Artigo
A trajetória
dos movimentos negros pela educação: conquistas e desafios
La trayectoria de los movimientos negros por la
educación: logros y desafíos
The trajectory of black movements for education: achievements
and challenges
Geruza Sabino[i]
Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e
Mucuri
Diamantina, MG, Brasil
https://orcid.org/0000-0001-6326-3017
Daniel Calbino[ii]
Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e
Mucuri
Diamantina, MG, Brasil
https://orcid.org/0000-0001-8260-6126
Izabel Lima[iii]
Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e
Mucuri
Diamantina, MG, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-1336-7699
Os
autores contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.
Recebido em: 09/11/2021
Aceito em: 07/02/2022
Publicado
em: 14/02/2022
Linhas
Críticas | Periódico
científico da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil
ISSN:
1516-4896 | e-ISSN: 1981-0431
Volume
28, 2022 (jan-dez).
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas
Referência completa (APA):
Sabino, G, Calbino,
D., & Lima, I. (2022). A trajetória dos movimentos negros pela educação:
conquistas e desafios. Linhas Críticas, 28, e40739. https://doi.org/10.26512/lc28202240739
Link
alternativo:
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/40739
Licença Creative Commons CC BY 4.0.
Resumo: Este artigo tem por objetivo resgatar a luta dos
movimentos negros na busca pelo acesso à educação. Por meio de uma pesquisa
bibliográfica, sistematizada em uma revisão de literatura em autores críticos à
historiografia “oficial” da educação, os resultados apontam que os movimentos negros
brasileiros foram protagonistas na efetivação de ações e aprovação de políticas
na educação, desde meados do século XIX. Apesar das vitórias parciais ao longo
da história no combate ao racismo epistêmico, a atual guinada conservadora
coloca ainda, para os movimentos negros, a luta pela manutenção das garantias
adquiridas no campo das políticas públicas educacionais.
Palavras-chave: Educação formal. Movimentos Negros. Políticas públicas.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo rescatar la lucha de
los movimientos negros en la búsqueda del acceso a la educación. A través de
una bibliografía, sistematizada en una revisión de la literatura de autores
críticos de la historiografía “oficial” de la educación, los resultados
muestran que los Movimientos Negros brasileños han sido protagonistas en la
implementación de acciones y aprobación de políticas en educación, desde
mediados del siglo XIX. A pesar de victorias parciales a lo largo de la
historia en la lucha contra el racismo epistémico, el actual giro conservador
coloca, para los movimientos negros, la lucha por mantener las garantías en el
campo de las políticas públicas.
Palabras
clave: Educación formal. Movimientos Negros. Política pública.
Abstract: This article aims to rescue the struggle of the black
movements in the search for access to education. Through bibliographical
research, systematized in a literature review in critical authors of the
“official” historiography of education, the results show that the Brazilian
Black Movements have been protagonists in the implementation of actions and
approval of policies in education, since the mid-nineteenth century. Despite
partial victories throughout history in the fight against epistemic racism, the
current conservative shift still places, for black movements, the struggle to
maintain acquired guarantees in the field of educational public policies.
Keywords: Formal
education. Black Movements. Public policy.
Introdução
Nas instituições educacionais brasileiras, historicamente, a maior parte
dos discentes pouco estudou sobre os líderes negros e negras, como Luís Gonzaga
das Virgens, Luíza Mahin, Lucas Dantas, Teresa de
Benguela, João de Deus Nascimento, Maria Felipa de Oliveira, Manuel Faustino
Lira, Esperança Garcia, Dom Cosme Bento de Chagas e tantos outros que
desenharam a história do Brasil. As memórias das lutas do povo negro, homens e
mulheres, foram deliberadamente ocultadas, postas à margem da história oficial[4],
especialmente da história da educação brasileira, que reduziu a existência
dessa população às narrativas em torno da escravidão (Aguiar, 1989; Vale &
Santos, 2019).
Um contraponto importante foi a Lei n.º 10.639/03 (Brasil, 2003a), fruto
das pressões históricas do movimento negro, que implicou na obrigatoriedade da
temática Histórica e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas. A
legislação ampliou as condições de redesenhar o imaginário popular e fortalecer
a autoestima das populações negras (Gomes, 2017; Silva, 2021). Embora a
inclusão de conhecimentos sobre a educação das relações étnico-raciais
represente um avanço político importante, ainda se tem observado no currículo
escolar um tratamento desigual na escolarização da população negra (Passos
& Santos, 2018).
Mesmo depois da obrigatoriedade do ensino da
história e da cultura afro-brasileira nas escolas em 2003, continua necessário
produzir argumentações que confirmem a existência do racismo no Brasil, além de
demarcar que esse fenômeno, acrescido das desigualdades produzidas pela
sociedade de classe, ainda produz trajetórias desiguais e injustas entre negros
e brancos. Silva e Pereira (2013) sublinham também que a
maioria das ações tem se voltado para o ensino de história, esquecendo-se da
importância da literatura africana e seu contexto cultural, bem como da
necessidade de habilitar os professores para a nova realidade.
Outra variável estratégica nesse processo diz respeito aos livros
didáticos que, fundamentados na conquista de uma política pública de distribuição
nacional de livros, o Programa Nacional de Livros e Materiais Didáticos - PNLD[5],
de forma gratuita, visa garantir o acesso aos conteúdos fundamentais para a
compreensão crítica da sociedade. Porém, ao se questionar quem avalia os
conteúdos que são inseridos nos materiais didáticos, com quais orientações
ideológicas os materiais são previamente debatidos pelos professores nas
escolas, nota-se o tamanho da luta antirracista nas instituições educacionais (Copatti, 2021).
Em similaridade, mesmo a renovação da historiografia com o expressivo
número de trabalhos, que tratam dos movimentos negros e suas conquistas, não
deu conta de desnaturalizar uma tradição monoculturalista
e eurocêntrica que subalternizou os saberes fora do cânone (Fonseca, 2007; Munanga, 2015). Ou seja, para além das ausências dos corpos
negros nos espaços escolares, especialmente nos níveis mais altos de ensino, há
também o racismo epistêmico e cultural, por meio da repressão de outras formas
de produção não europeias, que negou o legado intelectual e histórico dos povos
africanos e indígenas (Ferreira, 2018).
Ao observar a bibliografia da área de história da
educação brasileira, disciplina específica no currículo de formação dos
educadores, Cruz (2005) reforça que não foram evidenciadas experiências
escolares da população negra anteriores à década de 1960, momento de maior
expansão da rede pública no país. Nesse caso, como explicar essa ausência, se
desde o início da república, através das organizações negras e da imprensa
negra, já se tinham ações políticas e intelectuais, escolares e não escolares,
voltadas à educação do povo negro, e articulações políticas que reivindicavam
garantias de inserção dessa população em um sistema público educativo adequado
às suas necessidades?
Remando contra a corrente, os movimentos negros
continuam trabalhando para que personalidades como Pretextato dos Passos e Silva, Abdias Nascimento, Alberto Guerreiro Ramos, Ironides Rodrigues, Lélia
Gonzales, Beatriz Nascimento e Sueli Carneiro sejam inseridos nesse contexto
histórico de luta por educação de qualidade, pública e gratuita, como
protagonistas.
No intuito de contribuir para o processo de descolonização dos saberes,
dialogando com outras perspectivas epistemológicas que reconhecem o protagonismo
do povo afrodiaspórico, propomos com o presente
artigo resgatar a luta dos movimentos negros na busca pelo acesso à educação,
oferecendo maior visibilidade à atuação dos mesmos, ao longo dos últimos
séculos. Assumiremos a definição de Gomes (2017), que entende o movimento negro
pelas diversas formas de organização e articulação no campo da questão racial.
Assim, serão englobados os grupos políticos, acadêmicos, culturais, religiosos
e artísticos com o objetivo de superação da discriminação racial no campo
educacional do Brasil.
Com base nesse
conceito, buscamos romper com a historiografia hegemônica que considera os
movimentos negros oriundos apenas em 1930 (com a Frente Negra Brasileira), e
retomada, depois de refluxos, no Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978. Por
compartilharmos da ideia de que lideranças e organizações situadas na
microesfera do poder também contribuíram, enquanto formas de resistência, para
a luta antirracial, neste artigo serão incorporadas
às ações no campo da educação que vão das primeiras reivindicações de pais e
mães por escolas para os negros (no século XIX), aos recentes coletivos
estudantis nas universidades brasileiras.
Assim, por meio de uma revisão de literatura apoiada em pesquisas em
bibliotecas eletrônicas nas plataformas da Scielo e
Google Acadêmico, acessamos periódicos, livros físicos e virtuais que tratassem
da história do movimento negro no Brasil na educação. Buscamos autores que
contam a história do engajamento dos povos negros como protagonistas na luta
pela educação, sob a orientação de uma epistemologia crítica à historiografia
que omitiu as suas ações. Assim, trataremos de “enegrecer” as conquistas
históricas e apontar para os atuais desafios dos movimentos negros no campo das
políticas educacionais.
Além da presente introdução, o artigo se estrutura em seis seções que
resgata as fases[6]
dos movimentos negros no campo da educação, perpassando desde as condições do
período do início do século XIX aos desafios dos últimos anos. Por fim, serão
tecidas as considerações finais.
Condicionantes e as primeiras lutas afrodiaspóricas
pela educação (1824-1889)
Desde a chegada em massa dos povos africanos ao Brasil, as formas de
exploração da vida do povo escravizado eram totalitárias, impossibilitando
qualquer garantia no campo da educação. Esse processo se arrastou ao longo de
quatro séculos, sendo reforçado na primeira constituição do país (Império do
Brasil, 1824) que impossibilitava a alfabetização formal desses povos
(Domingues, 2009).
Na província do Rio de Janeiro, presidida por Paulino José Soares de
Souza, foi expedida a Lei n.º 1, de 1837 (Associação Rio Grandense
de Pesquisadores em História da Educação [ASPHE], 2005), sobre instrução primária, que em seu artigo 3º proibia escravos e
pretos africanos, ainda que livres ou libertos, de frequentar as escolas
públicas, uma clara indicação ideológica da política educacional brasileira
(Fonseca, 2007)[7].
É somente a partir do Decreto n. 1.331, de 17 de janeiro de 1854 (Império do
Brasil, 1854), que se passou a prever a instrução de pessoas negras, mas
condicionada aos negros livres e à disponibilidade de professores.
Uma das primeiras experiências de destaque no campo da reivindicação
pelo direito à educação ocorreu a partir da criação da Escola de Primeiras
Letras, em 1853, gerida pelo professor negro, Pretextato
dos Passos e Silva, no Rio de Janeiro (Silva, 2012). A escola, situada na Rua
Alfândega, 313, foi criada a partir das demandas dos pais e mães de crianças
que, por serem malquistos nas escolas dos brancos, clamaram para a formação dos
seus filhos (Pereira et al., 2020).
Segundo Silva (2012), em 1856, Pretextato dos
Passos requereu ao inspetor geral da Instrução Primária e Secundária da Corte,
Eusébio de Queiroz, a sua dispensa das provas de capacitações, na época, uma
exigência para o exercício do magistério. Nas argumentações, montou um dossiê
com dois abaixo-assinados dos pais em defesa da continuidade do ensino e as
justificativas que o impossibilitavam de prestar os exames para docência. Após
a sua aprovação, a escola funcionou até 1873 com 15 alunos, quando foi
despejado da casa onde lecionava.
Nas décadas seguintes, o Decreto de Leôncio de Carvalho (Palácio do Rio
de Janeiro, 1878) permitiu a criação dos primeiros cursos para os livres e
libertos. No entanto, das 403.827 crianças negras nascidas entre 1871 e 1885,
apenas 113 (0,02%) foram encaminhadas para os estabelecimentos de ensino, o que
colocava um alto déficit educacional na população negra (Gonçalves & Silva,
2000). Em 1893, mesmo com o direito das crianças negras às escolas públicas, um
dos primeiros jornais da imprensa negra, o Exemplo, denunciava que escolas
públicas de Porto Alegre se recusavam a admitir crianças de cor (Domingues,
2009), o que reforçava a estrutura racista na educação.
Após a abolição da escravatura, em 1888, e a Proclamação da República,
em 1889, a lenta inserção dos negros nas escolas oficiais se constituía em um
dos principais problemas para a inserção no mundo do trabalho. Os ex-escravizados ficaram abandonados à própria sorte sendo
rejeitados pelos donos da produção no que tange a vagas de empregos. Enquanto
isso, as discussões das políticas públicas passaram a versar acerca do
embranquecimento populacional, centrado no apoio aos imigrantes europeus
(Azevedo, 1987).
A emergência de organizações negras em prol da
educação (1900-1937)
A passagem do século XIX para o XX foi marcada por expressivas
associações negras que atuavam no campo da educação. Nesse período, como a
educação básica gratuita não era obrigatória e só quem era alfabetizado tinha
direito ao voto, a afirmação da cidadania passava pelo exercício do letramento
para os negros. Dentre as organizações criadas, destacamos: a
Sociedade Progresso da Raça Africana, em 1891, em Lages (SC); o Clube 28 de
Setembro de 1897 (SP); a Sociedade
Cooperativa dos Homens de Cor, em 1902; o Centro Literário dos Homens de Cor,
em 1903; a Sociedade Propugnadora 13 de Maio, em 1906; o Centro Cultural
Henrique Dias, em 1908; e a Sociedade União Cívica dos Homens de Cor, em 1915,
no Rio de Janeiro (Domingues, 2008).
Essas organizações (grêmios, clubes e associações) mesclavam sua
atividade nos setores em que o Estado se fazia ausente, prevendo o amparo
educacional aos seus associados (Bettine &
Sanchez, 2017). Muitas empreenderam ações educativo-culturais em suas
dependências com: aulas noturnas, bibliotecas, cursos e palestras, musicais,
encenações teatrais e sessões de recitais de poesia (Loner,
2008).
Outra movimentação social de relevância foi a emergência da imprensa
negra definida como um conjunto de jornais elaborados por negros, para negros e
que tratavam de assuntos de interesse da população negra (Pinto, 2010). Assim, as denúncias sobre o
analfabetismo, a precarização da escolarização dos negros e o regime de
segregação racial que os impedia, em algumas escolas, de ingressar, foram
centrais para a criação de escolas voltadas majoritariamente para a inclusão de
crianças negras (Domingues, 2007).
Dentre elas, sublinhamos
a Escola Noturna do Jornal o Exemplo, em 1902, e a Progresso e Aurora, de 13 de
maio de 1908, na cidade de São Paulo. A primeira ofertava ensino primário,
médio e secundário, enquanto a segunda era coordenada por um negro que atuou no
movimento abolicionista, o Salvador Luís de Paula, atendendo mais de mil
pessoas durante um período de dez anos. Além de se fundarem em propostas
organizacionais coletivas com direção colegiada (professores e membros das
associações), não cobravam taxas dos estudantes e permitiam, inclusive, a
matrícula de estudantes brancos. Porém, por serem mantidas apenas pelas doações
dos associados, as restrições financeiras levaram à descontinuidade da atuação
dessas escolas (Domingues, 2009).
Em vista da
necessidade de atuação nos aparatos estatais para lidar com as desigualdades,
em 1931, emergem as primeiras organizações de cunho político partidário.
Destacamos a Frente Negra Brasileira de maior expressividade no período. A
associação avançou substancialmente no campo educacional com a realização de
cursos de formação política para os seus associados, bem como a introdução de
uma história do negro brasileiro para combater a história oficial (Pinto,
2013). Esses elementos parecem contestar as ideias de alguns pesquisadores que
enfatizam apenas o caráter integrador e acrítico da educação defendida pelos
movimentos negros da época.
A Frente Negra
reuniu mais de 60 delegações em diversos Estados e 20 mil associados. Ao assumir uma
presença cada vez maior no debate nacional, transformou-se em um partido político
em 1936.
Porém, acabou extinta em 02 de dezembro de 1937, devido ao Decreto-Lei n.º 37
(Brasil, 1937), assinado por Getúlio Vargas, que em seu artigo 3º colocava na
ilegalidade todos os partidos políticos (Gomes, 2012).
Descontinuidades e resistências nas
ditaduras do século XX (1937-1978)
O regime
autoritário do Estado Novo começou a enfraquecer em meados da década de 1940,
criando condições para o retorno legal dos movimentos negros. Ressaltamos, no período, a União
dos Homens de Cor (UHC), em 1943, na cidade de Porto Alegre. Inaugurada com o
objetivo de atuar na vida administrativa, apresentava em suas reivindicações
uma das primeiras propostas de políticas afirmativas no país. No jornal UHC, enfatizava a necessidade de tornar
gratuito o ensino, admitidos brasileiros de cor em todos os estabelecimentos de
ensino superior (Silva, 2003).
A curta abertura
democrática foi marcada também pela presença de intelectuais negros, como Abdias
Nascimento, Alberto Guerreiro Ramos e Ironides
Rodrigues. Essas figuras se tornaram fundamentais para ampliar as reflexões
sobre as dimensões materiais e subjetivas do racismo no país. Além de terem criado o Teatro
Experimental do Negro (TEN), em 1944, contribuíram para importantes eventos que
traziam a educação na estratégia de enfrentamento ao preconceito, como o I Congresso do
Negro Brasileiro (1950).
O
TEN cumpria um papel de educação popular voltado para cursos de alfabetização
como também para resgatar a herança africana em contraponto às raízes
eurocêntricas da cultura brasileira (Nascimento, 2004).
No I Congresso do Negro
Brasileiro, organizado pelo TEN, o intelectual e pesquisador Guerreiro Ramos
enfatizou que não bastava a simples escolarização dos negros, mas produzir uma
radical revisão dos mapas culturais para combater o sentimento de inferioridade
nas culturas brasileiras. No período, a agenda de pesquisas desses intelectuais
foi marcada por denúncias dos preconceitos e estereótipos raciais nos livros da
época, como pelas primeiras reivindicações para a inclusão da História da
África e dos africanos nos currículos escolares (Gonçalves & Silva, 2000).
No começo da década de 1960, sublinhamos dois elementos relevantes no
campo da educação. O primeiro se trata da defesa da criação de uma Universidade
Afro-Brasileira, em Porto Alegre, pela Sociedade Floreta Aurora e Associação
Satélite Prontidão. A proposta elaborada em 1962, que visava aos estudos dos
elementos da coletividade negra, continha, inclusive, uma maquete das futuras
instalações (Domingues, 2009). O ideal, contudo, só seria efetivado em 20 de
novembro de 2003, com a Faculdade Zumbi dos Palmares, com quase dois mil
estudantes, destes, 80% negros.
O segundo se refere à atuação do Movimento Negro, a partir de fóruns de
política educacional que conseguiram, ainda que de forma genérica, incluir na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de número 4.024/61 (Brasil, 1961),
a discussão da raça enquanto inclusão temática nas escolas públicas. No entanto, com o golpe militar de 1964, os
movimentos sociais negros novamente foram proibidos, e a questão racial perdeu
lugar nos princípios que regiam a educação com a Lei n.º 5.692/71 (Brasil, 1971), sendo retomada somente na LDB (Lei n.º 9.394/96) (Brasil,
1996) e com a alteração dos artigos 26-A e 79-B pela Lei n.º 10.639/03 (Brasil,
2003a).
Abertura política e a retomada dos
movimentos negros “oficiais” (1978-2000)
O período de 1964 a 1978 foi marcado
pelo exílio de lideranças negras e pela proibição dos movimentos sociais, no
entanto, estes não permaneceram em silêncio. Abdias Nascimento escreveu no
exílio o célebre estudo sobre o genocídio do negro brasileiro, contrapondo-se à
narrativa oficial do regime militar sobre o mito da democracia racial
(Nascimento, 2016). Da mesma forma, os estudos de Azevedo (2016) indicavam a
presença de grupos de pesquisa em universidades brasileiras, que traziam à tona
novas bases epistemológicas para a reconstrução da historiografia
afro-brasileira.
O momento de pujança, marcando o
retorno dos movimentos negros em dimensão oficial, ocorreu em 1978, a partir da
criação do MNU. Mesmo inserido em condições estruturais contraditórias,
marcadas pela abertura gradual e lenta no governo de Ernesto Geisel, a sua
criação emerge das tensões do racismo da época (Pereira, 2013).
A organização se
fundou em princípios que primavam pela reavaliação da atuação do povo negro na
história do Brasil. No Programa de Ação de 1982, buscava-se a capacitação de
professores para desenvolver uma pedagogia interétnica, pleiteando o fim da
literatura eurocêntrica. Em 1986, na Convenção Nacional “O negro e a
Constituinte”, o MNU atuou ativamente na elaboração da nova Constituição
Federal. No documento propunham: a educação como
meio para combater o racismo e a discriminação, o apreço e a valorização da
diversidade e a implantação da obrigatoriedade do ensino de História das
populações negras (Bettine & Sanchez, 2017).
Apesar de essas
proposições não terem sido incorporadas à Constituição
Federal de 1988, os movimentos e parlamentares negros foram protagonistas no
processo da democratização da nação. Aprovaram legislações complementares sobre
os direitos étnico-quilombolas e garantiram a prescrição legal do racismo como
um crime inafiançável (Gomes & Rodrigues, 2018).
A década de 1990 foi marcada por um forte processo
de institucionalização das organizações não governamentais, favorecido por
apoios políticos e econômicos internacionais ligados à luta antirracista. A
emergência dessas organizações[8]
tinha um caráter primordialmente educacional, evidenciando, de modo crescente,
a política de focalizar o acesso à universidade (Rodrigues et al., 2019).
Destas, destacamos, em São Paulo, a articulação com a Pastoral do Negro da
igreja católica que levou à concessão de 200 bolsas de estudos pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Tal doação encorajou a organização de um
curso para estudantes no Rio de Janeiro em junho de 1993, o que viria a se
tornar um movimento pré-vestibular para negros e carentes (Nascimento, 2005).
Outro fato que consideramos marcante no período foi
a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, em
Brasília, no dia 20 de novembro de 1995. No documento entregue ao presidente da
república destacavam a retificação de livros didáticos, dos programas de ensino
voltados para as questões raciais, bem como o desenvolvimento de ações
afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes e
universidades de ponta (Pereira et al., 2020).
Mediante o acúmulo de pressões dos movimentos
negros, no ano seguinte foi promulgada a LDB (Brasil, 1996), que passou a
oferecer base legal e fundamental para a discussão da temática das relações
étnico-raciais na educação.
Do
avanço nas Políticas Educacionais para os negros (2001-2015)
A entrada do século XXI marca uma fase
caracterizada pela efetivação de políticas públicas que foram bandeiras
históricas dos movimentos negros na luta pela educação no Brasil. A
III Conferência Mundial Contra o Racismo, em Durban, África do Sul, em 2001,
foi um marco para as políticas afirmativas. Ao final do evento, conseguiram um
compromisso (assinado) de que o estado brasileiro passasse a colocar em sua
agenda ações governamentais que reparassem as desigualdades de acesso à
educação e ao trabalho. A visibilidade do pós Durban
possibilitou, ainda, a emergência das primeiras ações afirmativas em Estados
pioneiros, como Rio de Janeiro, Bahia, Paraná e Mato Grosso do Sul. Destacamos
o Rio de Janeiro, a partir das leis estaduais dos anos de 2001, n.º 3.708/2001
(Rio de Janeiro, 2001), e de 2003, n.º 4.151/2003 (Rio de Janeiro, 2003), que
adotaram 40% das reservas no ensino superior para os egressos de escolas
públicas e negros (Paiva, 2015).
Contudo, é importante ressaltar que essas
conquistas não foram pacíficas, mas resultados de intensas lutas nas esferas
legais das universidades (conselhos) e disputas judiciais, como apontam os
trabalhos de David (2019) e Navegantes (2019), sobre os embates na Universidade
Estadual de Londrina e Universidade Federal do Pará.
Com o apoio político dos movimentos negros e a
consequente eleição de um governo (Partido dos Trabalhadores) com
características mais progressistas na área social, a partir de 2003, as condições
políticas ampliaram o espaço dos movimentos negros nos processos decisórios.
Foram criadas a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a
partir da Lei n.º 10.678/03
(Brasil, 2003b), a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização
e Diversidade, na Lei n.º 13.005/14
(Brasil, 2014), e a composição de diversos conselhos de políticas
públicas com a participação dos movimentos negros.
Nesse período, ganhou força também a
entrada de um número maior de jovens negros nas universidades (reflexos das
primeiras políticas afirmativas), que passaram a intervir nas disputas em torno
dos currículos escolares. Nessa conjuntura favorável,
destacamos importantes vitórias, como a alteração das Leis de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, acrescentando a obrigatoriedade do ensino da
História e Cultura Afro-brasileira em todos os níveis de ensino pela Lei n.º 10.639/03
(Brasil, 2003a), que posteriormente foi modificada pela Lei n.º 11.645/08
(Brasil, 2008), que inclui no currículo oficial da rede de ensino a
obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, e as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola no Parecer
do Conselho Nacional de Educação - Câmara de Educação Básica (CNE/CEB) 16/12
(Brasil, 2012a).
Essas
leis visam desconstruir os estereótipos raciais de conteúdos eurocêntricos,
sem, contudo, impor um único paradigma afrocêntrico.
A descolonização dos currículos almeja dar visibilidades a vozes silenciadas,
respeitando uma base crítica multi e intercultural, a
partir da coexistência e convivência das diferenças e das identidades
particulares (Munanga, 2015).
Outro
marco central nas políticas educacionais foi a aprovação da Lei
n.º 12.711/12 (Brasil, 2012b) e
da portaria normativa do Ministério da Educação (MEC) n.º 13/16 (Brasil, 2016),
que contemplam cotas na graduação e pós-graduação das 69 universidades federais
e 38 institutos federais do país. As políticas distributivas foram acompanhadas
também nas esferas regionais, de modo que até o final de 2019, das 42 universidades
estaduais espalhadas pelo país, 38 instituições adotaram algum tipo de
modalidade de cotas de acordo com a legislação de cada instituição (Pinheiro et
al., 2021).
Os resultados das políticas educacionais no contexto do ensino
superior indicaram uma “virada” no perfil dos estudantes, ainda que não seja
distribuída hegemonicamente entre os cursos de maior prestígio social. Se na
década de 1990, a constituição de negros era de apenas 0,6%, em 2005 (reflexo
das primeiras políticas afirmativas) passou para 3,1% e superou, pela primeira
vez na história, o número de brancos em 2019, com o total de 51,2% das
matrículas nas federais (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições
Federais de Ensino Superior [Andifes], 2019).
O novo perfil dos estudantes também contribuiu para a ampliação da chamada
militância negra de base acadêmica, composta por integrantes de núcleos de
pesquisa e coletivos estudantis. Mesmo em um ambiente eurocêntrico, com corpo
docente majoritariamente branco e resistente à mudança em seus currículos,
esses grupos passaram a se orientar para o enfrentamento do racismo dentro e
fora das universidades (Mesquita, 2021). Enquanto os primeiros contribuem,
principalmente, com pesquisas científicas sobre o tema e divulgações de
produções em ambientes virtuais, os coletivos negros passaram a ter um papel
central na recepção de estudantes cotistas e no controle das ações afirmativas
nas universidades, promovendo debates sobre as comissões de heteroidentificação
racial (Guimarães et al., 2020).
Retrocessos
e desafios nos tempos atuais (2016-2021)
À medida que os movimentos negros avançaram nas conquistas e lutas
pela superação do racismo, dialeticamente, manifestaram-se também formas de
opressão e dominação para contrapor às mudanças (perdas de privilégios)
daqueles detentores do status quo (Santos, 2006).
Isso fica evidente a partir da emergência de movimentos conservadores
em escala mundial (Mudde, 2019). No Brasil, com o
impeachment presidencial e os resultados nas eleições legislativas de 2016,
observou-se a extinção
de importantes ministérios, como: Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e
Direitos Humanos e a recriação do Ministério dos Direitos Humanos - com poder e
recursos esvaziados pelo Executivo Federal (Gomes & Rodrigues, 2018).
Sob
o rótulo da luta contra a chamada ideologização do ensino, ganham força
discursos sobre a neutralidade educacional e a consequente proposta de
projetos, como a Escola Sem Partido e a militarização das escolas. Soma-se a
isso a Reforma do Ensino Médio, mediante a Lei n.º 13.415/17 (Brasil, 2017), aprovada
sem diálogos com profissionais da educação e movimentos sociais. A reforma
esvaziou disciplinas com potencial crítico (Filosofia e Sociologia),
tornando-as optativas e deixando para as instituições escolares ofertá-las, se
tiverem condições.
Nesta
avalanche, entre 2016 e 2018, 18 municípios aprovaram projetos de Lei
vinculados às ideias da Escola sem Partido, e 103 seguem em tramitação (Gomes,
2018). Da militarização das escolas, observou-se, entre 2015 e 2021, a criação
de 74 instituições dessa natureza por meio do Programa Nacional das Escolas
Cívico-Militares do Ministério da Educação (Sindicato Nacional dos Docentes das
Instituições de Ensino Superior [Andes-SN],
2021).
Em
contraponto, os recursos vinculados às universidades e instituições federais
seguem sucessivos cortes orçamentários, o que tem comprometido não só a
pesquisa científica, como a assistência estudantil, que atingem
majoritariamente aos estudantes negros. A Lei n.º 14.144,
que estimou o orçamento anual de 2021 (Brasil, 2021), aprovou um corte de 18,2%
nos recursos em comparação com o ano de 2020, o que pode impactar, até o
momento, uma redução de até 21,9% no orçamento do Programa Nacional de
Assistência Estudantil (Andifes, 2021).
No âmbito da gestão democrática, foram aprofundadas as formas
autoritárias que afastaram a sociedade civil de órgãos governamentais. Além das
sucessivas interferências nos processos eleitorais e das dinâmicas das
instituições de ensino superior, o Decreto n.º
9.759/19 (Brasil, 2019) extinguiu todos os órgãos colegiados (conselho e
comitês) que tinham a participação da sociedade civil na administração pública,
que são criados por lei.
Ressaltamos que essas ações seguem acompanhadas de narrativas racistas
por membros de órgãos governamentais. Entre 2019 e 2020, a Coordenação Nacional
de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas mapearam pelo menos 49
declarações racistas proferidas (algumas já condenadas civilmente) por membros
do governo federal, parlamentares e servidores do Judiciário (Bassi, 2020).
É importante destacar que o contexto hodierno colocou também para o
movimento negro o desafio da manutenção da Lei de Cotas para o ingresso em
Instituições Federais de Ensino. Se a Portaria n.º 545/20 do atual Governo Federal (Brasil, 2020) revogou a
adoção de cotas nos programas de pós-graduação, o prazo para a revisão das
cotas na graduação na Lei n.º 12.711/12
(Brasil, 2012b) estava previsto para o ano de 2022. Contudo, a Comissão de
Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Câmara, liderada por
parlamentares que tinham em sua base os movimentos negros, conseguiram o
adiamento de sua revisão de 2022 para o ano de 2032, o que se apresenta como um
alento para os tempos atuais.
Considerações finais
Apesar de compreendermos que os movimentos negros
no Brasil atuaram em lutas diversas com múltiplas conquistas, neste artigo
tivemos por objetivo dar maior visibilidade às lutas pelo direito à educação. A
opção pela ênfase no contexto educacional ocorreu por considerá-lo um espaço em
que as representações negativas sobre os negros são difundidas, por isso mesmo
também é um importante local onde estas podem ser superadas (Gomes, 2003).
Cientes de que muito foi feito e não dito nas
limitadas linhas deste artigo, ao longo do texto, buscamos
indicar marcos centrais nas conquistas dos movimentos negros, como: as
primeiras escolas e os cursos de alfabetização criados por negros, as
reivindicações por formas universais de escolarização, as denúncias nos
materiais didáticos e silenciamentos da história negra e a efetivação de
políticas públicas educacionais.
Essas legislações
abriram espaço para a produção de conteúdos acerca da história e cultura negra,
da visibilização de biografias de personagens negras, o que resultou em um
contraponto aos séculos de educação epistemicida.
Logo, buscamos indicar que foram em decorrência das lutas dos movimentos negros
nas suas amplas formas de organização, com tensões, desafios e limites, que
muito se sabe no Brasil sobre a questão racial e afrodiaspórica
em uma perspectiva crítica e emancipatória (Gomes, 2017).
Por fim, é
importante ressaltar que este artigo foi concebido durante uma pandemia que
colocou o Brasil com uma das maiores taxas de mortalidade. Se a morte atingiu
todas as classes sociais, no entanto não foi sinônimo de democracia. A
população negra tem 62% mais chance de morrer pela doença do que os brancos,
uma vez que 73,5% deles estavam mais expostos a viver em domicílios com
condições precárias do que os brancos, e sofrem mais com diabetes, hipertensão
e asma, comorbidades que pioram o quadro de covid-19 (Instituto Unibanco,
2021).
No âmbito
educacional, historicamente, os estudantes negros do ensino básico possuem
maiores taxas de evasão (27%) do que os brancos (19%). Porém, os estudos do
Instituto Unibanco (2021) revelam que, no ano de 2021, 61% dos jovens negros
entre 15 e 17 anos não possuíam computadores ou internet. Considerando-se que o
ensino durante a maior parte da pandemia seguiu na modalidade remota, isso
indica que não faltarão novos desafios para os movimentos negros, em vista dos
abismos educacionais que reforçarão, mais uma vez, o racismo estrutural do
Brasil.
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[i] Doutora em Sociologia pela
Universidade Estadual Paulista (Unesp) (2008). Docente do Programa de Mestrado
em Educação da Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).
[ii] Doutor em Administração pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (2013). Docente do Programa de
Mestrado em Educação da Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri
(UFVJM).
[iii] Mestre em Educação pela Universidade
Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) (2021). Assistente em
Administração no Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais, Campus Muriaé.
[4] Assumimos o
conceito de história oficial aquela contada pelos “vencedores”, que ao deterem as
maiores cotas de poder, constituem os regimes de verdade. No caso brasileiro, a
história oficial sobre a educação, silenciou, dentre as diversas dimensões, o
papel de lideranças negras nas conquistas por políticas públicas de equidade
social.
[5] PNLD teve seu
início em 1985, através do Decreto n.º 91.542 de 19 de agosto (Brasil, 1985),
com o intuito de distribuir livros gratuitos para os alunos de escolas
públicas. Em 2019, houve a substituição da avaliação dos materiais didáticos
das universidades por uma equipe exclusiva do governo federal (Copatti, 2021).
[6] Domingues (2007;
2009) defende etapas a partir de continuidades e refluxos. Apresentamos
similaridade com o autor, porém, antecipamos elementos da Primeira República e
dividimos os anos 2000 em duas fases, com bases em conquistas e retrocessos.
[7] Uma relevante
forma de resistência foi a criação da Escola de Ler e Escrever, em 1838, por
Dom Cosme Bento Chagas. Líder na Revolta da Balaiada, a escola atendia aos
aquilombados nas cabeçeiras do Rio Preto, comarca do
Brejo, na fazenda Lagoa Amarela, no Maranhão (Serra, 1948).
[8] Um mapeamento do
Núcleo de Estudo Interdisciplinares do Negro Brasileiro (NEINB/USP)
diagnosticou que em 1990 havia mais de 1300 entidades desta natureza (Rodrigues
et al., 2019).