos espaços escolares à luz dessa perspectiva, entre outras. A
autora reconhece, contudo, as contribuições dessa proposição, uma vez que
considerou a reflexão no exercício do ensino como valorização da profissão
docente e dos saberes dos professores.
Alves
(2007) salienta que existe um caráter relativamente recente na introdução de
termos como “epistemologia da prática” no âmbito educativo, o que pode
constituir um paradigma ainda em desenvolvimento. Para o autor:
O campo da formação de professores ao
final do século XX viu chegar novos termos e conceitos referentes aos
professores, sua formação e seu trabalho. Expressões como: epistemologia da
prática, professor-reflexivo, prática-reflexiva, professor-pesquisador, saberes
docentes, conhecimentos e competências passaram a fazer parte do
vocabulário corrente da área. (Alves, 2007, p. 265, grifos do autor)
Freitas
(2002) é categórica ao estabelecer que as políticas formativas brasileiras
apoiadas em conceitos como o de epistemologia da prática buscam retirar a
formação de professores da formação científica e acadêmica própria do campo da
educação, transferindo-as para esse campo da prática. Do mesmo modo, Duarte
(2003) salienta que noções como os conhecimentos tácitos e as abordagens
baseadas em autores como Donald Schön favorecem a secundarização do papel da
teoria e do saber acadêmico ligado à formação de professores.
Podemos
observar, na esteira da problematização apresentada pelos autores supracitados,
que no cerne de tais críticas encontra-se o confronto entre duas perspectivas
paradigmáticas: de um lado, a valorização da racionalidade técnica e sua
tradição na construção do conhecimento científico e implementação na prática
profissional a partir da visão aplicacionista e, do outro lado, a busca pela
compreensão de um processo alternativo fundamentado e organizado sob a égide da
racionalidade prática. Outro conjunto de críticas, por sua vez, culmina na
ideia de individualização da perspectiva de epistemologia da prática.
A
tradição pedagógica, via de regra, está baseada na concepção da racionalidade
técnica com forte caráter científico de aplicação e que, por ser tradição,
apresenta-se como perspectiva hegemônica. A proposta de outras formas de
abordagem vinculada à racionalidade prática, por sua vez, não encontra o mesmo
amparo histórico e respaldo científico e sofre com processos de busca por
legitimidade. Apesar do teor das críticas apresentadas e dos limites referentes
e inerentes a quaisquer paradigmas, consideramos que seria importante haver
maiores proposições de fato vinculadas à racionalidade prática, até para que se
pudesse analisar de forma consubstanciada suas potencialidades e limitações. Os
dados atuais demonstram uma ampliação no número de investigações e um uso
muitas vezes pouco cuidadoso para com o termo “epistemologia da prática”.
Com
relação ao individualismo de tal acepção, de fato Schön não deixa claro como
desenvolver processos reflexivos em caráter coletivo, até por conta de seu
papel de facilitador e mediador de muitos profissionais (muitos dos quais são
ilustrados em seus livros). Todavia, é indubitavelmente possível desenvolver
processos reflexivos de modo coletivo, inclusive há no Brasil diversas
propostas formativas que têm na reflexividade e na partilha coletiva seus
fundamentos. Ainda mais importante, a compreensão de epistemologia da prática
deve ser entendida como um paradigma de produção de saberes a partir e por meio
da atividade profissional, a qual é plenamente possível ser desenvolvida
coletivamente. Falta, no entanto, um conjunto de políticas públicas e de
processos formativos institucionalizados que de fato estejam galgados na
racionalidade prática e que não sejam apenas formas de compreensões formativas
assentadas no paradigma da racionalidade técnica.
Outro
conjunto de críticas é destacado por Alves (2007), que apresenta a tese de que
os estudos orientados pelo conceito de epistemologia da prática são fundados
nos pressupostos teóricos apoiados na filosofia pragmática, cujo principal
referencial é John Dewey. Dessa forma, tais aportes teóricos herdam as mesmas
limitações exaustivamente debatidas acerca do pragmatismo, como, por exemplo,
sua desconsideração das diferenças sociais e de classe, a ênfase na formação
por meio das experiências, o esvaziamento conceitual, e a reprodução de ações e
práticas que tal modelo pode ocasionar, entre outras.
Consideramos,
nesse ínterim, que um conjunto importante de críticas à perspectiva da
epistemologia da prática apresenta discernimento dentro de pressupostos
teóricos de origem crítica. Sem incorrer no risco de negar os importantes
avanços que os referenciais críticos propiciaram para o avanço do conhecimento
dentro do âmbito educativo, a exemplo da consideração das lutas de classe,
problematizamos que essas análises devem ser preconizadas por meio das
limitações teóricas e conceituais do paradigma da racionalidade prática
proposto e não apenas porque tal perspectiva suprime a citação de autores ou
deixa de abordar algum conceito para determinado referencial teórico. Assim,
embora consideremos que seja preciso viabilizar análises mais proeminentes
acerca do diálogo entre essas diferentes abordagens teóricas, algumas
proposições podem ser iniciadas com a análise das relações entre os conceitos
de epistemologia da prática e o conceito de ‘práxis’, amplamente debatido pela
literatura e por referenciais críticos.
A epistemologia da prática no campo da
educação: implicações e apropriações
Tardif
e Moscoso (2018, p. 408) apontam que Donald Schön inaugura uma seara de análises
nas ciências sociais que pode ser denominada de “giro reflexivo”, uma vez que
considera a ideia de reflexão como elemento centralizador do pensar e do agir.
Segundo os autores, as ideias de Schön ecoam em diversas correntes da
filosofia, da epistemologia e das ciências humanas de modo geral, as quais
foram constituídas entre as décadas de 1970 e 1980, apresentando implicações
ampliadas e diversificadas em uma série de contextos.
A tese
defendida por Tardif e Moscoso (2018) recai no fato de que, em que pese a
importância do conceito de reflexividade e “profissional reflexivo” nas
ciências humanas e na filosofia, o campo da educação apropriou-se dele, muitas
vezes, de forma equivocada ou um tanto quanto superficial. Cabe ressaltar que
boa parte da fundamentação do pensamento acerca da epistemologia da prática,
sobretudo advinda da fundamentação de Schön e pós-schöniniana, advém de um
certo desmembramento conceitual sobre os processos de reflexão (sejam antes,
durante ou após o desenvolvimento das ações).
Nesse
sentido, podemos considerar que, apesar das críticas sofridas por Schön, suas
ideias foram muito frutíferas em termos da construção de novos paradigmas de
pesquisas, estabelecendo as bases do desenvolvimento da compreensão da prática
como lócus de construção, mobilização e transformação de saberes. Nesse
direcionamento, Roldão (2007, p. 102), apesar de estabelecer críticas à “ênfase
praticista, que tem dominado a cultura profissional dos professores”, reconhece
também “a valia da epistemologia da prática enquanto iluminadora da sustentação
nuclear do conhecimento profissional na reflexão antes, sobre, na e após a
acção [sic]” (Roldão, 2007, p. 99).
Raelin
(2007) afirma ser necessária uma nova epistemologia da prática, que acrescenta
a práxis à educação em sala de aula, a fim de ajudar os alunos a
desconstruir as estruturas e sistemas que incorporam seus ambientes sociais.
Nessa mesma perspectiva, Ferry (1998), ao investigar as ligações entre
experiência e prática reflexiva, aponta que a experiência, por si só, não
indica que o educador seja um profissional reflexivo.
Beckett
e Hager (2000) apontam que a epistemologia da prática apresenta inovações tanto
conceituais quanto empíricas, estando alicerçada em cinco características: o
contingente (ao invés de estudos exclusivamente formais), a prática
(e não exclusivamente o conhecimento teórico), o processo (e não
exclusivamente a assimilação dos conteúdos), o particular (ao invés do
universal) e a afetividade e os domínios sociais (em vez de somente o
domínio cognitivo). Essa orientação analítica contribui para os processos de
tomada de decisão relacionados ao trabalho docente.
Tardif
e Lessard (1999) contribuem para o desenvolvimento da compreensão de
epistemologia da prática ao vinculá-la aos saberes dos professores. Os autores
afirmam que esses saberes são, entre outras coisas, forjados no trabalho,
estando ligados às tarefas do ensino, sendo interativos, sincréticos, plurais,
heterogêneos, complexos, personalizados, existenciais, temporais, sociais, etc.
Segundo os autores:
Essas características esboçam uma “epistemologia
da prática do ensino” que tem pouco a ver com os modelos dominantes de
conhecimento inspirados nas técnicas, na ciência positivista e nas formas
dominantes do trabalho material. Esta epistemologia corresponde,
acreditamos, àquela que provém de um trabalho que tem o humano como seu
objeto e cujo processo de realização é fundamentalmente interativo, que convoca o trabalhador a se
apresentar “em pessoa”, com tudo o que ele é, com sua história e sua
personalidade, seus recursos e seus limites. (Tardif & Lessard, 1999, p.
403, tradução nossa, grifos nossos)
Tardif
et al. (2001, p. 25) afirmam que a compreensão contemporânea vinculada à
epistemologia da prática baseia-se no princípio de que a prática profissional
se constitui como um lugar autônomo e original de formação. Para os autores, a
prática implica certas determinações e tensões específicas que não são
encontradas em outros âmbitos e que também não podem se reproduzir de forma
“artificial”, seja no contexto da formação na universidade, seja em um
laboratório.
Para
Tardif (2012), a compreensão de epistemologia da prática deve estar no centro
do debate em prol da profissionalização docente. Segundo o autor, no mundo do
trabalho, a natureza dos conhecimentos distingue as ocupações, de forma que, no
caso da educação, a profissionalização pode ser entendida como uma tentativa de
reformulação dos fundamentos epistemológicos do ofício de professor, implicando
em profundas alterações no âmbito da formação para o magistério.
Dessa
forma, o conceito de epistemologia da prática ganha um salto qualitativo em
termos de fundamentação, análise e proposições, a partir das conceituações
elaboradas por Tardif (2012). O autor propõe uma definição de pesquisa, a fim
de construir e delimitar um objeto de investigação baseado no compromisso com
certas posturas teóricas e metodológicas. Nesse sentido, estabelece que essa
epistemologia da prática pode ser compreendida pelo “estudo do conjunto dos
saberes utilizados realmente pelos profissionais em seu espaço de trabalho
cotidiano para desempenhar todas as suas tarefas” (Tardif, 2012, p. 255). Sendo
assim, trata-se de uma postura de investigação que busca compreender como se
desenvolve o processo de produção, mobilização e transformação dos saberes
relacionados às ações profissionais dos professores. Ainda para o autor:
A finalidade de uma epistemologia da
prática profissional é revelar esses saberes, compreender como são integrados
concretamente nas tarefas dos profissionais e como estes os incorporam,
produzem, utilizam, aplicam e transformam em função dos limites e dos recursos
inerentes às suas atividades de trabalho. Ela também visa compreender a
natureza desses saberes, assim como o papel que desempenham tanto no processo
de trabalho docente quanto em relação à identidade profissional dos professores.
(Tardif, 2012, p. 256)
A
elucidação dos saberes relacionados ao trabalho dos professores apresenta
implicações fundamentais em ao menos três âmbitos. São eles: a pesquisa,
a formação e a prática profissional. No que corresponde à
pesquisa, Tardif (2012) aponta que, em toda atividade profissional, é
imprescindível que se leve em consideração o ponto de vista dos práticos, ou
seja, de quem efetivamente realiza as ações profissionais. Isso porque são eles
quem realmente sedimentam seu próprio trabalho e, por meio de suas experiências
tanto pessoais quanto profissionais, constroem seus saberes, assimilando novos
conhecimentos e competências, e desenvolvem novas práticas e estratégias de
ação. Shulman (1987, p. 11, tradução nossa) é enfático ao afirmar que “uma das
tarefas mais importantes da comunidade científica é trabalhar com os
praticantes no desenvolvimento de representações codificadas da sabedoria
pedagógica da prática dos professores habilidosos”. Sendo assim, os professores
devem ser compreendidos como sujeitos do conhecimento, caracterizados por
Tardif (2012) como possuidores de saberes específicos atrelados ao seu ofício.
No que
corresponde à formação, a crítica ao modelo aplicacionista baseado na racionalidade
técnica tem sido o mote da discussão de uma série de propostas de formação
profissional alicerçadas na prática, tais como o modelo clínico proposto por
Perrenoud (1997), cujo objetivo é a articulação entre teoria e prática, ou o
delineamento do practicum adotado por Zeichner (1990), o qual propõe que
a formação profissional deva ser baseada nas ações profissionais, formando
assim práticos reflexivos, entre inúmeras outras propostas.
Dessa
forma, a análise da epistemologia da prática pode contribuir com alterações
curriculares nos cursos de formação profissional, de modo a permitir maior
compreensão sobre as vicissitudes nas quais as intervenções profissionais estão
imersas. Sem incorrer na visão de que a formação de professores seja um “meio
miraculoso que permitiria ultrapassar os limites e as contradições do sistema”
(Perrenoud, 1997, p. 94), é preciso considerar que, ao longo da prática, os
professores levam consigo “toda uma bagagem de saberes provenientes de sua
formação profissional, bagagem certamente incompleta, mas cujo peso não se pode
desprezar” (Gauthier et al., 2013, pp. 302-303). Essa afirmação indica a
necessidade da compreensão dos saberes mobilizados ao longo da prática nos
cursos de formação de professores.
Uma
das implicações desse processo refere-se a se pensar nos possíveis impactos
acerca de uma política curricular alicerçada na perspectiva da epistemologia da
prática. Certamente seriam necessárias alterações estruturais nos currículos de
formação, para que a lógica disciplinar pudesse dar lugar a visões mais
interdisciplinares e muito mais articuladas com o campo profissional. Os
estágios curriculares supervisionados, por exemplo, ganhariam espaço de
destaque nesse processo, ao longo de todo o curso (e não apenas após a primeira
metade, conforme as regulamentações vigentes). Atividades de preceptoria,
indução profissional e diálogo em articulação com profissionais já formados
estariam muito mais presentes e, possivelmente, o “choque de realidade” destacado
por muitos docentes no início de carreira, por exemplo, poderia ser dirimido ou
mesmo equacionado em longo prazo. A própria articulação com o campo da pesquisa
científica ganharia novos contornos, por meio de investigações mais voltadas a
propostas reflexivas e colaborativas (pesquisando com os professores e não
sobre eles, por exemplo).
Finalmente,
a análise da epistemologia da prática apresenta implicações para a prática
pedagógica, uma vez que pode desmistificar e trazer à tona visões ainda obscuras
no que corresponde ao trabalho docente. Tal como Tardif (2012, p. 234)
considera: “o trabalho dos professores de profissão deve ser considerado como
um espaço prático específico de produção, de transformação e de mobilização de
saberes e, portanto, de teorias, de conhecimentos e de saber-fazer específicos
ao ofício de professor”.
Um dos
possíveis desdobramentos se refere à contribuição no desenvolvimento da prática
pedagógica, permitindo aos professores ter mais clareza de seu trabalho. Tal
fato não deve, no entanto, ser visto de forma desarticulada de outros inúmeros
condicionantes atrelados à prática, tais como a valorização profissional, o aumento
de salários, uma carga horária de trabalho compatível e adequada, e outras condições
de trabalho, entre outras questões.
Ainda
com relação às implicações da epistemologia da prática nas ações de intervenção
profissional, destacam-se ao menos dois apontamentos. O primeiro está
relacionado à contribuição que tal aspecto pode oferecer ao processo de
profissionalização do ensino, uma vez que permite a compreensão e definição de
saberes que estão na base do repertório de conhecimentos peculiares ao ofício
de professor (Gauthier et al., 2013).
O
segundo está relacionado à possibilidade de tornar públicos os processos
decisórios dos professores, os quais, de acordo com Gauthier et al. (2013),
ficam muitas vezes restritos à esfera do julgamento particular. Ou seja, criar
uma jurisprudência pedagógica que permita a democratização de ações e decisões
cotidianamente realizadas, mas que, de outro modo, ficam confinadas ao âmbito
individual, o que pode acontecer por meio da criação de comunidades de
aprendizagem de professores (Cochran-Smith & Lytle, 1999).
A
defesa da epistemologia da prática não corresponde, necessariamente, ao
empobrecimento ou esfacelamento teórico-conceitual no âmbito da formação
docente ou da pesquisa em educação, por exemplo, embora esta talvez seja uma
das principais críticas a tal perspectiva. Ao criticarem o modelo de formação
disciplinar e defenderem uma formação centrada na prática, Tardif et al. (2001)
destacam que isso não deve significar a desvalorização dos saberes teóricos e
científicos, e sim procurar entender de que forma eles podem ser articulados
com a profissão. Para os autores:
Este deslocamento do centro de
gravidade da formação inicial não significa que a formação dos professores se
torne uma instância de reprodução de práticas existentes, nem que não comporte
uma forte componente teórica. Este deslocamento significa mais que a inovação,
o espírito crítico, a “teoria” devem ser tomadas em conta com os
constrangimentos e as condições reais do exercício da profissão e contribuir
para a sua evolução e transformação. Assim, a inovação, o espírito crítico e a
“teoria” são ingredientes essenciais para a formação de um praticante
“reflexivo”, capaz de analisar situações de ensino, reacções [sic] dos alunos,
bem como as suas, e capaz de modificar simultaneamente o seu comportamento e os
elementos da situação a fim de atingir os objectivos [sic] e os ideais que se
propôs. Num certo sentido, um praticante “reflexivo” agaloado exerce um
julgamento pedagógico de alto nível, que elaborou ao longo de toda a sua
carreira. (Tardif et al., 2001, pp. 27-28)
A
capacidade de realizar julgamentos é crucial na perspectiva da epistemologia da
prática, uma vez que somente um arcabouço de teorias e conhecimentos
científicos não é capaz, por si, de munir um profissional com competência
suficiente para tomar as melhores decisões dentro das condições em que este
está inserido. É justamente essa articulação entre os conhecimentos e a
capacidade, habilidade e experiência da e na prática que permite ao professor
exercer julgamentos que sejam eficientes e eficazes, condizentes com os
contextos de atuação.
De forma
resumida, consideramos que essa importância tem sido debatida e apoiada pela
literatura, a exemplo de Schön (1983; 1987; 2000) e as formas de agir do
praticante reflexivo em contextos de singularidade de valores e fortes
incertezas. Perrenoud (2002) nos apresenta as competências profissionais que
permitem ao professor tomar as melhores decisões em contextos de urgência e
incerteza. Gauthier et al. (2013) ilustram essa visão a partir da analogia
entre o professor e o juiz no desenvolvimento da prudência e da capacidade de
realização de julgamentos. Beckett e Hager (2000) valorizam a centralidade da
capacidade de julgar como base do aprendizado no local de trabalho. Finalmente,
Tardif (2012) reconhece os vários tipos de juízo nos quais o professor se
baseia, resultados que não se limitam a fatos e evidências, mas incluem as experiências
e saberes. Esses e outros autores têm buscado valorizar essa perspectiva no
campo educativo, embora o debate ainda esteja em processo de ampliação e
constituição efetiva.
Considerações finais: epistemologia da
prática no campo educativo e suas possibilidades
Por
meio de uma análise crítica acerca do processo de pesquisa e produção de
conhecimento no campo educativo, identificamos uma problemática latente: embora
o conceito de epistemologia da prática tenha ganhado projeção nas últimas
décadas, não se têm ainda muitos estudos que procuraram inventariar e analisar
as formas com as quais tal constructo tem sido compreendido e nem quais os
possíveis encaminhamentos para ele. Nesse sentido, por meio de um ensaio
teórico, tivemos como principal objetivo, com este estudo, analisar o processo
de constituição do constructo teórico da epistemologia da prática, sobretudo a
partir de suas relações com o campo educativo. Buscamos, nesse ínterim,
perspectivar as potencialidades e implicações desse conceito, seus desafios
atuais e os possíveis direcionamentos, tendo em vista sua consolidação.
Conforme
analisado no estudo, ao longo das últimas décadas, houve relativa efervescência
no debate e nas proposições vinculadas ao conceito de epistemologia da prática,
sobretudo advindas das fundamentações estruturadas inicialmente por Donald
Schön e seus interlocutores. Essa ampliação apresenta ao menos duas grandes
considerações. A primeira se refere ao fato de tais proposições advirem de um
conjunto ampliado de correntes teóricas e filosóficas, nem sempre coerentes com
os pressupostos inicialmente arrolados a elas. Dito de outro modo: é
relativamente difícil encontrar coerências e consistências teóricas à medida
que o uso conceitual de tal termo tem sido de certa forma pulverizado nas
pesquisas em educação.
A
segunda consideração, na esteira da primeira, se refere não apenas à
diversificação de tais pontos de vista, mas também aos usos equivocados do
termo “epistemologia da prática”, fato que tem empobrecido o debate e as
reflexões acerca de suas potencialidades e limitações. A pulverização de
autores e ideias pode ter ajudado na massificação do termo, o qual, atualmente,
se insere em um conjunto de usos corriqueiros que precisam ser melhor
desenvolvidos do ponto de vista de suas fundamentações e perspectivas. Assim,
questionamos: todos que fundamentam suas reflexões a respeito do termo “epistemologia
da prática” partem do mesmo ponto e abordam ideias relativamente próximas em
termos de concepções paradigmáticas?
Além
disso, podemos considerar que é preciso também uma ampliação das análises.
Muitos autores têm debatido e criticado ideias vinculadas aos usos dos conceitos
de epistemologia da prática e de profissional reflexivo, por exemplo. Todavia,
tais críticas precisam ser absorvidas, assimiladas e debatidas pelos autores
que investigam o campo, para que possam contribuir com a ressignificação
teórico-conceitual crucial para sua reconfiguração epistemológica. É
fundamental reconhecer o papel das críticas para que novas perspectivas possam
ser adensadas ao arcabouço conceitual vinculado à epistemologia da prática.
Finalmente,
considera-se que parte do debate que vem sendo travado no campo educativo e na
interlocução com outros campos sociais, a exemplo do campo político, com as
políticas públicas atualmente em voga, e também do campo científico, com os
processos formativos e de produção de pesquisa, vem reconhecendo e valorizando
o conceito de epistemologia da prática. O desenvolvimento de estudos e pesquisas
tem se mostrado uma tônica que possivelmente vai ser ampliada nos próximos
anos. A influência de tal conceito nas políticas públicas começa a se fazer
presente de modo paulatino, assim como o aumento de estudos e pesquisas pode
demonstrar maior conjectura analítica para com ele.
Desse modo,
em termos de perspectivas, considera-se crucial que haja a continuidade e o
desenvolvimento de estudos e pesquisas sobre o conceito de epistemologia da
prática, tanto em estudos empíricos quanto em pesquisas com dados advindos de
trabalhos de campo. Nessa conjuntura, o campo da formação de professores, por
apresentar importância fundamental no processo de articulação entre os campos
acadêmico/científico e da prática profissional (educativo), deve ampliar as
compreensões conceituais para com o conceito de epistemologia da prática.
Ignorar tal perspectiva pode contribuir para com a marginalização de um
conceito que tem demonstrado potencial de contribuição com o desenvolvimento da
prática pedagógica, da cultura profissional e da produção de saberes no campo
educativo.
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[i] Doutor em Ciências da
Motricidade pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) (2018). Professor de
Educação Básica na Prefeitura Municipal de Paulínia e no Centro Universitário
Unieduk em Jaguariúnia e Indaiatuba.
[ii] Doutor em Educação pela
Universidade de São Paulo (USP) (1999). Docente no Departamento de Educação do
Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista em Rio Claro.