Totalitarismo
epistemológico vs saber sensível na escola a partir
do filme Druk
Totalitarismo epistemológico vs conocimiento sensible
en la escuela desde la película Druk
Epistemological totalitarianism vs sensitive knowledge
at school from the film Druk
Thaís Lobosque
Aquino[i]
Universidade Federal de Goiás
Goiânia, GO, Brasil
tlobosque@ufg.br
https://orcid.org/0000-0002-9767-8509
Keyla Andrea Santiago Oliveira[ii]
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
Campo Grande, MS, Brasil
keylaandrea@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0002-0805-106X
As autoras contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.
Recebido em: 13/12/2021
Aceito em: 10/03/2022
Publicado
em: 17/03/2022
Linhas
Críticas | Periódico científico
da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil
ISSN: 1516-4896 |
e-ISSN: 1981-0431
Volume 28, 2022 (jan-dez).
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas
Referência completa (APA):
Aquino, T. L., & Oliveira, K. A. S. (2022). Totalitarismo
epistemológico vs saber sensível na escola a partir
do filme Druk. Linhas Críticas, 28, e41203. https://doi.org/10.26512/lc28202241203
Link alternativo:
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/41203
Licença Creative
Commons CC BY 4.0.
Resumo: Este ensaio busca desenvolver uma discussão
estético-crítica acerca do totalitarismo epistemológico da razão instrumental
presente em uma escola ficcional representada no filme Druk
- Mais uma rodada (Vinterberg, 2020). Enfatizando a falta de saberes sensíveis
no âmbito educativo em questão, dedicamo-nos a perscrutar sonora e
imageticamente a obra cinematográfica, a partir da metodologia da análise
fílmica, tendo como arcabouço teórico autores da Teoria Crítica. Concluímos
que, apesar das circunstâncias inaugurais na escola dinamarquesa nos remeterem
à construção de saberes aparentemente inovadores, em seu cerne conservavam
opacidade e submissão a epistemologias tradicionais e totalitárias.
Palavras-chave: Epistemologia. Teoria Crítica. Escola. Cinema.
Resumen: Este ensayo busca desarrollar una discusión
estético-crítica sobre el totalitarismo epistemológico de la razón instrumental
presente en una escuela de ficción representada en la película Druk - Una ronda más (Vinterberg,
2020). Enfatizando la falta de conocimiento sensible en el ámbito educativo en
cuestión, nos dedicamos a escudriñar la obra cinematográfica, sus sonidos e
imágenes, con base en la metodología del análisis cinematográfico, teniendo
como marco teórico los autores de la Teoría Crítica. Concluimos que a pesar de
las circunstancias inaugurales en la escuela danesa que nos llevaron a la
construcción de saberes aparentemente innovadores, en su núcleo conservaron la
opacidad y el sometimiento a epistemologías tradicionales y totalitarias.
Palabras
clave: Epistemología. Teoría Crítica. Escuela. Cine.
Abstract: This essay aims to develop an aesthetical-critical
discussion about the epistemological totalitarianism of instrumental reason
present in a fictional school represented in the film Druk - Another Round (Vinterberg, 2020). Emphasizing the lack of sensitive
knowledge, we dedicated ourselves to scrutinize the cinematographic work
soundly and imagetically, using the methodology of
film analysis and having as theoretical framework authors of Critical Theory.
We conclude that despite the inaugural circumstances in the Danish school
leading us to the construction of apparently innovative knowledge, at its core
they preserved opacity and submission to traditional and totalitarian
epistemologies.
Keywords:
Epistemology. Critical Theory. School. Cinema.
Apontamentos iniciais
O escopo deste ensaio é discutir a
relação entre saberes sensíveis e educação por meio de uma análise
estético-crítica do filme Druk - Mais uma rodada (Vinterberg, 2020). Inicialmente,
será feita uma contextualização da obra fílmica. Em sequência, propomos uma
análise estética do filme, em termos imagéticos e sonoros, de forma a desnudar
elementos que contribuem para criar o antagonismo entre apatia e excitação nas
vidas pessoais e profissionais dos quatro personagens docentes, Tommy, Martin, Nikolaj e Peter. Finalmente, procedemos à análise do saber
sensível versus totalitarismo
epistemológico nas aulas de cada um deles, evidenciando um contexto escolar
dinamarquês específico. Em todas as partes, a discussão se alimenta de autores
da Teoria Crítica como Adorno (2008, 2010, 2012), Aquino (2021), Entel (2008),
Fraser e Jaeggi (2020), Oliveira (2014), Tiburi (2014) e Türcke (2010, 2012).
Em termos formal-metodológicos, este
texto situa-se no âmbito de uma discussão teórica de análise fílmica, voltado a
realçar elementos estéticos, imagéticos, musicais e educacionais que, em
articulação, compõem uma rede constelatória. Com base
em Vanoye e Goliot-Lété
(1994, p. 15), realiza-se a reconstrução do filme pela perspectiva das autoras
deste artigo. Desenvolve-se uma nova criação que, de alguma maneira, faça “com
que o filme exista”. A análise fílmica ora desenvolvida tenciona refletir acerca
dos dispositivos estéticos que se articulam na estruturação de uma mise-en-scène com muitas
particularidades: na fotografia, no desenho do som, no arco dramático dos seus personagens
principais, nos enquadramentos e sua relação com o espaço e o tempo. Esses
elementos nos posicionam diante de uma forma de arte particular, que propõe
questões ao espectador, enlaçando sua experiência e capacidade de interpretar,
que pode ser infinita.
A partir deste entendimento,
intentamos realçar as possibilidades de diálogo com a obra cinematográfica fora
da ideia de cinema-indústria, compreendendo-a como linguagem imagética, sonora
e formativa de riqueza ímpar, capaz de produzir significados os mais diversos,
de proporcionar uma experiência estética viva plena de sentidos e nos fazer
questionar o status quo pelo
intrincado dualismo entre ficção e realidade.
Contextualização do filme Druk - Mais uma rodada
Vencedor do Bafta
e do Oscar 2021 na categoria de melhor filme estrangeiro, Druk - Mais uma rodada
(Vinterberg, 2020) é dirigido por Thomas Vinterberg, conhecido por produções
como A comunidade (Vinterberg, 2016),
A caça (Vinterberg, 2012) e Festa de família (Vinterberg, 1998),
sendo este último considerado o marco inicial do movimento Dogma 95[3] .
O diretor assina o roteiro da produção de 2020 ao lado de Tobias Lindholm, com um elenco de atores que já participaram de
filmes anteriores do diretor, como Thomas
Bo Larsen, Mads Mikkelsen, Magnus Millang e Lars Ranthe, interpretando, respectivamente, Tommy, Martin, Nikolaj e Peter. A trilha sonora é assinada por Mikkel Maltha e a fotografia é de
Sturla Brandth Grøvlen.
O enredo gira em torno de um
experimento proposto por Nicolaj – professor de
Psicologia da mesma escola dinamarquesa onde os demais docentes: Tommy ensina
educação física, Martin, história, e Peter, música. No transcorrer da narrativa
fílmica, Nicolaj informa que o experimento citado é
fruto de uma teoria criada pelo filósofo e psiquiatra norueguês Finn Skårderud, o qual, segundo Nicolaj,
afirma nascer os seres humanos com um teor de álcool no sangue 0,5% abaixo do
necessário[4].
Portanto, o desafio acordado pelos professores seria que cada um bebesse até
atingir essa porcentagem, que deveria ser mantida constantemente, antes e
durante as aulas, nunca depois das 20h, sem qualquer ingestão alcoólica aos
finais de semana. Tudo é muito empolgante no início, mas, no decorrer da
narrativa, a experimentação se mostra, no mínimo, problemática.
O experimento alcoólico surge como
antídoto para o enfado dos quatro professores de meia-idade, cujas vidas
pareciam se desenrolar de forma automática, higiênica, organizada,
aparentemente segura em termos materiais, porém tediosa. O filme retrata Martin,
professor de história e protagonista, como a personificação do abatimento.
Tommy parece-nos remeter ao vazio da existência, Nikolaj
a um cansaço interminável e Peter à solidão. Para além de suas vidas pessoais,
os sentimentos de desânimo, falta de confiança e apatia se espraiam para as
aulas de suas disciplinas ministradas na escola retratada pelo filme.
Nos momentos iniciais, a narrativa
fílmica parece se estruturar de modo a sugerir a ausência de sentido das vidas
dos quatro professores a partir de diversos recursos visuais, sonoros e
dramáticos. Este vazio parece encontrar alguma resposta no consumo alcoólico,
que, pelo menos em tese, é controlado por um experimento racionalmente
concebido e coletivamente estruturado pelos quatro professores. Contudo, a
despeito da atmosfera cientificista que permeia o malfadado experimento, todos
eles incorrem no vício.
Para Türcke
(2012), o vício representa um substituto de sentido apoiado num objeto falso,
uma fuga de si próprio, sendo os comportamentos viciados particulares
parte de uma dinâmica viciadora sistêmica. O autor, contrariando a
máxima de Marx segundo a qual “a religião é o ópio do povo”, arremata que “o aguardente (sic)
e o ópio se transformaram na religião do povo” (Türcke,
2012, p. 5). O mote do “culto ao álcool” perpassa todo o filme como algo
sintomático de um problema social daquele país. Problema este demonstrado por
dados recentes de um survey
realizado pela Global Drug
Survey (Global Drug Survey, 2020). O estudo foi realizado com uma amostra de mais
de 110.000 pessoas de mais de 25 países entre 7 de novembro e 30 de dezembro de
2019. Segundo o survey,
os dinamarqueses relataram que ficaram bêbados em, aproximadamente, 31 ocasiões
em um período de doze meses. Eles ocuparam a quarta posição, perdendo apenas
para Escócia, Inglaterra e Austrália; e tiveram um consumo alcoólico maior que
de países como Estados Unidos, França, Brasil, África do Sul, Hungria,
Colômbia, dentre outros (Global Drug Survey, 2020, p. 3).
Assim como outras drogas, o vício pelo
álcool encontra analogia, na visão de Türcke (2010),
no fundamentalismo teológico. Interessante observar que a discussão do filósofo
nos auxilia a enxergar a ação dos quatro personagens de Druk como uma busca de apoio, já
de início, em “uma crença que se alça sobre a base da descrença” (Türcke, 2010, p. 246). O autor compara o comportamento do
viciado ao do religioso dogmático, ambos sustentados em uma aparente confiança,
em cuja base jaz, ironicamente, a desconfiança, a falta de firmeza. A ideia de
vício, portanto, vem acompanhada de uma ideia de diluição dos efeitos da
substância que o causa, a perda da nitidez, a substituição da obstinação
inicial por uma variação que pode tornar o viciado irreconhecível com
consideráveis consequências sociais.
Outra questão surgida aí diz respeito
ao fato de que a ideia de diluição é robusta na condição moderna, podendo o
fetiche direcionado às drogas diluídas ser transferido para o consumo de outras
substâncias ou ações, como alimentos, jogos, sexo, trabalho, entre outros, um
vazio que se espraia para outros setores da vida. Türcke
(2010, p. 251) demonstra que comida, trabalho, jogos e sexo, por exemplo, podem
se tornar fenômenos potencialmente viciantes, ocupando a função da religião ou
mesmo de drogas ilícitas conhecidas.
Nos quatro personagens principais,
contemplamos um ensinar contagiado pela ideia de vício. Não há espaço para a
real criação da aula ou para a construção de saberes. Há a repetição de
fórmulas de sucesso, ideias mirabolantes que a princípio empolgam e parecem
eficazes, geram interesse, mas de saída se apresentam como iniciativas ocas,
desbotadas, sem real vinculação com a vida e com a reflexão ou a crítica. Pouco
se divisa nas aulas uma ideia de problematização; há, no entanto, muitas
informações, como será possível inferir adiante, quando nos concentrarmos na
ideia de carência do saber sensível.
Antes, porém, será interessante
realizar uma breve explanação dos dispositivos estéticos do filme, de forma a
compreender como as narrativas imagéticas e sonoras participam da criação de
atmosferas de descrença e de euforia, de autoconfiança e de falseamento da
realidade. É a partir desta análise que irrompem elementos estético-reflexivos
para pensarmos, mais adiante, na categoria do saber sensível e em seu revés, o
totalitarismo epistemológico.
Apontamentos estéticos, imagéticos e sonoros da
obra fílmica
Apesar de não seguir claramente os
aspectos mais restritivos (Voto de Castidade) que o classificariam como um
filme inteiramente dentro dos padrões do Dogma 95, percebemos uma influência
bastante forte nesse sentido. Não há truques espetaculares de filmagem; o aqui
e agora nas cenas é extremamente valorizado, mesmo com uso de cortes repentinos
ou planos mais longos; há uso de locações reais, como a escola, o restaurante,
as casas de cada personagem, as locações externas, para citar alguns exemplos.
Muito do som produzido é o da própria cena, advindo de um aparelho localizado
na concretude física da atmosfera diegética[5] ou
produzido vocalmente. Há que se ressaltar, no entanto, um elemento bem marcado
e que merece ser comentado: a fotografia.
Percebemos claramente o uso da
iluminação natural, sem muitas manipulações de uma composição artificial; nas
tomadas externas isso é bem evidente. A luz da fogueira ou de uma lanterna, por
exemplo, são as únicas fontes de claridade no acampamento feito pela família de
Martin em certo momento do filme. A iluminação dos ambientes fechados se
consegue por meio de velas, lustres – o que está disposto nos lugares. Isso dá
à fotografia um tom muito próprio dos ambientes de filmagem. Na posterior
colorização, houve certa dificuldade para não contrariar o que seria próprio do
Dogma 95, segundo Emil Erikssom, colorista da
película. Comenta ainda o colorista que o diretor “queria que o look fosse
honesto, verídico e íntimo, e fomos por esse caminho.” (Erikssom,
como citado em Batalha, 2021, s.p.).
Essa verdade buscada pelo diretor
impera do início ao fim. A paleta de cores pastéis predomina, variando muito
pouco em sua vibração, especialmente antes de o experimento ter início, o que
acompanha a trama na sua essência, na vida tediosa, sem grandes acontecimentos.
Percebemos uma imagem mais nítida, mais sublinhada durante o experimento, algo
muito sutil, mas que empresta ao ritmo das cenas um frêmito menos contido.
Portanto, os tons pastéis se tornam um pouco mais vibrantes depois das bebidas;
a fala, antes arrastada, cheia de pausas e suspiros, é mais preenchida, ganha
mais velocidade.
A sugestão de que o álcool poderia
trazer para os sujeitos, na hipótese do psiquiatra norueguês, um espectro de
vida mais relaxado, disposto, musical e aberto, direciona os quatro amigos. É
possível captar uma mudança no espírito de indiferença deles, que ganha
movimento, balanço, dança, ousadia corporal, toques de humor nas frases
construídas, diversão. A fotografia acompanha estas mudanças com contrastes
mais definidos. Assistimos a cenas mais solares com ambientes abertos sendo
enfocados com mais constância.
À medida que nos encaminhamos para o
fim do experimento, os recintos mais herméticos voltam a povoar os planos.
Consequentemente, o colorido perde escala, o filme altera-se imageticamente,
seguindo mais escurecido, pardacento. Na ambiência da casa de Martin, após a
briga com a esposa, os cenários recebem um filtro azulado, que continua na
escola, em seus corredores, o que é reforçado pelas paredes azuis: vemos
brigas, ultimatos, violência, confronto verbal e constrangimento – tudo muito
desagradável e difuso novamente.
Atingido o clímax emocional, aproxima-se
outra fase: do esgotamento, luto, desfechos. Passamos a encontrar claridades. O
branco toma conta das vestimentas, das paredes. Temos luzes, tomadas mais
externas. Os contrastes voltam (ênfase em Martin com roupa preta), assim como a
bebida, terminando a história numa verdadeira chuva de champagne.
Vemos, assim, implicações dramáticas e
psicológicas no uso das cores. O manejo intencional do diretor na coloração que
incide sobre a fotografia, sobre os planos escolhidos de filmagem, em ângulos
específicos, não garante os efeitos esperados, mas com certeza inspira estados
emocionais, acompanhando o enredo arquitetado no roteiro, que, passado à tela,
habilita quem o vê a participar mais intimamente da realidade ficcional
concebida, a envolver-se com as opções feitas e com o resultado final.
Com relação especificamente à
narrativa sonora, conforme mencionado anteriormente, há forte exploração da
paisagem sonora dos ambientes, ou seja, do universo que rodeia as personagens.
Exploram-se sons naturais, objetais, instrumentais, humanos, tecnológicos, para
citar alguns exemplos, que emanam dos espaços frequentados por Martin, Nikolaj, Peter e Tommy. Há, também, uma trilha com
composições vocais polifônicas, obras eruditas e pop, canções ufanistas e hinos
patrióticos.
Em um fundo de tela completamente
preto, a abertura do filme se desenrola ao som de um acorde de Si menor
entristecido, e, enquanto cada uma de suas três notas são melodicamente
entoadas, surge em letras brancas uma citação de Kierkgaard:
“O que é a juventude? Um sonho! O que é o amor? O conteúdo do sonho!”
(Vinterberg, 2020). Na sequência, há gritos eufóricos de adolescentes que se
divertem em uma competição festiva regada a bebidas alcoólicas. Nesse momento,
em contraste com os sons das muitas vozes adolescentes excitadas, há um arranjo
vocal mais intimista e arrastado, em andamento lento, da canção tema do filme, What a life, do
trio musical dinamarquês Scarlet Pleasure. É essa a tônica do filme: a oscilação entre
agitação e letargia realçada pelo consumo desenfreado de álcool.
Para fins analíticos, o filme pode ser
dividido em três grandes partes: antes, durante e depois do experimento
proposto por Nikolaj, como foi exposto acima sobre
seu teor imagético. Na primeira parte, em termos sonoros, há centralidade na
exploração da paisagem sonora de cada ambiente, realçando ruídos e silêncios
com algumas poucas canções realizadas pelo conjunto de personagens, caso das
obras vocais polifônicas: i) I Denmark er jeg
fodt de Poul Schierbeck
com texto de Hans Christian Andersen, cantada pelos alunos na aula de música de
Peter e ii) Fredman’s Epistle n. 30: Drick ur ditt glas,
se döden på dig väntar, de Carl Michael Bellman,
canção com temática fúnebre entoada à capela por um quarteto masculino (seria
uma projeção de Martin, Nikolaj, Peter e Tommy?) que,
inesperadamente, se revela no restaurante onde os quatro professores festejam o
aniversário de 40 anos de Nikolaj.
Em síntese, antes do início do
experimento propriamente dito, o clima de tédio e enfado é comunicado por uma
narrativa sonora que privilegia ruídos, silêncios e poucas obras musicais.
Estas últimas participam das paisagens sonoras dos professores, não sendo
acrescentadas a elas de forma artificial.
No transcorrer do experimento, a
trilha sonora vai ganhando centralidade com obras vocais polifônicas, obras
eruditas instrumentais, hinos patrióticos, canções pop, entre outras. O
despertar dos personagens por meio do álcool se dá de corpo inteiro, o que é
evidenciado na cena em que todos dançam embriagados e de forma improvisada a
canção Cissy Strut da
banda funk norte-americana de Nova Orleans The
Meters. Quanto mais agitação, mais entusiasmo e mais
euforia, maior é a quantidade de obras musicais que percorrem diferentes
estilos e que, sendo frequentemente colocadas pelos próprios personagens em
seus aparelhos de som, expõem estados de humor e ambivalências de cada instante
vivido.
À medida que o experimento vai
demonstrando seus efeitos destrutivos nas vidas sociais e profissionais dos
personagens, especialmente devido ao risco do alcoolismo e até mesmo de morte,
voltam a prevalecer os silêncios, os ruídos, salpicados por poucas obras
musicais que permanecem participando dos ambientes sonoros dos personagens. É o
caso de Jeg elsker den brogede verden, de Hans Vilhelm
Kaalund, cantada à capela pelos estudantes do ensino
médio e que dá à trágica morte de Tommy uma tônica paradoxal de desalento,
reverência e esperança.
O grand finale fica a cargo da canção tema What a life
durante a celebração dos alunos por ocasião de suas aprovações nos exames
finais, momento em que acontece o balé de Martin. A canção somada à performance
dançante do professor de história escancara um cenário paradoxal: há
entusiasmo, mas há ausências (especialmente a de Tommy); mesmo com todas as
adversidades vivenciadas pelas personagens, persiste o consumo de álcool e, com
ele, o perigo do vício; Martin enfim dança e parece se sentir vivo, porém sua
performance é ovacionada pelos jovens com uma chuva de, nada
mais nada menos, champagne. Martin está molhado literalmente de bebida e
metaforicamente de vida e, a partir disso, irrompe o questionamento: como
bebida e vida se alimentam e podem se destruir mutuamente?
Esses breves apontamentos estéticos
sobre o filme Druk
funcionam como pano de fundo para a análise daquilo que nos interessa mais
diretamente neste ensaio: a experiência do saber sensível na escola onde
trabalham Martin, Nikolaj, Peter e Tommy. É
justamente sobre a categoria de saber sensível, bem como sobre as
possibilidades de sua materialização (ou não) expressas em algumas cenas que
acontecem na escola enfatizada na película de Thomas Vinterberg, que nos deteremos
a seguir.
O saber sensível nas aulas dos quatro personagens docentes de Druk – Mais uma rodada
As conjunturas da escola na obra
cinematográfica mostram-se altamente embebidas em uma epistemologia vinculada a
uma razão técnica, administrada, que, pelo seu caráter de univocidade e
opressão, denominamos de totalitarismo epistemológico. Nesse sentido, tal
epistemologia pouco se liga ao saber sensível, que é dialético e traz
possibilidades de reencantar diferentes instâncias da
vida, incluindo objetos, imagens, músicas, entre outros, pela crítica ao
desencanto da experiência contemporânea.
A escolha pelo termo totalitarismo
epistemológico não é aleatória e se justifica pelo fato de que nos contextos
escolares ocidentais e, notadamente no contexto específico evidenciado pela
obra fílmica, há dominância de um conjunto epistemológico de saberes e de
práticas relacionadas a estes saberes que produzem resignação, anulam a
oposição ao que está posto e controlam as subjetividades em (semi)formação. É totalitarismo precisamente por ter um viés
autoritário extremado, ainda que velado, gerando “subordinação da vida ao
processo de produção” (Adorno, 2008, p. 23).
Isso quer dizer que o totalitarismo
epistemológico corresponde a uma lógica estruturada, sistêmica e institucionalizada
de controle das mentes, das corporeidades, das emoções e dos desejos dos
sujeitos escolares, que obstaculiza processos de reflexão e de (auto)crítica
não apenas sob uma perspectiva intelectiva, como também em termos éticos,
emocionais e corporais. É, portanto, uma lógica unívoca e opressora que
permanece ignorando a máxima de Adorno segundo a qual “A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas
para a educação” (Adorno, 2012, p. 119). O totalitarismo epistemológico cria possibilidades
para que “Auschwitz” se repita, a barbárie se repita, ainda que sob novas
roupagens.
O saber sensível é outro modo de
conhecer e de produzir saberes. Seu objetivo se encontra na retomada da
associação entre aspectos do humano para que não se perca o verdadeiro sentido
da formação. Sua essência assinala um teor altamente político, marcado pelo
exercício da crítica permanente e pela luta por justiça social: um despertar
acerca das conjunturas artística, econômica e cultural da sociedade, buscando criticar
uma visão ingênua do mundo e colocando em xeque a representação de totalidade e
controle das subjetividades.
Entel (2008) analisa detidamente a
cartografia dos modos de elaborar os conhecimentos no mundo ocidental. Segundo
a intelectual argentina, a ordem capitalista tem moldado a racionalidade, a
sensibilidade e a imaginação por meio da razão instrumental, da qual decorrem
experiências mutiladas. A proeminência da razão instrumental e da permanente
dissociação entre sensível e inteligível, teoria e prática, razão e emoção,
cognição e corporeidade, é parte de uma lógica alienante, que divide e
hierarquiza saberes e processos de produção do conhecimento.
É o que chamamos de totalitarismo
epistemológico, propulsor de modos de conhecer unívocos, autocentrados, que
sufocam o exercício da negatividade, da crítica, da sensibilidade, de
elaborações constelatórias e transgressoras do modo
de vida contemporâneo, inclusive no interior das escolas. Nesses espaços, é
notória a hegemonia de saberes e modos de operar mais vinculados à
racionalidade, secundarizando ou mesmo suprimindo aqueles relacionados à
sensibilidade em sentido amplo (Entel, 2008, p. 9).
Em face disso, Entel propõe a busca
por um pensamento criativo não dissociador do sensível e do inteligível, que
Aquino (2021) e Oliveira (2014) vêm denominando de saber sensível. Tratando
especificamente do ambiente escolar, Oliveira (2014) afirma que tal saber
restitui às aulas, por exemplo, sua integridade, resgata a união entre práxis,
conhecimento e arte, possibilita o encontro, “desnuda a repressão, as
incertezas e as interrupções, porém favorece profundas mudanças, pois não
impede uma corporeidade, uma sensibilidade propensa a alterações e outras
perspectivas”. Ainda segundo a autora, referindo-se especificamente à educação,
[…] interessa à manutenção
do status quo um sistema educativo
que não permita a indissociação entre razão e
sensibilidade, na valorização do que é “científico”, do que é considerado no
mundo cotidiano a dimensão da construção do saber que por sua vez é alienante,
já que instaura dicotomias e não o que desestabiliza, que não é harmônico e que
muitas vezes choca. (Oliveira, 2014, p. 115)
Centralizando mais especificamente as
epistemologias escolares, Aquino (2021) afirma que práticas pedagógicas
lastreadas em saberes sensíveis favorecem modos de operar articuladores,
justamente por colocar em uma perspectiva constelatória
crítica elementos, em geral, apreendidos e vivenciados de forma dissociada.
Para a autora:
O termo “saber sensível”
busca integrar, em sua própria estrutura gráfica, o sensível e o inteligível,
além de outras tantas dicotomias que vêm cristalizando visões fragmentárias nos
processos de pensar e fazer humanos. Dessa forma, configura-se como um saber
promotor da articulação crítica entre cognição e emoção, razão e imaginação,
intelecto e sensibilidade, bem como da associação de outras unidades dialéticas
como teoria e prática, técnica e reflexão, trabalho e prazer, produção e
contemplação. (Aquino, 2021, p. 199)
A autora prossegue analisando que o
saber sensível, especificamente o saber musical escolar, possui fundamentos
éticos, cognitivos, emocionais e corporais, bem como dimensões científicas,
artísticas e filosóficas, além de estabelecer diálogos com outras perspectivas
humanas, ou seja, outros campos do saber. De forma ampla, modos de conhecer e
de produzir conhecimento ancorados na noção de saber sensível são eminentemente
tensionadores, dialéticos e articuladores, pois
promovem um constante exercício de negatividade frente às sensações de
desencantamento, desumanização e de falta de horizontes utópicos emancipatórios
suscitadas pelo neoliberalismo, fase mais atual do capitalismo.
A esse respeito, Fraser e Jaeggi (2020, p. 14) aventam a ideia de que o sistema
capitalista, que subjuga e determina também o que acontece no sistema de
ensino, é “uma ordem social institucionalizada” (nas palavras de Fraser) ou
mesmo uma “forma de vida” (consoante Jaeggi). No
entendimento das autoras, um contexto de crise ampla e profunda é o pano de
fundo desse sistema na contemporaneidade, que se derrama para além de questões
essencialmente econômicas, abarcando não apenas como a riqueza é distribuída ou
o que é riqueza em sua concepção original ou, ainda, como ela é produzida. Além
disso, tal crise alcança uma multidimensionalidade com facetas ecológicas,
políticas, sociais e, acrescentemos, educacionais.
Listando alguns tópicos centrais do
que figura como destaque na concepção do capitalismo, Fraser e Jaeggi (2020, p. 32) analisam, usando a metáfora do “dançar
conforme a música”, que a música tocada incessantemente neste sistema é
bastante impositiva e a dança tende a acompanhá-la de maneira muito próxima.
Não há desfrute ou diversão: uma palavra corrente é a coação.
Em Druk – Mais uma rodada (Vinterberg,
2020), o capitalismo não é centralizado como assunto de primeiro plano. Mas é
ele que estrutura toda a “ordem social institucionalizada” dos múltiplos
ambientes frequentados por Martin, Nikolaj, Peter e
Tommy, além de permear as mais ínfimas “formas de vida” e os mínimos gestos de
cada um dos quatro professores. Com isso se quer dizer que o relevo não recai
sobre a justiça social na relação com a distribuição e produção de riqueza; nem
mesmo sobre dificuldades de infraestrutura na escola onde atuam; menos ainda
sobre questões referentes ao reconhecimento de minorias alijadas dos diversos
processos sociais, incluindo as práticas pedagógicas.
No filme, a lógica capitalista de
opressão, dominação, separação e hierarquização se faz sentir na organização
curricular, nas epistemologias dos saberes escolares e nas estratégias de sala
de aula. A submissão ao capitalismo significa, na obra fílmica, incorporar no
sistema de ensino as lógicas da competição, da razão técnica, da produtividade,
da eficácia: afinal, o objetivo último é garantir que os estudantes do ensino
médio sejam aprovados nos exames finais. De todo modo, no transcorrer da
narrativa, o experimento etílico parece gerar mudanças nos processos de
ensino-aprendizagem escolares, mas compete inquirir: qual a natureza destas
mudanças? O experimento contribuiu para que a cartografia dos saberes escolares
se aproximasse de uma epistemologia ancorada em saberes sensíveis?
A análise estética do filme, realizada
na seção anterior, revelou que, antes do experimento, a combinação entre texto,
imagem e som foi exitosa ao criar uma atmosfera de tepidez e esmorecimento.
Nesses momentos iniciais, há cenas das aulas de cada um dos quatro professores.
Tommy mal se dirige à turma: ele chega ao ginásio, senta e vai ler jornal
enquanto sugere que um dos alunos conduza o aquecimento. Na aula de Peter, os
alunos entoam de forma mecânica e desinteressada a canção I Denmark er jeg fodt. Nikolaj
profere o conceito de psicologia para alunos alheios, cabisbaixos, que se calam
diante de seus questionamentos retóricos. Na aula de história, Martin lê
maquinalmente o conceito de industrialização e os alunos, sentados e atônitos,
mal conseguem acompanhar seu raciocínio difuso.
Martin, a personagem mais focada pelo
diretor, chama a atenção do espectador para o apagamento de sua subjetividade.
Por meio de várias cenas em que ele aparece em primeiríssimo plano ou plano
próximo, acompanhado pela câmera objetiva e por silêncios e/ou parcos sons do
ambiente, vemos seu abandono da experiência. O desinteresse que ele encerra na
primeira aula de história parece ser fruto desse enredamento no sistema de que
nos fala Tiburi (2014, p. 73):
Somos convidados, pelo
sistema do poder erigido em instituições, a abandonar algo como nossa
experiência todos os dias. Entre nós a experiência é reduzida a curriculum e técnica de trabalho. As
tecnologias que providenciam esta falsa experiência são usadas para a
humilhação das pessoas em diversos sentidos. Temos que ser experientes, mas não
ter experiências. Temos que viver anestesiados. Ao mesmo tempo somos excitados
a todo momento, irritados, deprimidos, oprimidos, seduzidos, conduzidos, tudo
para o fim de transformar este animal sensível e coletivo que somos em robô, em
espantalho do sistema do poder. Desistir da experiência e entrar no faz de
conta espetacular torna-se regra em todos os campos da atividade humana.
O filme desnuda uma escola mergulhada
nessa lógica de desistência na figura de docentes e discentes absolutamente
alheios às experiências educativas. Mesmo que o currículo contemple música – um
saber com potencial para promover experiências estético-dialéticas com saberes
sensíveis –, a aula inaugural de Peter sugere a mesma apatia suscitada pelos
demais componentes curriculares.
Em seu reencontro com os estudantes,
Peter quer ver o quão enferrujados eles estão. Cantar I Denmark er jeg fodt poderia parecer uma
estratégia interessante para diagnosticar a situação da turma e, assim,
preparar uma intervenção pedagógico-musical significativa, centrada nos
fundamentos éticos, cognitivos, corporais e emocionais dos saberes musicais.
Entretanto, aquela canção participa de uma lógica de totalitarismo
epistemológico que enreda os sujeitos escolares, já conformados,
desinteressados, apáticos, incapazes de qualquer tentativa minimamente
transgressora de se relacionar com o saber musical.
Tanto nas aulas de música quanto nas
de história, educação física e psicologia reina o desencanto e o descompromisso
em promover experiências prenhes de sentido. Conforme Adorno, cabe à educação
preparar os homens para o mundo, tendo ela uma dimensão de adaptação, à qual se
imbrica o necessário compromisso com a emancipação (Adorno, 2012, p. 143). Nas
quatro ações docentes dos quatro professores, o polo emancipatório está vazio e
a adaptação corresponde à preparação de sujeitos entristecidos, conformados,
desprovidos de vida para um sistema de dominação desguarnecido de horizontes
utópicos transformadores. Em um cenário assim, não parece sequer possível
imaginar a possibilidade de epistemologias escolares embebidas em saberes
sensíveis.
Após o início do experimento, quando
os professores começam a lecionar com doses de álcool no sangue, Martin parece
dar aulas diferentes. Em uma delas, ele trata, por exemplo, da temática das
eleições com ênfase em aspectos pessoais de personalidades como Roosevelt,
Churchill e Hitler, incluindo o gosto que possuem ou não por bebidas
alcoólicas. Sua ação docente, mais espetacularizada,
desperta o entusiasmo e a participação dos alunos. Todavia, após a excitação
inicial, Martin sugere a retomada da leitura do livro didático.
No breve trecho da aula de Nikolaj, ele incrementa a participação de uma aluna
solicitando que ela leia em voz alta a citação “Ousar é perder o chão por um
momento. Não ousar é perder a si mesmo!” (Vinterberg, 2020) – mais uma de
autoria de Kierkegaard. Tommy, por sua vez, se engaja com uma turma de crianças
em um jogo de futebol de campo e parece se compadecer do bullying sofrido por um aluno ao pedir que toda a equipe o trate
como camarada. Ainda assim, este mesmo aluno permanece sendo chamado por todos,
inclusive por Tommy, de “oclinhos”. O bullying permanece cravado nas
subjetividades dos sujeitos escolares em sua forma mais elementar: uma alcunha
pejorativa que classifica, separa e marginaliza.
Em sua aula, Peter retoma a canção I Denmark er jeg fodt
e sugere que os alunos se ouçam uns aos outros. A fim de despertar uma dinâmica
mais expressiva, o professor coloca os alunos em pé, no escuro e de mãos dadas
para que, em suas palavras, "cantem com os ouvidos, com o coração e com a
alma”. Os alunos respondem ao seu pedido instantaneamente com um canto afinado
e expressivo, sem que Peter tenha trabalhado qualquer conteúdo musical
relacionado à teoria da música, ao exercício de uma corporeidade consciente, ou
mesmo às possibilidades de manejo da emoção estética.
A opção de inaugurar em seus próprios
corpos o experimento com as bebidas alcóolicas faz com que Martin, Nikolaj, Peter e Tommy se entreguem espetacularmente a
aulas visivelmente diferenciadas em sua aparência, mas que, em essência,
conservam a dureza dos conteúdos, a memorização, a falta de significado e de
conexão real com as vidas dos estudantes. No caso específico da aula de música,
acontece algo ainda mais desolador. Os atos de fechar os olhos, dar as mãos e
escurecer o ambiente funcionam como elementos mágicos para recuperar o que foi
perdido: a afinação, a expressividade, o sentimento de pertença e os sentidos
de uma formação musical de qualidade.
Quando os indícios do desventurado
experimento se tornam evidentes, causando sérios prejuízos às vidas dos quatro
professores, que resolvem interrompê-lo, há os exames finais dos adolescentes.
Tommy perde a própria vida; Nikolaj leva a lúgubre
notícia a Martin, que está sóbrio, sério e novamente melancólico; Peter aparece
como um dos solenes avaliadores dos exames finais. O professor de música tenta
auxiliar um de seus pupilos, Sebastian, que teve bloqueios nos exames dos anos
anteriores. Antes do momento decisivo, Peter sugere a Sebastian “tomar uma antes dos exames” (Vinterberg, 2020). Na hora do exame
propriamente dito, ele entrega ao aluno bebida diluída em uma garrafa de água.
Isso faz com que Sebastian consiga falar com desenvoltura sobre o tema que
sorteou: a análise da angústia em Kierkegaard. Nas palavras de Sebastian, tal
análise demonstra “que ele [o ser humano] é falho. É preciso aceitar a si mesmo
como falho para poder amar os outros e a vida” (Vinterberg, 2020).
É interessante perceber que Peter está
entre os professores que realizam os exames, embora tais exames não tratem de
música. Peter incorre em algo impensável: fornecer bebida alcoólica para um
aluno. Impensável em perspectiva, pois mais absurdo que isso é não cumprir o
grande desiderato de todo aquele processo formativo: a aprovação nos exames
finais. É a lógica de um currículo instrumental voltado à inserção dos alunos
no mundo produtivo capitalista que impera, magnânima.
Uma epistemologia pautada por saberes
sensíveis – e, como tais, questionadores de uma racionalidade
instrumentalizada, do totalitarismo epistemológico – não encontra lugar. Nem
mesmo o “álcool”, com toda sua potência, ainda que vã, conseguiria tal feito. A
morte dos saberes sensíveis na escola e na vida contrasta com o sucesso e a
euforia etílica da comemoração dos estudantes aprovados nos exames finais, que
chacoalham como mortos-vivos ao som do hit What a life.
É necessário considerar as costuras
feitas por citações de Kierkegaard no decorrer da narrativa fílmica. Adorno (2010)
realiza uma análise crítica da concepção kierkegaardiana
de interioridade. Para o filósofo alemão, tal concepção caracteriza-se por seu
afastamento de questões sociais, tornando-se, assim, uma interioridade sem
objeto, fechada em si mesma. À medida que o mundo exterior é negado em sua
dimensão objetiva, sem se considerar seu contorno especificamente capitalista,
a interioridade perde a dialética com a realidade social refugiando-se numa
compreensão mítica, espiritualista e a-histórica. Desse modo, a subjetividade
acaba por se fechar em si mesma, absolutizando-se.
É justamente isso que vemos em Druk: uma sombra
da lógica capitalista, que está presente nas mais prosaicas atitudes das
personagens; as interioridades que se desligam do mundo objetivo, entorpecidas
pelo álcool e fechadas em si mesmas; e, finalmente, modos de conhecer/saber
instrumentalizados, totalitários, ancorados nas noções de competição,
produtividade e espetacularização, que não encontram eco em saberes sensíveis.
Esses seriam capazes de colocar em uma tensão constelatória
as cisões e os nivelamentos tão presentes nas escolas e nos modos de vida do
neoliberalismo contemporâneo.
Epílogo
Na obra de Vinterberg (2020), ficam
claros o desenvolvimento e o resultado desastroso do experimento etílico,
incapaz de abarcar os desdobramentos emocionais, sentimentais que cercam o
humano, nas suas contradições e especificidades. Nenhum experimento que tem em
seu cerne uma proposta de generalização e repetição – uma razão administrada –
poderia dar conta dos elementos que são da ordem da falha, da falta, do
imbricado jogo de inexatidão e profundidade que é próprio da realidade da
experiência.
Martin, Peter, Nicolaj
e Tommy aspiravam a novas experiências, embaladas por meio de um experimento, à
grandiosidade de um plano inconcebível no contexto de uma razão entranhada na
alienação, no totalitarismo epistemológico, longe de combinar princípios
éticos, estéticos, políticos e sensíveis. Nada poderia restar, a não ser o
cansaço, a exaustão, já que o entusiasmo conseguido foi artificialmente
induzido. Apesar de todos os percalços enfrentados, o final nos reserva certa
esperança. Há comemoração e indício de recomeços. A predominância do branco nos
sinaliza dias melhores e a dança, o corpo disponível, liberto, dão indícios de
novas possibilidades reais de experiência; aquela calcada na verdade, no
mergulho emancipatório. Ainda assim, há que se considerar a ambivalência da
trilha sonora, que se dá com um produto característico da indústria cultural.
A obra cinematográfica em questão nos
conduz por caminhos tortuosos, criando uma realidade outra, ficcional, da ordem
da imaginação, mas que desnuda as contradições presentes numa sociedade
capitalista. Também nos coloca questionamentos da vida real com os quais nos deparamos
constantemente: como fazer frente a uma ambiência dominada em seus fundamentos
mais ínfimos por uma lógica que mina dia a dia a potência dos sujeitos?
Quanto às disciplinas ministradas na
instituição educativa, as circunstâncias inaugurais nos remetiam à construção
de saberes aparentemente inovadores, com um currículo invejável por contemplar
áreas do conhecimento muitas vezes posicionadas fora de centralidade. Porém, em
seus cernes, conservava-se a opacidade. Numa visão mais crítica, urdida a partir
de transparências, visualizamos o caráter dilacerado nas relações e a
construção de um arcabouço de saberes que poderia ter uma dimensão realmente
libertadora. Contudo, o contexto trazido pela obra fílmica revela um
totalitarismo epistemológico da razão instrumental, que sufoca epistemologias
transgressoras ancoradas em saberes sensíveis.
Referências
Aquino, T. L. (2021). Epistemologia da educação musical escolar: um
estudo sobre os saberes musicais nas escolas de educação básica brasileiras.
Goiânia: Editora da UFG.
Adorno, T. W. (2008). Minima Moralia: reflexões a partir da vida lesada. Beco do
Azougue.
Adorno, T. W. (2010). Kierkegaard:
a construção do estético. Editora da
UNESP.
Adorno, T. W. (2012). Educação e
emancipação. Paz e Terra.
Batalha, R. (2021). Indicado
ao Oscar Druk – Mais uma Rodada finalizado no DaVinci Resolve. Panorama
Audiovisual. https://panoramaaudiovisual.com.br/indicado-ao-oscar-druk-mais-uma-rodada-finalizado-no-davinci-resolve
Entel, A. (2008). Dialética de lo Sensible: Imágenes entre Leonardo y
Walter Benjamin. Aidos Editores.
Fraser, N., & Jaeggi, R. (2020). Capitalismo em debate: uma conversa na
teoria crítica. Boitempo.
Global Drug Survey.
(2020). GDS2020 Key findings report. Global
Drug Survey. https://www.globaldrugsurvey.com/wp-content/uploads/2021/01/GDS2020-Executive-Summary.pdf
Instituto de Cinema SP. (s.d.). Movimentos do Cinema: O que foi o
Dogma 95? Instituto de Cinema SP. https://www.institutodecinema.com.br/mais/conteudo/movimentos-do-cinema-o-que-foi-o-dogma-95
Oliveira, K. A. S. (2014). Possibilidades da experiência estética
na educação da infância. Appris.
Palmeira, C. (2021). Nascemos com déficit de álcool no sangue?
Consultor de filme do Oscar nega. Tecmundo. https://www.tecmundo.com.br/cultura-geek/216175-oscar-consultor-filme-premiado-nega-temos-deficit-alcool.htm
Tiburi, M. (2014). Filosofia da Prática. Record.
Türcke, C. (2010). Sociedade Excitada: filosofia da sensação. Editora da Unicamp.
Türcke, C. (2012). Vício e fundamentalismo.
Em A. A. S. Zuin, L. A. C. N. Lastória,
L. R. Gomes (Orgs.). Teoria crítica e formação cultural: aspectos filosóficos e
sociopolíticos (pp. 89-103).
Autores Associados.
Vanoye, F., & Goliot-Lété,
A. (1994). Ensaio sobre a análise
fílmica. Papirus.
Vinterberg, T. (Diretor). (1998). Festa
de família [Filme]. Nimbus Film.
Vinterberg, T. (Diretor). (2012). A
caça [Filme]. Zentropa.
Vinterberg, T. (Diretor). (2016). A
comunidade [Filme]. Zentropa.
Vinterberg, T. (Diretor). (2020). Druk – Mais uma rodada [Filme]. Nordisk Film;
September Film; Vitrine Film/Synapse Distribution.
[i] Doutora em educação pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (2016). Professora adjunta da Escola de
Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás.
[ii] Doutora em educação pela
Universidade Federal de Goiás (2012). Professora adjunta da Universidade
Estadual de Mato Grosso do Sul.
[3] Tal movimento foi iniciado em 1995 pelos cineastas dinamarqueses
Lars Von Trier e Thomas Vinterberg a partir da publicação do “Manifesto Dogma
95”. Em termos gerais, o objetivo do movimento era contestar a lógica comercial
dos grandes filmes hollywoodianos (blockbusters)
e defender maior autonomia criativa para diretores-autores (Instituto de Cinema
SP, s.d.).
[4] Embora tenha trabalhado como consultor do filme de Vintenberg (2020), Finn Skårderud
desmentiu publicamente esta ideia atribuída a ele no transcorrer da obra. O
psiquiatra diz que o equívoco surgiu de uma “leitura seletiva” de seu prefácio
para a tradução norueguesa do livro Os
efeitos psicológicos do vinho, do italiano Edmondo
De Amicis (Palmeira, 2021).
[5] Diegese refere-se a acontecimentos da própria narrativa, é a
realidade criada na trama com suas particularidades. No filme em questão, o som
que toca ou surge na cena faz parte daquela realidade mesma, pois não foi
introduzido posteriormente, mecanicamente.