Ensaio
A
(in)visibilidade do corpo nos guias de ensino remoto: educação, tecnologia,
pandemia
La (in)visibilidad del cuerpo en las guías de
enseñanza a distancia: educación, tecnología, pandemias
The (in)visibility of the body in remote teaching
guides: education, technology, pandemics
Natália Papacídero Magrin[i]
Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Uberaba, MG,
Brasil
https://orcid.org/
0000-0001-5813-7091
Laudeth Alves dos Reis[ii]
Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Uberaba, MG,
Brasil
https://orcid.org/0000-0002-3585-065X
Wagner Wey Moreira[iii]
Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Uberaba, MG,
Brasil
https://orcid.org/0000-0002-3705-9319
Contribuição
na elaboração do texto: autora 1, escrita das seções Introdução, Tecnologias
na educação e pandemia: qual o lugar do corpo? e Os guias de ensino
remoto: existe menção ao corpo?; autora 2, escrita das seções Corpo e
educação: contexto histórico e Considerações finais; autor 3,
revisão e consolidação do manuscrito.
Recebido em: 13/10/2021
Aceito em: 19/01/2022
Publicado
em: 27/01/2022
Linhas
Críticas | Periódico
científico da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil | ISSN:
1516-4896 | e-ISSN: 1981-0431 | Volume 28, 2022 (jan-dez).
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas
Referência completa (APA): Magrin, N. P., Reis, L. A. dos, & Moreira, W. W. (2022). A (in)visibilidade do corpo nos guias de ensino remoto: educação, tecnologia, pandemia. Linhas Críticas, 28, e40369, https://doi.org/10.26512/lc28202240369
Link
alternativo: https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/40369
Licença
Creative Commons CC BY 4.0.
Resumo: O estudo propõe-se pesquisar a percepção do corpo
em guias educacionais que norteiam o ensino remoto em razão da pandemia do
coronavírus. É um estudo qualitativo, de cunho documental, que versa pela
análise de dois referenciais, A framework to guide an education response to
the covid-19 Pandemic of 2020 (Reimers & Schleicher, 2020), e a
Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE)/Conselho Pleno (CP) n.º 2 de
10 de dezembro de 2020 (Brasil, 2020a). Identificamos que os guias selecionados
não mencionam corpo, nem tão pouco a corporeidade, que tanto movimenta,
expressa e se reinventa. Uma lacuna diante a uma situação que acomete a todos e
deve ser compreendida em sua totalidade.
Palavras-chave: Ensino Remoto. Corpo. Tecnologia Educacional.
Resumen: El estudio tiene como objetivo investigar la percepción
del cuerpo en guías educativas que orientan la educación a distancia debido a
la pandemia de coronavirus. Se trata de un estudio cualitativo, documental, que
aborda el análisis de dos referencias, A framework to guide an education
response to the covid-19 Pandemic of 2020 (Reimers & Schleicher, 2020),
y la Resolución del Consejo Nacional de Educación (CNE) / Pleno (CP) n.º 2 de
10 de diciembre de 2020 (Brasil, 2020a). Identificamos que las guías
seleccionadas no mencionan el cuerpo, ni la corporeidad, que tanto se mueve, se
expresa y se reinventa. Una brecha ante una situación que afecta a todos y debe
entenderse en su totalidad.
Palabras
clave: Aprendizaje a distancia. Cuerpo. Tecnologia Educacional.
Abstract: The study aims to research the perception of the body
in educational guides that guide remote education due to the coronavirus
pandemic. It is a qualitative, documentary study, which analyzes two
references, A framework for an education guide to the covid-19 Pandemic of 2020
(Reimers & Schleicher, 2020), and the Resolution of the National Education
Council (CNE)/Full Council (CP) n.º 2 December 10, 2020 (Brasil, 2020a). We
identified that the selected guides do not mention the body, nor the
corporeality, which moves, expresses and reinvents itself so much. A gap in the
face of a situation that affects everyone and must be understood in its
entirety.
Keywords: Remote
Learning. Body. Educational technology.
Introdução
Reconhecidamente estamos vivendo mais um período
de significativas alterações sociais de nossa breve existência. Em meio ao novo
e às incertezas na ação docente, surgem documentos norteadores para a educação
na pandemia, transcritos de experiências precoces e apostas, nem sempre
referenciadas no ensino remoto, provavelmente devido ao seu caráter de
novidade.
Fato é que o mundo parou e, em poucos dias, vimos
nossas formas de relações e o convívio social se alterarem significativamente
em nome de uma mudança coletiva e imediata, resultado das ações para contenção
da disseminação do coronavírus.
O momento e a necessidade levaram à exigência de
corpos distanciados, mas presentes virtualmente, a (re)descobrirem os espaços e
(re)conhecerem a corporeidade. Estas ações, não imaginadas anteriormente,
apresentaram-se como uma contradição e uma novidade presente agora em tempos de
globalização e de grande desenvolvimento científico. A suspensão do ato de
convivência presencial ocasionou transformações em todos os âmbitos de vida,
inclusive na educação, tema deste estudo.
É possível vivenciar valores humanos na educação
diante de corpos separados pela necessidade de isolamento? Como a corporeidade
se fará presente em tempos virtuais? E mais, se não temos o contato, a relação
presencial, é possível percebermos a manifestação da nossa corporeidade e a do
outro?
Podemos
pensar que o mundo atual é híbrido, portanto, composto por realidades carnais e
virtuais. Considerando a nossa realidade atual globalizada e tecnológica percebemos
que “[…] quando ameaças como a atual pandemia surgem sobre nossas vidas,
podemos nos retirar, adaptar e recomeçar, sempre em direção ao abraço, que, é
claro, não podemos e nem queremos virtualizar […]” (Castells, 2020, s.p.).
Assim, delineamos como objetivo deste estudo
pesquisar a percepção do corpo nos guias educacionais para o ensino remoto,
elaborados a partir da pandemia do coronavírus. Em resposta a isso, propomos
apontar as percepções do corpo na educação e a relação entre reprodução e a fragmentação
do conhecimento.
O Estudo é de natureza qualitativa e de cunho
documental, estruturado na análise de dois referenciais: o primeiro em âmbito
internacional A framework to guide an
education response to the covid-19 Pandemic of 2020 (Reimers & Schleicher,
2020) de Fernando Reimers, membro da Iniciativa Global de Inovação Educacional
e Andreas Schleicher, bem como membro da Organização para Cooperação Econômica
e Desenvolvimento; o segundo de escrituração nacional, a Resolução CNE/CP n.º 2
de 10 de dezembro de 2020 (Brasil, 2020a). A escolha dos documentos se deu pela
visibilidade e abrangência destes no contexto educacional.
Corpo e educação: contexto histórico
Pelo corpo nos constituímos seres no mundo, fundamento
de experiência e de saber. É a experiência humana que implica o modo de ser do
homem nas relações que estabelece consigo, com os outros e com o mundo. Desse
modo, o ser humano se define como tal pelo seu corpo e, não meramente, pelo
pensamento. Daí enfatizamos neste estudo um retorno ao ser humano, considerado
como pessoa na sua totalidade, em constante movimento e, de modo algum, uma
mera composição ou justaposição de partes distintas.
Essa ideia fragmentada resultou em uma
compartimentalização do conhecimento que Morin (2013) apontou como a
hiperespecialização, cuja aprendizagem contempla disciplinas não comunicantes,
apresentando como resultado o afloramento de ignorâncias. Sendo assim, sugere a
reforma do conhecimento que, com efeito, demanda a reforma do pensamento, ou
seja, religar as partes ao todo e o todo às partes.
Isso só é viável se partimos do entendimento que
concebemos o mundo com e pelo corpo num processo constante de busca e
inacabamento, pois de acordo com Merleau-Ponty (2011, p. 14), “O mundo é não
aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo,
comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável”.
Vivemos em uma época dominada pelo progresso
científico e tecnológico, desprovido de sentido humano, obrigando-nos a
(re)pensar os rumos que a educação vem assumindo. É inconteste, ao longo dos
tempos, a forte influência recebida pelo paradigma cartesiano, implicando em
uma racionalidade que anula cada vez mais a educação ao modo de existir em seu
sentido ontológico, descaracterizando o modo de ser, de pensar e de agir do
homem.
Nessa perspectiva é que a educação pode e deveria
ser um caminho legítimo de aproximação da realidade vivida para além, e/ou
mesmo superação da mera transmissão de conteúdo, cumprindo o desafio de
propiciar um desenvolvimento humano, cultural, científico e tecnológico,
atendendo às exigências do mundo contemporâneo.
Merleau-Ponty (2011) propõe alterar o sentido
mecânico de corpo-sujeito ao pensamento causal, recorrente na educação e nas
ciências clássicas. Em sua interpretação, trata-se de uma questão de mudança na
maneira de se ver o mundo, pois para conhecê-lo – o mundo – é vital descrevê-lo
a partir da forma como é experienciado e existencializado. Com base nesse pressuposto,
podemos compreender a importância de ressignificar o entendimento do corpo na
busca e percepção dos sentidos de corpo-sujeito rumo a uma educação humana e
humanizante. Passa-se do corpo para a corporeidade.
E isso só é possível via experiências vividas
quando atribuímos sentido aos conhecimentos, pois é pela ação que nos
expressamos e a ação é, predominantemente, corporal. Daí a relevância de
compreender o fenômeno educação, via corporeidade, como um processo dinâmico e
em movimento. Assim reside a primordialidade em construir novos conceitos que
permitam a ampliação da compreensão da existência a partir da experiência do
mundo vivido e da corporeidade.
A corporeidade na educação exigirá: a superação
do sentido de corpo-objeto; o entendimento da relação ensino e aprendizagem de
forma complexa; a formatação de propostas curriculares a partir da necessidade
da experiência corpórea; a implantação de um ato educativo que transcenda o
sentido conteudista/mecanicista.
Corporeidade propicia o entendimento da distinção
entre corpo-objeto e corpo-sujeito. O primeiro, corpo-objeto, é o corpo
reduzido à condição de um ser passivo, disciplinado e obediente, podendo ser
associado inclusive a uma máquina composta de partes separadas e isoladas. Os
princípios que regem o sentido de corpo-objeto são eficiência e utilidade. Já o
segundo, corpo-sujeito, é concebido como presença viva e em movimento no mundo,
expresso na unidade do ser-no-mundo, ou seja, o homem só existe pelo seu corpo
e não há outra forma de se constituir sem pensá-lo na sua totalidade enquanto
ser sensível e inteligível (Nóbrega, 2005).
Na visão cartesiana, as práticas envolvendo o
corpo sempre o trataram como um simples mecanismo que precisava ser reparado
quando sofresse danos, ou mesmo treinado para adquirir aptidão e capacidade. Em
ambos os casos há a predominância do utilitarismo, ou seja, corpo bom é corpo
útil. A esse respeito, Moreira e Botelho (2021) alertam em relação à
preocupação evidente na perspectiva utilitária do corpo. Para eles, conceber o
corpo na totalidade significa advogar a vida em sentir, pensar e agir, todos
esses elementos inerentes à condição humana. Assim, a corporeidade desponta
como a melhor expressão da existência do ser-no-mundo, por isso a importância
do trato desse tema ou dessa abordagem no interior do ensino formal nas
escolas. Afinal, educação é uma experiência inteiramente humana.
Nessa ótica, a educação adquire seu sentido de
favorecer a formação do homem engajado em um projeto existencial em constante
relação consigo mesmo, com os outros e com o mundo, facultando ao exercício de
uma vida autônoma, crítica e criativa. Uma educação humana e humanizante que
seja capaz de superar esse modelo racionalista do conhecimento, presente no
dualismo corpo/mente, ultrapassando esse modo de pensar e incluindo a
sensibilidade na formação educacional. Trata-se de uma tarefa complexa, que
pode ser configurada como uma possibilidade de contribuição relevante ao debate
sobre uma Educação possível, distante da reprodução de valores utilitaristas e
individualistas. Por isso, Nóbrega (2005; 2019) aponta o corpo como unidade da
experiência perceptiva, ou melhor, vivida, o que denomina educação dos sentidos
ligada à condição corporal do homem, à sua existencialidade.
O que nos remete ao entendimento de que todo
conhecimento e aprendizagem dependem da existência do mundo imanente do corpo
nas relações estabelecidas. Merleau-Ponty (2011, p. 122), a esse respeito
corrobora ao salientar que “[…] nesse sentido tenho consciência do mundo por
meio do meu corpo”.
É possível se pensar uma educação a partir da
compreensão da corporeidade pautada na lógica do sensível e do inteligível?
Qual o papel da corporeidade na educação? Vivemos, então, uma desmaterialização
do corpo? Acreditamos que não e, ao contrário, a literatura (Moreira &
Botelho, 2021; Nóbrega, 2019; Moreira, 2019) têm apontado uma quantidade
crescente de estudos que tentam dar conta da compreensão do corpo, enquanto
instrumento vital de comunicação, sobretudo, o primeiro elo com o mundo, constituindo
o cerne da ressignificação da educação via experiência e formação humana na sua
totalidade.
O processo educacional ao refutar os
determinismos e ao reconhecer que o conhecimento emerge da corporeidade a
começar das experiências vividas, poderá possibilitar intervenções que
problematizem concepções segregadoras do corpo e da própria educação. Enfim,
almejamos uma educação que desperte o desejo pela paixão de ensinar e de
aprender. As reflexões de Moreira (2019, p. 23), conduzem à superação do racionalismo,
o que exige a busca do humano no homem e isso só é possível quando se assume
uma atitude que possa “[…] levar a sugerir novas formas de apreensão do
conhecimento e da vivência do ser existencial no mundo.”
Os argumentos até aqui levantados indicam que há
produção acadêmica e bases epistemológicas consistentes para o entendimento da
educação enquanto fenômeno complexo, histórico, valorizando as práticas sociais
vividas, disponíveis para nossas análises e reflexões, permitindo ações
educacionais que superem a tradição simplista e reducionista característica de
uma educação que visa a docilidade corporal. Mas para isso, como diz Morin
(2013, p. 191), “[…] devemos reaprender a pensar, tarefa de salvação pública
que começa por si mesma”.
Tecnologias na educação e pandemia: qual o lugar do corpo?
Na sociedade contemporânea as Tecnologias
Digitais de Informação e Comunicação (TDICs) têm sido amplamente versadas e se
efetivam cada vez mais presentes em nossas vidas. Na educação, o cenário inclui
novas abordagens de ensino e aprendizagem em consonância com o desenvolvimento
tecnológico, e isso tem demandado uma prática reflexiva e humanista de mãos
dadas com o tempo presente. Mais que um desafio imposto a toda comunidade e ao
contexto escolar, esta ação configura-se como um compromisso de aprimoramento
dos saberes e práticas educacionais.
Nesse universo emergem frentes de trabalho como a
educação a distância (EAD), os ambientes virtuais de aprendizagem e o ensino
remoto emergencial (ERE). A EAD
surgiu no século XVIII a partir de cursos por correspondência com textos
autoinstrucionais. Com o passar do tempo incorporou novos elementos a sua
prática, com o uso dos recursos audiovisuais, recursos digitais via acesso à
internet e outros. Todo o material didático é idealizado, planejado e executado
previamente sem a presença do aluno em conformidade com os princípios, eixos
curriculares e carga horária preconizados para cada área do saber (Feenberg,
2017; Holmberg, 2005 como citado em Paiva, 2020; Silva & Prata-Linhares,
2020).
Desse contexto surgem os ambientes virtuais de
aprendizagem (AVA), popularizados no Brasil no final da década de 1990. Mediado
por computadores, esse tipo de plataforma possibilitou uma interação entre
professores e alunos se fazendo presente tanto em instituições educacionais
como em entidades do setor público e empresarial. Com as tecnologias digitais a
EAD se diferencia do ensino online por oportunizar a interação e o
compartilhamento de uma diversidade de recursos, acessados via internet de
forma síncrona e assíncrona (Feenberg, 2017; Holmberg, 2005 como citado em
Paiva, 2020).
Frente a essas novas modalidades de ensino e
aprendizagem, a legislação brasileira tem publicado ao longo dos anos leis para
regulamentação, incentivo e controle das mesmas. Apenas como um exemplo,
mencionamos o Decreto n.º 9.057 (Brasil, 2017), que preleciona em seu Artigo
1º:
[…] Considera-se educação a distância a
modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de
ensino e aprendizagem ocorra com a utilização de meios e tecnologias de
informação e comunicação, com pessoal qualificado, com políticas de acesso, com
acompanhamento e avaliação compatíveis, entre outros, e desenvolva atividades
educativas por estudantes e profissionais da educação que estejam em lugares e
tempos diversos.
As TDICs e os demais recursos audiovisuais, como
os meios de telecomunicação, além do material impresso, são os canais em que a
linguagem se efetiva para ser transmitida. A mensagem expressa nas linguagens é
que configura as experiências e vivências humanas atuando na construção e
ressignificação dos espaços sociais, ou seja, dos modos de vida culturais.
Dessa forma a linguagem, a cultura e a tecnologia estão inter-relacionadas.
Santaella e Nöth (2003) subdividem as eras
culturais em seis formações de processo cumulativo, a saber: oral, escrita,
impressa, de massas, mídias e digitais. Essas eras marcam os meios de
comunicação que compõem canais de transmissão da informação, e as mediações
sociais que emergem em cada uma advém da linguagem, dos signos e do pensamento
humano partilhado e comunicado. Desse modo, os canais de comunicação não passam
de veículos dando forma ao conteúdo.
Por isso mesmo, não devemos cair no equívoco de
julgar que as transformações culturais são devidas apenas ao advento de novas
tecnologias e novos meios de comunicação e cultura. São, isto sim, os tipos de
signos que circulam nesses meios, os tipos de mensagens e processos de
comunicação que neles se engendram os verdadeiros responsáveis não só por
moldar o pensamento e a sensibilidade dos seres humanos, mas também por
propiciar o surgimento de novos ambientes socioculturais. (Santaella &
Nöth, 2003, p. 24)
Há uma Teoria da Mídia proposta por Pross (1971,
p. 128), que trata da presença do ser humano diante do outro ser humano, da
interação face a face que se caracteriza por uma relação direta entre corpos e
afirma que “[…] toda comunicação humana parte da mídia primária, cujos
participantes individuais se encontram presentes em um mesmo momento e toda
comunicação humana retorna a esse ponto […]”. As mídias primárias abarcam todos
os sons, os gestos e os movimentos diversos e singulares que o corpo expressa, bem
como as formas e marcas contidas e impressas no corpo.
Esses pressupostos fundamentam a Ecologia da
Comunicação de Romano (2001, p. 1) que estabelece um vínculo entre comunicação
e ecologia humana remetendo também a presença da tecnologia nas relações humanas,
pois:
Como vínculo
entre un ser humano y otro, o entre persona y máquina, la comunicación tiene
una dimensión ecológica y ética. La creciente disbiosis comunicativa entre
comunicación personal y técnica tiene consecuencias para unos seres dialógicos
como los humanos. La soledad y la pérdida de relación son los efectos más
evidentes.
Essas reflexões imprimem as possíveis
consequências e impactos do estímulo e uso cotidiano das TDICs na cultura,
prioritariamente, na área educacional. Silva e Prata-Linhares (2020) em seus
estudos salientam o quanto ainda tem sido um desafio avançar em termos de
acesso e finalidade pedagógica em relação ao uso das TDICs. E ainda apontam
como uma inovação pedagógica, contributo para a democratização do acesso a uma
educação capaz de promover o desenvolvimento humano.
Nesse estudo buscamos demonstrar o entendimento
do corpo a partir da compreensão que só há uma maneira de expressar, sentir e
perceber o mundo por ele. Essa percepção sensorial e de comunicação que ocorre
de forma plural e singular talvez não possa ser substituída pela ausência ou
presença virtual. O que denota o estabelecimento de novas relações humanas e de
mundo, as quais serão as bases do sucesso ou fracasso da educação, assim como o
ensino remoto, pois não se pode estabelecer diálogos baseados exclusivamente na
intelectualidade.
Ao tratar do lugar desse corpo, Moreira e Botelho
(2021) nos provocam a pensar que, face a este cenário pandêmico, deparamos com
uma nova maneira de perceber corpo, ciência e tecnologia. Daí o entendimento
desse corpo nessa nova e emergencial versão escolar, pois nos colocamos diante
de um grande desafio: estruturar-se como prática pedagógica, a partir do
conhecimento sensível, cuja matriz é a corporeidade.
Em 2019, com a manifestação do coronavírus que
assolou, inicialmente, as populações dos países asiáticos e, posteriormente,
estendeu-se para os demais continentes, gerou uma série de episódios com alto
índice de contaminação. E a inevitável consequência por essa atividade viral ainda
não ter sido catalogada na espécie humana, os manejos e cuidados sanitários
passaram a se tornar ações paliativas, o que evidenciou um alto risco de
contágio e elevou, consideravelmente, o índice de mortes em sua decorrência.
A impressionante evolução da doença na capacidade
de transmissão, no impacto que projeta para o futuro, no volume de recursos que
mobiliza e no caráter então desconhecido proporcionou elementos que levaram a
sua caracterização como uma Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional
(ESPII) pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 2020). Desse modo originou uma
pandemia, termo advindo da epidemiologia que descreve uma irrupção infecciosa
em escala potencialmente global.
Em virtude desse cenário, tivemos como
consequência o distanciamento social com a imposição do isolamento físico, o
que acarretou uma mudança severa na rotina de vida das pessoas. No meio
educacional houve a suspensão de aulas presenciais, e nos demais setores
sociais tivemos as prioridades de acordo com os meios de produção e de
trabalho. Esse novo jeito imperativo de viver foi propulsor do ERE, podendo ser
compreendido segundo Hodges et al. (2020) como uma mudança temporária de ensino
alternativo, viabilizando de modo remoto o que estava previsto para ocorrer
presencialmente. Ademais, devido ao caráter substitutivo em atendimento a uma
situação especial por determinado período de tempo, essa modalidade se
diferencia da EAD.
Com a inauguração do ERE, a educação via
plataformas digitais resultou em um boom,
configurando uma alternativa para minimizar os problemas gerados pelo
isolamento físico em detrimento da suspensão das atividades escolares
presenciais. Isso posto, educadores tiveram que (re)significar sua prática
pedagógica de forma abrupta e, os alunos, se adequar à modalidade para o
estabelecimento de uma nova rotina e dinâmica escolares.
Aqueles sem acesso à internet, computadores e/ou smartphones, simplesmente ficaram e
ainda estão marginalizados. Via de regra, a inexistência desses dispositivos
impossibilita o acesso às aulas/conteúdos, e para aqueles que o têm, mas não
dominam, as participações ficam comprometidas.
O ERE se apresenta tanto como uma proposta de
atuação como também ocasiona proeminentes desafios em sua bagagem, revelando os
problemas e as realidades socioeconômica-culturais da população, vistos agora
com mais intensidade.
Os guias de ensino remoto: existe menção
ao corpo?
Analisando os guias de ensino remoto selecionados
para este estudo. O primeiro, de nível internacional, denominado A framework to guide an education response
to the covid-19 Pandemic of 2020 (Reimers & Schleicher, 2020) em
tradução “Um roteiro para guiar a resposta educacional à Pandemia da COVID-19
de 2020”. O documento versa sobre um relatório direcionado aos líderes e
profissionais da educação, ressaltando a importância da implementação de planos
voltados à continuidade da educação por modalidades alternativas, a fim de
salvaguardar as oportunidades de aprendizagem fragilizadas por sua interrupção
e/ou mudança abrupta em decorrência da pandemia. Esse guia foi desenvolvido com
base na rápida análise dos resultados obtidos por 98 países no Programa
Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) 2018 (Brasil, 2020b), em
respostas ao questionamento: como os países estão respondendo à pandemia?
O relatório aborda o alto impacto da pandemia na
vida em sociedade e reporta a vulnerabilidade do desenvolvimento, suporte e
acompanhamento das atividades educacionais fora do ambiente formal escolar, que
dependerá das variáveis contidas na complexidade dos contextos escolares e
familiares dos alunos. Aponta a cooperação como principal estratégia para a
promoção da educação e ajuda mútua na construção dos novos ambientes de
aprendizagem.
Apresenta ainda dois checklists relacionados à resposta educacional, sendo um com 25
itens e outro com 13 itens listados como recomendações. Dada a relevância e
abrangência de todos, neste estudo apontaremos apenas alguns para reflexão,
como: a troca de experiências; a força tarefa com duas frentes, a de conclusão
do ano letivo em curso e o seguinte; e, por fim, a oferta de serviços de
assistência social da escola, visando atendimento e acompanhamento aos alunos e
familiares vulneráveis. A reorientação das metas curriculares e a definição dos
conhecimentos necessários nesse tempo de pandemia, sugerem em primeiro lugar, o
apoio à aprendizagem mediante um plano elaborado por cada escola, a partir do
seu contexto, capaz de garantir a continuidade do trabalho proposto. E, em
segundo lugar, deve ficar o bem estar dos alunos e dos profissionais da
educação, devido aos efeitos na saúde, renda e bem estar, sendo importante
estimular estratégias motivacionais de aprendizagem (Reimers & Schleicher,
2020).
É fundamental nesse processo o uso de atividades
online/digitais e, caso seja inviável o acesso, oportunizar o uso dos demais
recursos audiovisuais. Vale destacar também, a criação de plataformas online de
colaboração de aprendizagem profissional aos professores no uso das TDICs, para
o estabelecimento de uma comunicação efetiva e assertiva com as famílias.
São procedimentos que visam atender e reconhecer
as estratégias de educação adaptadas à crise, enquanto apoio pensado sob formas
inovadoras de educação e flexibilização dos marcos regulatórios.
Frente a esse cenário, buscamos o entendimento da
percepção do corpo em sua totalidade, o que contribui de forma ética e
significativa para uma educação fundada no potencial humano. Para os autores:
Nossos olhares, pois, foram e estão sendo
educados e, se queremos transcender as restrições que os molduram e modelam, é
preciso refletir sobre outras possibilidades de educação para além das que
cotidianamente somos sujeitos e sujeitados, possibilidades essas que nos
permitam reinventar nossos modos de ver, ouvir, de sentir, de pensar, de viver
e conviver. (Santaella & Nöth, 2001, p. 143)
Após uma análise minuciosa do roteiro
supracitado, foi possível constatar no documento, a ausência de menções ao
corpo e as possíveis maneiras de consideração e trato deste durante as ações educacionais
remotas sugeridas para o período pandêmico. Identificamos uma acentuada
carência no trato dado ao corpo, tendo em vista que, o seu caráter utilitário
limita-se a uma herança histórica e cultural. Nesse sentido, adquire um caráter
instrumental e/ou baseia-se em concepções que fragmentam o conhecimento em
compartimentos estanques e reduzindo o corpo a seu aspecto biológico.
No entanto, é importante deixar claro que não
temos apenas um corpo, e sim somos um corpo, isso porque a nossa existência se liga
a um continuum de expressões e
manifestações corpóreas, conforme preconiza Merleau-Ponty (2011, p. 229) “[…] o
corpo exprime a existência total, não que ele seja seu acompanhamento exterior,
mas porque a existência se realiza nele”.
Analisando o segundo guia publicado, este de
caráter nacional, que é a Resolução CNE/CP n.º 2 de 10 de dezembro de 2020
(Brasil, 2020a), a qual estabelece diretrizes voltadas aos espaços formais de
educação no território brasileiro quanto a organização curricular, de tempo e
espaço, visando assegurar as competências e objetivos de aprendizagem contidos
na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Brasil, 2018) ou na proposta
curricular adotada por cada sistema de ensino.
Sobre essa resolução CNE/CP n.º 2 de 10 de
dezembro de 2020 (Brasil, 2020a, p. 1) em questão, o artigo 14º, versa sobre as
Atividades Pedagógicas Não Presenciais, as quais compreende como “[…] o
conjunto de atividades realizadas com mediação tecnológica ou por outros meios,
a fim de garantir atendimento escolar essencial durante o período de restrições
de presença física de estudantes na unidade educacional”.
Destacamos que os eixos curriculares propostos
para cada ano letivo não são alterados em comparação ao ensino presencial, mas
apenas remanejados para o ensino não-presencial, estabelecendo que com o
retorno das aulas presenciais serão realizadas ações de recuperação dos
objetivos de aprendizagem não alcançados. Ressalta-se que para os anos finais,
deve se atentar para a conclusão do aprendizado mesmo nesses moldes e para a
possibilidade de ensino suplementar, sendo de suma importância estabelecer uma
forma de registro detalhado das atividades desenvolvidas pelos alunos e
profissionais da educação envolvidos, para supervisão, acompanhamento e
conversão de carga horária prevista pela Lei de Diretrizes e Bases Nacionais
(LDB) (Brasil, 1996).
As atividades pedagógicas não presenciais podem ocorrer
por meio das tecnologias educacionais, em conformidade com a idade mínima para
seu uso, via televisão, rádio e também por material impresso. Para a Educação
Infantil, as escolas devem organizar material com orientações para o cuidador
e/ou responsável pela criança, para desenvolvê-las em casa conforme artigo 2º
da Resolução CNE/CP n.º 2 de 10 de dezembro de 2020 (Brasil, 2020a) que versa
pela análise de dois referenciais, com momentos de leitura e brincadeiras a
priorizar atividades de estímulo cognitivo e socioemocional.
O documento também pauta o retorno gradual das
aulas presenciais, com a reorganização de ambientes de aprendizagem em
conformidade com os protocolos sanitários de saúde pública, sendo esses
integrados às TDICs disponíveis nos espaços escolares, viabilizando o uso de
mídias sociais de alto alcance. Ainda, o desenvolvimento de estratégias de
acolhimento e integração de toda a comunidade escolar frente ao impacto da
pandemia como intervalos (recesso/férias) para recuperação física e mental.
A exemplo do guia internacional selecionado e
analisado nesse estudo, a Resolução CNE/CP n.º 2 de 10 de dezembro de 2020
(Brasil, 2020a) também não faz menções ao corpo, desconsiderando-o no processo
educacional remoto. Para tanto, partimos da hipótese de que ele – o corpo –
ainda é pouco explorado nos documentos normativos, ou como, este estudo revela,
uma carência significativa dada a sua relevância. Encontramos em Merleau-Ponty
(2011), Nóbrega (2019) e Moreira (2019) a convergência de ideias ao apontarem o
corpo como um veículo de apreensão do mundo e não há outra forma senão essa
via. Logo nos definimos não pelo pensamento, cognição, mas como seres humanos
dotados de sentidos, rumo à transcendência do ser-mais, pois estamos sempre em
desenvolvimento, em busca de algo. Assim, a nossa ação no mundo é expressa e
manifesta por meio do corpo.
O sentido, portanto, ontológico e existencial da
educação, independentemente do contexto a qual se insere, reside na formação e
desenvolvimento humano, considerando como diz Morin (2013, p. 199) “[…] a
experiência humana na sua totalidade”.
Considerações finais
Enumeramos no início deste artigo os seguintes
questionamentos: É possível vivenciar valores humanos na educação diante de
corpos separados pela necessidade de isolamento? A corporeidade se manifesta em
tempos de relações virtuais? Por fim, se não temos o contato presencial será
possível percebermos a nossa manifestação da corporeidade e a do outro?
No decorrer da análise dos documentos,
confrontados com estudos científicos que tratam da questão do corpo no
desenvolvimento do ensino e da aprendizagem de conhecimentos, percebemos que ao
falar da e para a atualidade é necessário estabelecer um diálogo com o tempo
presente, implicando em falar também da pandemia do coronavírus que é um marco
histórico em que estamos vivendo sob drásticas consequências em todos os níveis
sociais e em todas as etapas da vida e áreas do fazer humano.
A ressignificação do modo de ser e estar no mundo
diante desse cenário, trouxe consequências impactantes de longo prazo para a
educação, evidenciando tendências hegemônicas ao desvelar as desigualdades
sociais. Por outro lado, a transformação digital e a carência de investimentos
na educação, sejam para o desenvolvimento tecnológico ou aprimoramento para
educadores, não acompanharam as necessidades reveladas para o enfrentamento
deste momento pandêmico.
Sob a ótica de uma perspectiva mais lógica e
contemporânea, é positivo que tal processo têm incitado grandes mudanças,
questionamentos e reflexões relevantes quanto a promoção de igualdade de
condições, de acesso e de permanência dos alunos na construção de seu percurso
escolar que implica significativamente na necessidade de uma transformação de
paradigmas, bem como da revisão de conceitos e padrões de ensino-aprendizagem a
fim de se constituir novos valores e ações que efetivem a cidadania, o acesso
universal ao conhecimento e a garantia dos direitos humanos. Então, a missão e
a necessidade de se conceber um modelo de atenção educacional tecnológica em
toda sua abrangência que contemple transformações tanto na estrutura física
quanto nas bases e estruturas educacionais, pautadas em um desenvolvimento
contínuo do educar e aprender que perpassa pelo corpo do educador e pelo corpo
do aprendiz.
Exatamente essa corporeidade que não se fez
contemplada nos dois documentos analisados por essa pesquisa e por ainda
considerarem um corpo fragmentado em partes: a parte emocional, a parte
laboral, a parte de saúde física, e outras tantas que ao não compreenderem o
corpo em sua totalidade reforçam práticas cartesianas, contextualizadas e
incitadas à superação pelo referencial teórico deste estudo, que demonstra sua
relevância e denota uma lacuna nos guias. Não percebemos, no entanto, uma
preocupação com o trabalho do corpo uno e integral nos documentos, o que não
impossibilita tal abordagem no contexto prático das salas de aula.
Ações de interações corporais não foram possíveis
nesse contexto pandêmico, porque frente a uma pandemia, que tem como base o
saneamento e o confinamento, impossibilitou o encontro dos corpos
presencialmente. Isso é problemático, pois corporalmente tocamos, ouvimos e
vemos todo o seu potencial e assim também toda sua possível fragilidade.
Contrapondo essa ideia, notamos que o impacto no corpo dos encontros virtuais,
venha a ser uma corporeidade debilitada em suas necessidades e desejos
expressos e não atendidos no processo de ensino e aprendizagem no contexto
educacional.
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